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Depender de ajuda rival para ser campeão: um raro histórico na liga argentina

A liga argentina de 2022 foi das mais apaixonantes. Ora tendia ao inédito título do Atlético Tucumán, ora a quebra de jejuns dos mais expressivos: os 49 anos do Huracán e os 93 (!) do Gimnasia. Todos os três já estão fora do páreo para a rodada final – ao passo que o Boca, com 1,2% de chances de título à altura da 14ª das 28 rodadas, galopou com uma incrível série de vitórias sob o comando técnico do vitoriosíssimo ex-lateral Hugo Ibarra. Só o Racing, com um pontinho a menos, tem chances… ou não. É que a rodada final reservará justamente um Boca x Independiente e um Racing x River, mesclando os clássicos entre o quarteto principal do futebol argentino.

Vale assim relembrar antecedentes em que a ajuda rival seria providencial, e para tanto consideramos apenas as ocasiões em que isso ocorreu na rodada final – tirando de consideração que o Racing deixou o River como vice em 1949 ao derrotar justamente um Boca que lutou arduamente pela vitória (foi o ano em que a azul y oro correu risco real de rebaixamento), mas bem antes da rodada derradeira; como a vitória do Racing sobre o líder Vélez na penúltima rodada de 1971 manteve as chances de título do Independiente, o que acabaria acontecendo; ou a ajudinha que o Huracán deu ao San Lorenzo ao (interessado em uma vaga na Copa Mercosul, é verdade) bater o River no Clausura 2001, ainda na penúltima rodada.

Também não consideramos os torneios em que os rivais estavam juntos na disputa (como na rodada final do Apertura 1993, marcado pelo quarteto todo ter chances de um título que acabou com o River), ou quando o clássico direto decidiu o campeonato. Eis o curto histórico:

Futuro ídolo são-paulino, Albella marcou os dois últimos do 5-0 do seu Banfield no Independiente enquanto o Lanús era digno contra o Racing em 1951

Uma primeira situação do tipo a ocorrer rigorosamente na última rodada deu-se no campeonato de 1951, marcado pelo mais perto que um time de fora dos cinco grandes esteve do título entre 1929 e 1967 – principalmente pelo ineditismo do feito na era profissional, oficialmente inaugurada em 1931. Anacronicamente, aliás, é fácil dizer que eram dois clássicos mesclados: a sensação Banfield recebia o Independiente, enquanto o Lanús visitaria o co-líder Racing. Mas, na época, as torcidas do atual Clásico del Sur eram amigas; esse dérbi foi fomentado décadas depois, exatamente pelo acentuado declínio de seus rivais originais.

Originalmente, o clássico do Lanús dava-se com o Talleres da cidade vizinha de Remedios de Escalada, sumido desde 1938 da elite embora viesse a revelar Fernando Redondo (nos infantis), Javier Zanetti e Germán Denis; ao passo que a rixa principal do Banfield era com o Los Andes (da vizinha Lomas de Zamora), que só apareceu na primeira divisão por três temporadas nos anos 60 e uma ioiô na de 2000-01. De fato: em 1951, os grenás foram visitantes indigestos no Cilindro, oferecendo resistência considerável na vitória racinguista por 5-3. Abriram o placar e o primeiro tempo terminou em um 2-2, com a virada momentânea da Academia igualada a dois minutos do fim.

A goleada se desenhou no segundo tempo, mas ainda assim a oito minutos do fim o desconto para 5-3 deu algum suspense, pois no Florencio Sola o Taladro tinha total apoio da torcida roja visitante: um condimento extra era que eventual título racinguista daria a La Acadé o orgulho de ser o primeiro tricampeão seguido do profissionalismo. Entre os 20 e os 27 minutos do jogo, os azarões já haviam feito 3-0 e terminaram ganhando de 5-0, com as duas torcidas ao fim invadindo o campo para confraternizar – pois imaginava-se que o Banfield estava campeão. Encerrou a rodada com a mesma pontuação do Racing, mas tinha mais vitórias e melhor saldo. Não valeriam…

Esportividade em 1960: Independiente perde do Atlanta, mas termina campeão porque o Racing goleou o Argentinos Jrs

No fim das contas, foi acertado um jogo-desempate em campo neutro, seguido de mais um, pois o primeiro ficou no 0-0. No segundo, prevaleceu a camisa mais tradicional. Apesar daquele antecedente de 1951, rancores não foram demonstrados em 1960, quando o Argentinos Jrs fez sua primeira grande campanha na elite argentina – rendendo o apelido de Bicho Colorado ao historicamente modesto clube (Bicho é uma expressão que abrange desde insetos e outros seres minúsculos de visual desagradável a baixinhos travessos) do bairro de La Paternal. Lutou seriamente pela taça com um Independiente sob doze anos de jejum.

