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Quando o Independiente derrotou a ditadura

No dia de aniversário de Ricardo Bochini, nada melhor do que lembrar um dos mais gloriosos jogos da história do Independiente. No dia 25 de janeiro de 1978 o clube, comandado por Bochini, conquistava mais um título nacional. Para isso precisou vencer o Talleres de Córdoba, a arbitragem, e sobretudo a ditadura militar argentina.

A década de 1970 é a mais gloriosa da história do Independiente. Após o bi da Libertadores em 1964 e 1965, a equipe consolidaria sua fama de “El Rey de Copas” ao vencer quatro edições seguidas do torneio, entre 1972 e 1975, façanha até hoje não alcançada. O Rojo venceu ainda dois títulos nacionais naqueles anos (o Metropolitano de 1970 e o Nacional de 1971), e chegou pela primeira vez ao título mundial interclubes, em 1973.

Naquele mundial despontou aquele que seria o maior ídolo Rojo desde Arsenio Erico: Ricardo “Bocha” Bochini. Talentoso meiocampista, era especialista em deixar os companheiros na cara do gol, embora também marcasse os seus. Seu talento ficou óbvio quando, aos 19 anos de idade, comandou o Independiente na conquista do mundial de 1973, marcando o gol do título sob a Juventus de Turim em pleno estádio Olímpico de Roma.

Em 1977, aquela equipe vencedora não era mais a mesma. A grande maioria dos jogadores não estava mais lá, assim como o lendário técnico Roberto Ferreiro. Mas Bochini continuava no Rojo, assim como o outro grande craque da equipe, Daniel Bertoni. E o treinador José Omar Pastoriza podia contar com outros brilhantes jogadores, como Omar Larrosa, que havia brilhado no grande time do Huracán entre 1973 e 1976.

E no Nacional de 1977 um rejuvenescido Independiente voltou a dar alegrias à sua torcida. Venceu dez das primeiras doze partidas, se classificando com antecipação para a fase final. Na semifinal, suplantou o Estudiantes, para encontrar o Talleres de Córdoba na grande decisão. Na primeira partida, em Avellaneda, prevaleceu o empate em 1 a 1. Tudo seria decidido em Córdoba: o vencedor levaria o título, e em caso de empate levaria a taça quem marcasse mais gols fora de casa (uma inovação para a época).

Mas logo ficou claro que as coisas não se resolveriam apenas no campo de jogo. O comandante militar e governador da província de Córdoba era nada menos do que Luciano Menéndez, representante da linha-dura extremista da ditadura argentina. Para os membros dessa corrente, como Menéndez e Suárez Mason (mecenas do Argentinos Juniors), militares como Jorge Videla e Emilio Massera – posteriormente condenados à prisão perpétua pelas violações aos direitos humanos cometidas naqueles anos – eram demasiado tolerantes com a oposição. Entre outros feitos, Menéndez era o responsável pelo Massacre de Las Palomitas, quando prisioneiros foram executados nas prisões da província de Salta.

E esse homem violentíssimo, vivendo o auge do poder, expressou claramente seu desejo de que o Talleres fosse campeão. No auge da repressão, isso era mais do que o suficiente. E quando as equipes entraram em campo naquele 25 de janeiro de 1978, ninguém sabia o que esperar.

A princípio, tudo correu normalmente. As equipes buscavam o gol, e o Independiente virou o primeiro tempo em vantagem, com um gol de cabeça de Outes, o artilheiro máximo do clube no torneio. Mas, no segundo tempo, as coisas começaram a se complicar, quando aos 13 minutos um centro da esquerda bateu no corpo de um defensor do Independiente na lateral da área. O juiz marcou o penal, bastante duvidoso, convertido por Cherini (que por sinal sequer comemorou o gol tão importante; baixou a cabeça e caminhou de volta para o meio campo).

Aos 25 minutos, o jogo se complicou de vez, quando Bocanelli aproveitou um centro e empurrou a bola para o gol com as mãos. O gol, flagrantemente ilegal, foi validado pela arbitragem, colocando os cordobeses em vantagem. No desespero, inconformados com tamanha injustiça, Trossero, Galván e Larrosa (os dois últimos seriam campeões mundiais pela seleção argentina naquele mesmo ano) agrediram verbalmente o árbitro e foram expulsos.

