Seleção

65 anos do tri sul-americano da Argentina

Time de 1947

Há seis décadas e meia, em 28 de dezembro de 1947, a Albiceleste completava um período de dominação sem igual antes ou depois na América do Sul: três títulos continentais seguidos, a maior glória com a seleção para jogadores que não tiveram a oportunidade de demonstrar mundialmente seu brilho por conta da falta de Copas do Mundo na época. Foi com o tri, aliás, que a Argentina virou a maior campeã da Copa América, posto que manteve por 40 anos, até o Uruguai igualar em 1987.

Para se ter uma noção de como o futebol argentino vivia safra das mais douradas, basta notar que apenas cinco jogadores foram às três Copas América em questão, mesmo que realizadas em anos seguidos (1945-1946-1947): o volante Natalio Pescia, do Boca; o centroavante René Pontoni, do San Lorenzo; o atacante Norberto Méndez, do Huracán; e os pontas, Mario Boyé (direito; mais sobre ele aqui), do Boca, e Félix Loustau (esquerdo), do River. Além disso, somente Loustau foi titular absoluto nas três. E seu reserva era Manuel Pelegrina, do Estudiantes, ponta que mais fez gols no país.

Loustau era um dos componentes da célebre linha ofensiva do elenco riverplatense conhecido como La Máquina: Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e ele. Só que o quinteto, além de ter jogado oficialmente só 18 vezes junto no próprio River, nunca se reproduziu na seleção, em parte por conta da grande concorrência nos times rivais. Em 1945, por exemplo, Muñoz foi reserva de Boyé. Pedernera e Labruna nem foram chamados. Moreno se ausentou por estar no México.

Outro ataque bem recordado da época foi o Terceto de Oro do San Lorenzo, em que Pontoni era acompanhado por Armando Farro e Rinaldo Martino. Farro só foi ao de 1945, com seu posto na entreala derecha sendo mais disputado entre Vicente de la Mata e Méndez, que acabaria levando a melhor (é El Tucho, por sinal, o maior artilheiro da Copa América, igualado junto com Zizinho. Ambos marcaram 17 vezes). Martino, terceiro maior goleador sanlorencista, conseguiu a titularidade em 1945, mas no ano seguinte teve de ficar na reserva de Labruna, embalado pela artilharia do campeonato nacional de 1945.

Os recordistas “Tucho” Méndez e Loustau; Pontoni, também presente nas três Copas, e seu colega sanlorencista Martino, presente em 1945, onde fez o gol do título, e 1946

O rodízio a que se permitiu o técnico, o artilheiro da Copa de 1930, Guillermo Stábile, começava já no gol: ninguém da posição esteve em mais de um sul-americano daquela sequência. Em 1945, Fernando Bello, considerado um dos melhores arqueiros que o Independiente já teve, perdeu a titularidade para Héctor Ricardo, do Rosario Central. Em 1946, o boquense Claudio Vacca foi o dono das metas, que em 1947 ficaram sob a proteção de Julio Cozzi, do pequeno Platense.

O tri veio após três passeios nos janeiros de 1945, no Chile, e de 1946, na própria Argentina; e em dezembro de 1947, no Equador. Mesmo com as mudanças de edição à edição, os argentinos saíram invictos em todas, com 16 vitórias e 2 empates nos 18 jogos somados delas. Ricardo; José Salomón (Racing) e Rodolfo Dezorzi (Boca); Carlos Sosa (Boca), Ángel Perucca (Newell’s) e Bartolomé Colombo (San Lorenzo); Boyé, Méndez, Pontoni, Martino e Loustau foi o time-base do primeiro capítulo. Até um recém-rebaixado foi convocado: Farro, que logo trocaria o Banfield pelo San Lorenzo.

A campanha de 1945 se constituiu em um 4×0 na Bolívia (Pontoni, Martino, Loustau e De la Mata), 4×2 no Equador (Pontoni, De la Mata, Martino e Pelegrina); 9×1 na Colômbia (dois de Pontoni, dois de Méndez, um de Boyé, um de Loustau e dois de Juan José Ferraro, ídolo histórico do Vélez e que havia substituído Pontoni aos 32 do 2º tempo!); 1×1 com o anfitrião (Méndez); 3×1 no Brasil (três de Méndez, artilheiro da edição, todos de fora da área) e 1×0 no Uruguai. O gol do título, de Martino, ficou famoso: se livrou de três celestes e, sem ângulo, encobriu Roque Máspoli, futuro goleiro campeão de 1950.

