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Afro-argentinos no futebol

Rinaldo Martino na seleção

No dia em que o Brasil celebra a consciência negra, relembraremos (em uma nota assumidamente especulativa, ressaltamos) os mais conhecidos jogadores afro-argentinos. Sim, eles sempre existiram e, se hoje parecem bem raros, não é nada improvável que várias peles claras, cabelos lisos e sobrenomes italianos de hoje tenham alguma ascendência africana. O uruguaio Loco Abreu, que tem uma avó negra (veja aqui), bem demonstra uma possibilidade dessas, assim como o galês Ryan Giggs, de pai mulato (clique aqui), enquanto o caso mais notório no futebol brasileiro talvez seja entre Domingos e Ademir da Guia. Mas é sabido que a Argentina tem uma minúscula população negra, ao menos na concepção brasileira. Tanto é que a cultura vizinha emprega de forma diferente a palavra.

Muitos foram os jogadores apelidados de El Negro, termo na Argentina generalizado mesmo aos de pele não tão escura (novamente: para a concepção brasileira), muitos na verdade com mais fenótipo indígena do que propriamente africano: Juan José López e Héctor Enrique, ídolos do River; Omar Palma, maior ídolo moderno do Rosario Central; Julio Zamora e Fernando Gamboa, dupla defensiva do Newell’s de Marcelo Bielsa; Hugo Ibarra, lateral-direito do Boca de Carlos Bianchi; Óscar Ortiz, ponta titular da Argentina na Copa 1978; bem como o ex-corintiano Sebá Domínguez, hoje no Vélez. Mesmo os de pele e olhos claros, mas com traços rústicos, também recebem o apelido – a exemplo de outro ícone do River, Leonardo Astrada.

Hoje tão raros, os afro-argentinos chegaram a ser mais da metade da população, normalmente escravizados, como no Brasil. Começaram a ser dizimados nas guerras de independência, para as quais seus homens foram convencidos a lutar em troca de liberdade em caso de vitória contra a Espanha. Só que pouquíssimos sobreviveriam: em geral, eram postos na linha de frente, naturalmente sendo os que mais pereciam no fogo cruzado; dentre esses soldados, o sargento Juan Bautista Cabral (um zambo, como os cafuzos, mestiços afro-indígenas, são ali chamados), ou simplesmente Sargento Cabral, foi a mais ilustre vítima fatal naquelas guerras – que também dizimaram toda a família de outra liderança negra do movimento independentista, María Remedios del Valle.

O gradual embranquecimento nos Da Graca, três gerações de uma família no Los Andes; e Laguna, fundador do Huracán

O uso desproporcional na infantaria em guerras civis no século XIX e a precariedade sanitária maior, contribuindo para que fossem mais suscetíveis a epidemias, também contribuiu  para que a descendência dos negros locais fosse gradualmente embranquecendo – à medida em que as mulheres iam cada vez mais procriando filhos com brancos, a crescente maioria da Argentina, especialmente nas principais cidades. Como mostramos com Loco Abreu, o embranquecimento poderia chegar em duas gerações. Quem melhor demonstra isso é uma peculiar família ligada ao nanico Los Andes, da cidade de Lomas de Zamora, na Grande Buenos Aires, e rival original do Banfield.

Manuel Da Graca esteve no título da terceira divisão de 1938 de Las Mil Rayitas (“As Mil Listrinhas”, apelido do clube em alusão à sua camisa). Seu filho Abel Da Graca foi mais longe: participou do elenco que subiu à elite em 1967. Em 1994, mais de meio século depois de 1938, houve nova promoção do Los Andes à segundona, desta vez com o neto Hernán Da Graca marcando até o gol do acesso. “Nesse dia fui ao campo com meu pai e ambos nos abraçamos chorando quando Hernán fez o gol e essa foi a alegria maior que me deu o futebol; em pouco tempo o velhinho nos deixou, mas pôde ver seu neto ganhar um acesso igual ao que eu e ele ganhamos”, contou Abel, mulato filho de um negro e pai de um branco.

Já um primeiro afro-argentino de destaque no futebol fora José Laguna, fundador e primeiro presidente do tradicionalíssimo Huracán. Jogou pela Argentina na primeira Copa América, em 1916, sob curiosa circunstância: ia assistir a partida contra o Brasil, mas foi “convocado” desde a plateia para substituir alguém e até marcou gol no 1-1. No fim dos seus tempos de jogador, Laguna conseguiu participar do primeiro título argentino do seu Huracán, em 1921, e venceria o de 1928 como treinador do clube – é o único a conseguir troféus como jogador e técnico por lá em torneios da primeira divisão. Como treinador, Laguna também esteve na primeira Copa do Mundo, em 1930, comandando o Paraguai.