Com três a mais, resultado favorável, arbitragem a favor, e jogando em casa, o Talleres tinha o título nas mãos. Mas não tinha Ricardo Bochini. Aos 41 do segundo tempo, Bocha tabelou com seu grande amigo Bertoni (outro campeão mundial pela seleção em 78) e chutou a bola com força no alto da rede adversária.

O Independiente havia arrancado um miraculoso empate que lhe daria o título. Nos minutos finais da partida, o Talleres atacou incessantemente, e o goleiro Roganti ainda teve tempo de fazer duas defesas dificílimas. E a bola estava em suas mãos quando o árbitro encerrou a partida.

O Independiente era campeão nacional de 1977, Bocha se consagrava definitivamente como um deus em Avellaneda, e a ditadura argentina sofria uma grande derrota nos gramados. Há exatamente 33 anos, o grande craque que hoje completa seu 57º aniversário se transformava em verdadeira lenda.

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

6 thoughts on “Quando o Independiente derrotou a ditadura

  • Belo texto, Tiago.

    E você ainda me diz que estudar não serve de nada, mas graças à História é que produzes grandes textos históricos. Mereces até outra dose…

    Abraço.

  • Caio Brandão Costa

    Aeee! aquela avalanche de especiais de fim de ano deixa a gente mal acostumado, hehe… tava sentindo falta de outro.

    O que impediu Bochini de figurar em mais Copas? Pelo que leio, ele tinha bola para ter jogado de 1974 a 1982… mas foi justamente para a de 86, isto porque seu fã Maradona teria pedido ao Bilardo. Quais eram os jogadores da posição dele que levaram a vaga de titular e de reserva?

    1982, logicamente, foi o Diego, mas quem tirou até a reserva do Bocha nesses mundiais? Em 1978, os dois foram deixados para trás por Beto Alonso e mais algum outro, suponho. Em 1974 ele não tinha a concorrência de Maradona e ainda assim não foi…

    (Se visse a segunda foto em outro lugar, poderia até pensar tratar-se do Liverpool ou Nottingham decidindo uma Champions Cup, hehe. O cara tinha bem mais fios de cabelo ainda… só o identifiquei pela legenda)

  • Tiago Melo

    Em 1974 ele tinha apenas 20 anos, e havia explodido no segundo semestre de 1973. Suponho que deve ter sido mais um daqueles casos (como o proprio Diego em 78, ou Ganso/Neymar em 2010) em que o treinador prefere levar aqueles jogadores já testados e aprovados, ao invés de arriscar com alguem que mal apareceu. E os meias titulares eram Babington e Brindisi, que tambem eram muito bons. E o reserva era outro jovem muito promissor, da mesma idade de Bochini: Kempes.
    Em 1982 o Menotti tinha Maradona e Kempes a disposiçao na 10 e Ardiles na 8. Kempes ja nao era o mesmo, mas depois do que fez em 78 era impensavel nao leva-lo. A grande questao realmente é 1978, quando Bocha estava em seu auge e levou o Rojo ao titulo argentino do ano anterior da forma como mostra o texto acima.
    Menotti chegou a albiceleste disposto a fazer uma grande renovação na seleção, e fez questão de usar muitos jogadores menos conhecidos, frequentemente preterindo jogadores de clubes grandes (O Boca, bi da Libertadores de 77/78 só teve Tarantini como titular, isso porque Carrascosa se lesionou). Para as meias ele preferiu o Ardiles, do Huracan, e o Kempes, que havia despontado no Central foi em 76 para o Valencia.
    Houve mesmo muita pressao pelo Alonso, mas nao podemos esquecer que ele tambem deixou de fora JJ Lopez, que era de fato o grande idolo da torcida do River. A mim parece que Menotti preferia trabalhar com jogadores menos conhecidos. Mas é só uma impressao.
    No todo, acho que Bocha teve um grande azar em termos de seleção: ter a mesma idade e função que Mario Kempes, que foi nas tres copas que Bochini deveria ter ido, na mesma posição que ele. Com um pouco mais de sorte, poderia ter sido ao menos reserva em 78, esse sim o grande pecado. Coisas do Menotti.

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