O último refúgio dos canalhas
Quarta feira decisiva na Libertadores, sem que eu estivesse escalado para cobrir nenhuma partida. Momento ideal para um fanático pelo nosso maior torneio continental seguir todos os jogos sem nenhuma preocupação. Primeiro vi a derrota do Boca para o Toluca enquanto ouvia, pela Rádio Oriental de Montevidéu, o Nacional perder para o Barcelona. Um pequeno aperitivo para o que realmente importava.
Me posicionei como deveria para os jogos que encerravam a noite. TV ligada no imperdível São Paulo x Atlético e rádio sintonizado numa emissora argentina para seguir Arsenal x The Strongest. Dois jogos cujos resultados definiriam o grupo. A rádio argentina fazia o que se esperava: transmitia o jogo do clube do país, enquanto tinha alguém com os olhos no confronto entre brasileiros, passando periodicamente informações sobre o jogo do Morumbi.
As coisas foram bem até o momento em que o São Paulo abriu o placar. Daí para frente a emissora repetiu indefinidamente que São Paulo e Atlético faziam jogo de compadres, com placar combinado, para que os dois classificados da chave fossem brasileiros, causando a eliminação de uma equipe argentina. Mudei de rádio e ouvi a mesma opinião, que também apareceu em várias postagens que vi no twitter.
Qualquer brasileiro sabe que o Atlético jamais teria qualquer interesse em enfrentar o São Paulo na próxima fase. Nenhum clube brasileiro que disputa a Libertadores tem qualquer motivo para temer o fraquíssimo time do Arsenal, enquanto todos sabem que enfrentar o São Paulo pode ser perigoso, a despeito do mau momento do tricolor. Todos nós sabemos também que não faz parte da nossa cultura futebolística a ideia de valorizar o fato de rivais avançarem no torneio, como se isso engrandecesse o nosso futebol.
O Atlético perdeu por razões evidentes. Jogou desfalcado de atletas importantes para os quais não há reposição, e claramente seus jogadores não se deixaram levar pelo discurso de “é preciso eliminar o São Paulo para fugir do confronto com eles na próxima fase”, como as entrevistas de seus jogadores deixaram absolutamente claro. E por mais que não viva um bom momento e tenha jogado sem jogadores importantes, o São Paulo no Morumbi é um adversário temível para qualquer clube do planeta, ainda mais numa partida decisiva, com as arquibancadas lotadas.
Nada disso interessou aos radialistas argentinos que ouvi. Todos só viram um conluio para favorecer um clube brasileiro em detrimento de um argentino. Como se os clubes daqui fossem unidos, como se alguém tivesse medo do Arsenal, e como se o Atlético pudesse escolher quando e de quem vai ganhar. Algo completamente absurdo.
Seria simples dizer que isso é apenas tolice de argentinos, esses vizinhos ufanistas e arrogantes. Mas nós aqui fazemos exatamente as mesmas coisas. Por mais que as equipes de lá sejam rivais, muitos brasileiros teriam pensado a mesmíssima coisa se o cenário fosse o inverso. Mais que isso: vemos boa parte de nossa imprensa reclamando sem parar da “catimba argentina” em partidas que envolvem clubes brasileiros e argentinos, mesmo em lances que vemos por aqui todo santo dia em partidas disputadas entre clubes brasileiros.
No fim das contas fica claro que para muita gente a relação entre países do nosso continente é vista pelo ângulo da raiva pelo vizinho. Vemos as piores intenções nos vizinhos, enquanto sempre temos certeza de sermos pobres injustiçados. Em parte por simples ignorância, em parte pela vontade de fazer demagogia, o fato é que boa parte dos moradores do continente parece fadada a jamais abrir mão do papel de vítima perante o vizinho mau caráter.
No século XVIII, Samuel Johnson disse que “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”. Disse isso sem conhecer a América Latina, e mais de 150 anos antes de a Libertadores existir. Imagine o que diria se visse a transmissão de uma partida do torneio pela maioria das emissoras de rádio e TV do continente?