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Dellavalle (pelo Belgrano e seleção de 1921) e De los Santos (pela seleção de 1925 e Huracán), campeões da Copa América

Outro dos primeiros nítidos representantes da minoria na seleção de fato era apelidado de Negro: foi Miguel Dellavalle, também o primeiro usado por ela do futebol cordobês. Jogava no Belgrano, onde naturalmente é um dos maiores ídolos. Foi volante titular no primeiro título da Argentina na Copa América, em 1921. Demoraria mais de meio século para outro atleta ser usado jogando em algum time de Córdoba: foi ninguém menos que Mario Kempes, em 1973, então no Instituto.

Alejandro de los Santos foi outro daqueles primórdios na seleção. Este meia-esquerda atuou cinco vezes pela Argentina entre 1922 e 1925, ano em que foi campeão da Copa América. Curiosamente, porém, nunca venceu pelo país: foram três empates e duas derrotas, sempre vindo do pequeno El Porvenir. Em Buenos Aires, De los Santos atuou pelos rivais San Lorenzo e Huracán, respectivamente em 1921 e 1931. El diccionario azulgrana, lançado em 2008 nas comemorações do centenário sanlorencista, afirma que ele foi primeiro negro no clube e que era filho de uruguaios.

Julio Luis Benavídez, nascido em Córdoba, teve boa participação no título argentino de 1934 do Boca Juniors. Mesmo normalmente na reserva das estrelas Roberto Cherro, Francisco Varallo e Delfín Benítez Cáceres, atuou vinte vezes e marcou onze gols. Ficou mais dois anos no Boca, mas com continuidade bastante inferior: foram outros doze jogos, a maioria amistosos, e apenas um gol. Também foi técnico, em 1948, mas o êxito não foi muito maior.

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Martino no San Lorenzo e em card da seleção italiana; Benavídez como jogador e técnico do Boca

No Book of the Xentenary, o livro em inglês lançado pelo centenário xeneize, Benavídez foi lembrado em uma sessão de curiosidades onde escalou-se um time só com jogadores negros que passaram pelo Boca. Era o único argentino do plantel hipotético, a saber: Walter Ormeño (peruano), Luis Perea (colombiano), Domingos da Guia (brasileiro), Julio Meléndez (peruano), Jorginho Paulista (brasileiro), Orlando Medina, General Viana (uruguaios), Carlos Gómez Sánchez (peruano), Maurinho, Paulo Valentim e Lima (brasileiros) como titulares; os brasileiros Édson dos Santos e Edílio, os colombianos Arley Dinas e John Tréllez, o uruguaio Raúl Cardozo Crespo, o camaronês Alphonse Tchami e Benavídez no banco.

Rinaldo Fioramonte Martino foi um dos maiores ídolos do San Lorenzo e da seleção. Excelente cabeceador e ambidestro com os pés, foi um dos maiores jogadores do país nos anos 40. Seu trio com René Pontoni e Armando Farro, que deu o título argentino de 1946 aos azulgranas, ficou conhecido como Terceto de Oro. Pela seleção, chegou a deter o recorde de gols marcados em um único ano, com seus 11 em 1945; só Batistuta e Messi o superaram. Também em 1945, foi campeão da Copa América (fazendo o gol do título, sobre o Uruguai), da qual foi bi outro ano depois.

Terceiro maior artilheiro do San Lorenzo (142 gols), em 1949 foi jogar na Juventus, descoberto no Velho Continente após marcar 17 gols em uma excursão de dez jogos que os cuervos fizeram por lá. Foi campeão e utilizado também pela seleção italiana. Poderia ter ido à Copa de 1950 pela Azzurra (primeiro não-branco nela), mas já havia trocado a Bota pelo Uruguai, onde também fez sucesso, no Nacional. Passou ainda por Boca e São Paulo, nos quais já não rendeu tanto.

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Picot no San Lorenzo, Britos com os irmãos Varacka no Independiente, Montuori pela Fiorentina e pela Itália

Ernesto Picot, como De los Santos, tinha mãe uruguaia segundo o Diccionario Azulgrana. El Negro foi um insinuante ponta-direita que defendeu o San Lorenzo de 1947 a 1954. A falta de títulos o fez não se eternizar tanto, mas em sua época era uma das figuras a ponto de ser testado no Santos (em amistosos feitos pelos praianos em visita à Argentina) mas ter a contratação negada por ser considerado intransferível pelo presidente sanlorencista. Ironicamente, já em 1955 acabou trocando de clube, mas para o Newell’s.

Alberto Arcángel Britos Ramos é considerado um dos maiores ídolos do Independiente mesmo sem ter ganho títulos no clube de Avellaneda. Nascido na cidade, surgiu nas categorias inferiores do rival Racing, e ainda juvenil cruzou a avenida Bartolomé Mitre. Versátil na defesa, começou como zagueiro e terminou como lateral-direito, formando recordado trio recuado com Emilio e José Varacka nos anos 50. Ao todo, Britos jogou 156 vezes entre 1952 e 1959 pelos diablos.

Miguel Montuori não fez história no futebol argentino, mas sim no italiano. Veio da Universidad Católica, do Chile, para brilhar na Fiorentina. Foi vice-artilheiro da campanha viola campeã pela primeira vez da elite do calcio, em 1956, integrando também o elenco vice para o Real Madrid de Di Stéfano na Liga dos Campeões de 1957. Um deslocamento na retina abreviou sua carreira, mas teve tempo de, como Martino, jogar pela Itália. Se radicou em Florença e lá faleceu em 1998.