Martino, naquele mesmo ano, conseguiu um recorde de 11 gols pela Argentina, marca só superada mais de meio século depois, por Gabriel Batistuta em 1998 e Lionel Messi neste 2012. Outros a se destacarem estavam na retaguarda: Perucca ganhou no Chile o apelido de Portón de América. Seu colega no meio, Sosa, é considerado o mais habilidoso lateral-direito a ter jogado no Boca. E o capitão Salomón seria por muito tempo o recordista de partidas na seleção, com 44 (Miguel Brindisi o superou na Copa de 1974); é quem mais a defendeu vindo do Racing.

1946: o técnico Stábile, De la Mata, Méndez, Pedernera, Labruna e Loustau; Salomón, Sobrero, Fonda, Strembel, Vacca e Pescia, outro presente nas três (não chegou a jogar em 1945, por apendicite)

Vacca; Salomón, Juan Sobrero (Newell’s); Juan Fonda (Platense), León Strembel (Racing), Pescia; De la Mata, Pedernera, Méndez, Labruna e Loustau foi a formação-base dos campeões de 1946. O técnico Stábile realizou três improvisações: para poder jogar, De la Mata, um dos maiores atacantes do Independiente, foi colocado na ponta-direita. Pedernera, um polifuncional no ataque (Alfredo Di Stéfano o considera o melhor que já viu) mas que jogava mais como centroavante, deixou tal posto para o goleador Tucho Méndez, sendo deslocado para o flanco direito, por sua vez na posição normal de Méndez.

Em casa, os alvicelestes não deram chances, vencendo todos os jogos: 2×0 no Paraguai (De la Mata e Martino); 7×1 na Bolívia (Labruna, dois de Méndez, um do ponta-direita Juan Salvini, do Huracán, um de Loustau e outros de Salvini e Labruna); 3×1 no Chile (dois de Labruna e um de Pedernera); 3×1 no Uruguai (Pedernera, Labruna e Méndez; o meia Saúl Ongaro, do Estudiantes, ainda perdeu pênalti). O último jogo foi contra o Brasil, vice em 1945 e novamente no páreo.

Méndez, novamente, fez os gols argentinos, que venceram por 2×0 em partida marcada pela batalha campal após Salomón fraturar a perna, em choque com Jair da Rosa Pinto. O capitão teria sua carreira abreviada por conta do lance. De la Mata, outro que não jogaria mais pela Argentina, e o brasileiro Chico acabariam expulsos. A tensão foi tamanha que a AFA e a CBD cortaram relações e suas seleções não se enfrentariam por dez anos. Foi um dos motivos para que a Argentina não viesse ao Brasil na Copa América de 1949 e na Copa do Mundo de 1950.

Quase dois anos depois, em dezembro de 1947, a etapa equatoriana do tri teve em Cozzi; José Marante (Boca) e Sobrero; Norberto Yácono, Perucca e Pescia; Boyé, Méndez, Di Stéfano, Moreno e Loustau os principais membros campeões. As grandes novidades vinham do River: Yácono, um dos primeiros a exercer marcação pessoal em um adversário, retornava depois de quatro anos; de volta do México, Moreno, tido pelos mais antigos como ainda mais classudo que Maradona, reaparecia depois de meia década; e o estreante Di Stéfano, que despontara naquele mesmo ano, em que foi artilheiro, campeão e protagonista do campeonato nacional.

A qualidade era tamanha que nem mesmo Di Stéfano foi titular absoluto, ganhando só no terceiro jogo a posição de Pontoni, autor de 19 gols em 19 jogos pela seleção. Voltou à reserva dele no sétimo, mas com a Argentina já campeã. Foi no torneio que “A Flecha Loira” jogou suas únicas 6 partidas pela terra natal, todas em Guayaquil, ainda assim marcando igualmente 6 vezes. A campanha começou elástica: 6×0 no futuro vice, o Paraguai (Moreno, Loustau, três de Pontoni e um de Méndez); e 7×0 na Bolívia (Méndez, Pontoni, outro de Méndez, Loustau, Boyé, Di Stéfano e novamente Boyé).