Na rodada final, prevaleceu um Rojo pragmático, cujo ataque chegou a somar 19 gols a menos que o Argentinos – inclusive, o campeão foi derrotado na última rodada, pelo Atlanta. Mas respirou diante da surra que o vizinho Racing aplicava, por 4-1, no postulante Argentinos Jrs, que nem em vice ficou: acabou igualado pelo River (a prevalecer nos critérios de desempate), embora seu vice-campeonato seja enganoso, fruto de uma tardia recuperação na tabela.

Virou lugar comum dizer que o vice-campeonato em 1980 com Maradona teria sido a melhor campanha até então do Bicho, uma meia-verdade: fora sim o pódio mais alto até ali, mas a nove pontos do campeão. Em 1960, a diferença foi de dois pontos. E, dado o contexto dos casos seguintes, aquela foi a única vez em que um rival ajudou desinteressadamente o outro na rodada final…

1995, fim da penúltima rodada: Racing sonhando com a ajuda do Independiente para a seguinte…

A cenário parecido ao atual mais famoso talvez tenha sido a do Apertura 1995. Outrora líder invicto até a antepenúltima rodada, com apenas seis gols sofridos até então, o Boca de Maradona levou outros seis só naquela ocasião de um Racing tardiamente renascido. À espreita, um Vélez pragmático aproveitou e tomou a liderança.

Repentinamente, o Boca se viu sem chances de título logo na rodada seguinte, ao ser novamente derrotado (pelo Estudiantes) enquanto Vélez e Racing venciam seus compromissos e se tornavam os únicos postulantes à taça. O Vélez estava na situação mais confortável possível: tinha três pontos a mais e enfrentaria justamente um Independiente não apenas sofrível no Apertura, mas sob a ressaca do seu título paralelo na Supercopa (sobre o Flamengo), em 6 de dezembro. A rodada final se deu no dia 17 e, até pelo terrível jejum nacional que assolava desde 1966 o Racing, houve clamor na imprensa para alguma esportividade do Rojo, prometida por referentes como Diego Cagna à revista El Gráfico.

O Racing precisava vencer e torcer necessariamente por derrota velezana, o que igualaria-os na liderança e forçaria um jogo extra, tal como em 1951. A promessa vizinha de fair play visivelmente acabou apenas protocolar: mesmo em Avellaneda, o Rey de Copas foi sapecado por 3-0 pelo campeão Vélez – com o placar aberto logo aos 5 minutos de jogo.

A comemoração velezana, com alguns utilizando camisas do Independiente na volta olímpica

O Racing não tardou em desanimar em sua visita ao Colón e esteve longe de fazer a sua parte, tomando de 5-1. Cruelmente, com três gols de um ex-racinguista, o uruguaio Marcelo Saralegui. Já o Vélez deu sua volta olímpica utilizando bem à vontade algumas camisas trocadas com o Independiente, caso do goleiro José Luis Chilavert na foto que abre essa matéria. A torcida racinguista precisou suportar um jejum que chegou a 35 anos, finalizado apenas em 2001 (curiosamente, em partida contra o Vélez). E pôde desengasgar mais em 2013, quando pressionou para que seus próprios jogadores fizessem corpo mole contra os adversários diretos da luta do Rojo contra o rebaixamento.

A rigor, ainda houve um último caso de um clube enfrentar um concorrente do arquirrival na última rodada, no Torneio Final de 2014, o primeiro título do River após voltar à primeira divisão. O Millo chegou com folga ao último compromisso, mas ainda haviam dois concorrentes com chances matemáticas, desde que o time de Núñez perdesse: eram a dupla platense Estudiantes (que pegaria o Tigre) e Gimnasia, que encarou um Boca no páreo por uma vaga na Libertadores.

O River fez em cheio a sua parte, com um tranquilo 5-0 no Quilmes. Fica o registro de que o Boca, beneficiado pela derrota do Estudiantes, subiu a um enganoso vice-campeonato ao derrotar em La Plata o Gimnasia por 1-0. Mas, quando havia alguma disputa de risco maior ao River combinado a indiferença de resultado ao Boca, como em 1991, os xeneizes já andaram plenamente para trás para eliminar o arquirrival na fase de grupos da Libertadores, ao não vencerem o frágil Oriente Petrolero…

Trotta comemora seu gol logo aos 5 minutos de jogo com o Independiente em 1995. À direita, o Boca 1-0 Gimnasia em 2014

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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