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Ramos Delgado no Lanús e como capitão da Argentina; e Baley: ambos foram a duas Copas do Mundo cada

José Manuel Ramos Delgado é bem conhecido do futebol brasileiro, sendo considerado um dos maiores zagueiros da história do Santos. O detalhe é que só chegou à Baixada após ser considerado decadente na terra natal, adquirido junto ao Banfield em 1967. Surgira no Lanús (que curiosamente virou o rival principal do Banfield a partir dos anos 80, “substituindo” o Los Andes dos Da Graca), em um celebrado elenco apelidado de Los Globetrotters. Como Granate, foi incluído no elenco da Copa do Mundo de 1958, que marcou o retorno da Argentina a mundiais depois de 22 anos.

Em 1959, passou para o River Plate, onde havia sido recusado no início da carreira. Colocando ordem na defesa com berros mas em desarmes limpos, fez sucesso também em Núñez, que só não foi maior por conta da falta de títulos que viveu-se lá entre 1957 e 1975. Como millonario, Ramos Delgado manteve-se na seleção, esteve na Copa de 1962 e participou também da conquista da Copa das Nações, em 1964, maior logro da Albiceleste até 1978. Em 25 jogos pela Argentina, foi capitão 16 vezes, boa amostra de sua liderança. Seu pai, de sobrenome Ramos, era um imigrante de Cabo Verde.

Héctor Rodolfo Baley também foi a duas Copas do Mundo. Foi um goleiro que, embora considerado inconstante, capaz de defesas das mais difíceis e de deixar passar gols bobos, é o que tem a menor média de gols sofridos na seleção entre os arqueiros que a defenderam ao menos dez vezes: 8 em 13 partidas. É também um dos poucos que jogaram por ela vindo de três clubes de províncias diferentes cada: chegou à ela vindo do Colón de Santa Fe, em 1975, na “seleção do interior” experimentada por César Menotti, e despediu-se em 1982, já como jogador do Talleres de Córdoba.

Contrates: o black power dos tempos de Baley como jogador não se transmitiu à neta, com quem posa à direita. Outro retrato do embranquecimento que chega em duas gerações – muitos argentinos de ancestralidade africana talvez até a desconheçam

Mas foi no Huracán que Baley fez mais sucesso. Chegou ao bairro portenho de Parque Patricios em 1976, em que o time ficou oito pontos à frente do campeão metropolitano (torneio mais valorizado que o próprio nacional), o Boca, na fase inicial. Aquele ano também é lembrado no clube pela vitória nos cinco clássicos realizados contra o San Lorenzo. 1977 foi o ano que El Chocolate mais jogou pela Argentina; em revezamento com o boquense Hugo Gatti desde 1976, atuou sete vezes. Foi campeão mundial em 1978 na reserva de Ubaldo Fillol. No mesmo ano, foi o goleiro titular do Independiente campeão nacional. Também foi para a Copa de 1982, onde outra vez só Fillol jogou.

Como Baley, Jorge Trezeguet atuou nos anos 70, mas teve menos glórias na carreira. Na Argentina, limitou-se a rivalidades de clubes pequenos, passando por Estudiantes de Buenos Aires e Almagro (do Clásico de Tres de Febrero) e também por Deportivo Español e Sportivo Italiano, o dérbi dos imigrantes. Poderia ter dado um salto quando foi sondado pelo super Independiente da época, tetra seguido na Libertadores, mas a transferência foi melada por um antidoping positivo, o primeiro do país. Ele seguiu carreira na França, terra de um bisavô. E lá nasceu o filho David Trezeguet, que no futebol fez sucesso por si e pelo pai. Antes de ostentar cabeça raspada, o filho usava penteado black power no início da carreira, no Platense. Neste outro Especial, falamos mais dos Trezeguet e de como o filho se diz mais argentino do que francês.

Miguel Ángel Ludueña foi um volante de personalidade: em sua Córdoba, defendeu os rivais Belgrano e Talleres. E repetiu a dose em Avellaneda, com o feito de ser um raro campeão titular por Racing e Independiente. Na Academia, integrou os vencedores da Supercopa de 1988, sobre o Cruzeiro, primeiro título racinguista em mais de vinte anos. Virou a casaca em seguida para vencer o campeonato argentino de 1988-89 pelo Rojo. Jogou uma vez pela seleção, em 1991, estreando veterano nela aos 34 anos.

Atualização em 9 de agosto de 2014: no Dia Mundial dos Povos Indígenas, abordamos os jogadores indo-argentinos, que incluem alguns dos mais famosos craques do país – clique aqui.

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Jorge Trezeguet no Rouen, da cidade onde o filho David (ao lado, pelo Platense) nasceu. À direita, Ludueña pelos rivais Racing e Independiente: conseguiu ser campeão nos dois

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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