O capitão Salomón com o técnico Stábile; Perucca, “Portón de América” em 1945 e 1947; e Pedernera

Uma virada de 3×2 contra o Peru (Moreno, Di Stéfano e Boyé) e novo 1×1 contra o Chile (Di Stéfano) foram seguidos de nova goleada: 6×0 na Colômbia (Mario Fernández, atacante do Independiente, Di Stéfano, Boyé, Loustau e outros dois de Di Stéfano). O título veio com um 2×0 nos anfitriões, com Moreno e Méndez. A campanha encerrada há 65 anos acabou com um 3×1 no Uruguai, com dois de Méndez um de Loustau. Ambos coroaram assim suas belas trajetórias na Copa América, onde jogaram 17 das 18 partidas do tri e saíram invictos, um recorde nela. Méndez, nem sempre titular, marcou igualmente 17 vezes no torneio, conforme já dito.

O tri continental seguido, além de ser uma marca não alcançada por outra seleção, serviu para registrar no futebol uma das mais talentosas gerações que o esporte já teve, prejudicada pela falta de mundiais nos anos 40. Um ano depois, uma greve dos jogadores argentinos enfraqueceu o selecionado (não-atendidos, muitos foram ao exterior), outra razão para que o próprio presidente Perón vetasse a participação nas eliminatórias para as Copas de 1950 e 1954. Só três membros do tri iriam ao torneio: Labruna e Néstor Rossi (reserva em 1947), em 1958; e Di Stéfano, pela Espanha, em 1962, sem jogar.

O Eldorado Colombiano havia seduzido algumas daquelas estrelas do tri, especialmente o Millonarios de Bogotá, destino de Di Stéfano, Pedernera, Cozzi e dos reservas Rossi e Mario Fernández. Perucca e Pontoni foram ao rival Independiente Santa Fe. E os reservas Oscar Sastre (1945 e 1947; irmão do ídolo são-paulino Antonio Sastre), Eduardo Rodríguez (1946) e Camilo Cerviño (1947), ao Deportivo Cali. Houve também o caso de Martino, que fora para a Itália (tal como Boyé, que passou rapidamente pelo Genoa). Campeão pela Juventus, chegou a jogar pela Azzurra, não a defendendo na Copa de 1950 por ter voltado pouco antes à Argentina.

Atualizações após a matéria: publicamos especiais dedicados a diversos jogadores membros dessas conquistas. Clique para acessa-los:

Recortes da carreira de Di Stéfano

Centenário de Ángel Labruna, o maior símbolo e campeão do River

50 anos sem Guillermo Stábile, muito mais que o artilheiro da 1ª Copa do Mundo

René Pontoni, ídolo do Papa

100 anos de Moreno, maior jogador argentino da 1ª metade do século XX

20 anos sem o maior artilheiro da Copa América: Norberto “Tucho” Méndez

Maestro de “La Máquina” do River e maior da história para Di Stéfano: 100 anos de Adolfo Pedernera

100 anos do maior jogador do Independiente na 1ª metade do século XX: Vicente de la Mata, herói da 1ª final Brasil x Argentina

Rinaldo Martino, “mais muito” que o 3º maior artilheiro do San Lorenzo

José Salomón faria cem anos. Por causa dele, não houve Brasil x Argentina por outros dez

Mario Boyé, “El Atómico”: conheça a versão argentina de Rivellino

Muñoz, o cruzador de La Máquina do River

Félix Loustau, o Chaplin do Futebol

Néstor Rossi, o “Patrão da América” (e do River Plate)

Argentinos do Eldorado Colombiano: há 65 anos, Di Stéfano chegava lá

70 anos da mais tumultuada final Brasil x Argentina: a Copa América de 1946

O ponta-direita Boyé, outro presente nas três; Moreno e Di Stéfano, participantes de 1947

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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