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Há 20 anos, Riquelme virava o Topo Gigio anti-Macri num emblemático 3-0 no River

A prefeitura de Buenos Aires foi o estágio para Mauricio Macri ambicionar a Argentina. Sua administração municipal (2007-15) teria mexido pauzinhos para perdoar multas de trânsito de Juan Román Riquelme, uma reconciliação em anos turvos da relação com o astro. Com dinheiro privado, a história era outra: em 2001, o então presidente do Boca não se rendia ao desejo do meia por uma revisão contratual a um astro que ainda receberia com base no acordo feito como juvenil. Eis um dos panos de fundo por trás da icônica comemoração imortalizada a partir daquele 8 de abril de 2001 de alguém “talentoso até para recomendar desenhos animados”, na humorada recordação da cerveja Quilmes (então patrocinadora da dupla de gigantes) hoje. Recordado sem pudores também pelo Boca, em tempos onde o próprio Riquelme pertence à cartolagem que depôs a coligação alinhada internamente ao macrismo.

Vamos recordar também.

Prólogo: a reconstrução do Boca na austeridade macrista

Eleito presidente do Boca no fim de 1995, Macri pregava a necessidade de uma austeridade financeira para remediar um clube que ainda sentia efeitos de uma década perdida nos anos 80 (tendo beirado a extinção em 1984). Desde a saída de Maradona no início de 1982, o clube só pudera somar um único título no campeonato argentino – já no fim de 1992, no pior jejum doméstico auriazul, maquiado por uma ou outra taça secundária do calendário continental (Supercopa 1989, Recopa 1990 e as obscuras Copa Master em 1992 e Copa Ouro em 1993, troféus caça-níqueis mas oficiais da Conmebol) ou as fanfarronas voltas olímpicas pelas extintas liguillas, como em 1986.

Ainda assim, o presidente sabia que bons balanços financeiros não bastavam ao torcedor. Em 1996, trouxe ninguém menos que Carlos Bilardo para ser o treinador boquense, mas a velha parceira do treinador da seleção de 1986 com Maradona não rendeu os mesmos frutos. Para 1997, foi-se atrás de outro técnico campeão do mundo em 1986, mas com o River: Héctor Veira. Cujo timaço (sobretudo no ataque) e fez uma das melhores campanhas da história dos torneios curtos, só superada por outras seis. Calhou de uma dessas seis ocorrer ali: por um ponto a mais, o River, embora derrotado no histórico Superclásico no qual Maradona deixou o futebol, prolongou um novo jejum xeneize.

De outro lado, Riquelme, que já vinha desde 1996 pedindo passagem, começou a firmar-se no time adulto do Boca. Veira recebeu voto de confiança em 1998, mas um desempenho abaixo da crítica rendeu na sua saída ainda antes do fim do primeiro semestre. Após um comando interino de Carlos García Cambón, a direção chegou a sondar ninguém menos que Daniel Passarella, assumido torcedor da azul y oro na juventude. Mas fechou com um assumido hincha do River na infância: Carlos Bianchi, cujos predicados à frente do Vélez contrastavam com um presente em baixa após fracassar na Roma e permitiam um preço bem em conta. Em paralelo, a gestão Macri parou de torrar com as estrelas estrelistas Caniggia e Latorre, apostando em uma garotada prata-da-casa muito boa e ainda muito barata – ponto para o olheiro Jorge Griffa, requisitado em 1996 após polir diversos craques daquele Newell’s de 1988-92.

O sucesso, enfim, chegou. O Boca emendou quarenta jogos seguidos de invencibilidade na liga argentina, estabelecendo um recorde no profissionalismo ainda vigente. Se entre 1981 e 1997 só pudera ganhar dois torneios domésticos, essa conta foi igualada de uma vez apenas naquela temporada 1998-99, com o bicampeonato seguido entre o Apertura (que pudera ser vencido de modo invicto, algo ainda inédito ao clube e só repetido outra vez, em 2011) e o Clausura. De quebra, a temporada propiciou um retorno à Libertadores. Que se faria redentor.

A ressaca de uma temporada vencedora

Após 22 anos, o Boca reconquistou o continente dando-se ao gosto de eliminar cinematograficamente o River. No segundo semestre, reconquistou também o mundo, diante do Real Madrid. E semanas depois fechou sua primeira tríplice coroa, faturando o Apertura com o River de vice. Macri aproveitou para fazer caixa com as vendas do artilheiro Martín Palermo e de Gustavo Barros Schelotto, logo adquiridos pelo ascendente Villarreal, que já havia levado Rodolfo Arruabarrena pouco após a Libertadores. Walter Samuel já havia sido outro exportado após a Libertadores. Desfazer-se logo de Riquelme, contudo, não era nem um pouco estratégico para o ambiente institucional. E o meia, que não era sábio apenas em campo, puxava outra corda, sentindo-se merecedor de um contrato mais generoso.

Macri ironizando o protesto em 2019, na campanha de reeleição. Mas é sabido que, no fundo, ele sempre se incomodou com o gesto

Reforços? Hoje o nome Clemente Rodríguez é sonoro, mas o então lateral do modesto Los Andes era talvez o menos renomado de um pacote obscuro: Javier Villarreal, do Talleres, e Walter Gaitán, este cedido no troca-troca com o Villarreal-clube mesmo. Depois de um semestre perfeito, até que o Boca não parecia estar sob tanta ressaca na pré-temporada. Nos amistosos de janeiro e fevereiro, ficou no 2-2 com o San Lorenzo para então emendar novos revezes ao River: 1-0 em Mar del Plata em 21 de janeiro, 2-1 em Córdoba no dia 25 e 1-0 em Mendoza em 6 de fevereiro – permeados ainda com um 4-1 no Racing, também em Mendoza, três dias antes, além de um 2-2 com o Talleres (27 de janeiro) e 0-0 com o Independiente (30 de janeiro).

Mas, com o início do Clausura, logo viu-se que o time, um pouco por acomodação, um pouco pela ausência do artilheiro Palermo, um pouco pela turbulência interna Riquelme-Macri e outro pouco pela ambição maior de uma reconquista continental, não deu liga pelo país. Nas primeiras sete rodadas, o Boca só venceu uma: ficou-se no 2-2 na visita ao Argentinos Jrs, uma derrota em plena Bombonera por 3-1 para o Unión e então venceu-se por 1-0 o Gimnasia em La Plata – para então a Bombonera ver um 2-2 com o Newell’s, o Racing vencer por 2-1 e a Bombonera novamente não celebrar vitória, no 1-1 com o Belgrano. Em 17 de março, então, o campeão do mundo, com Córdoba, Burdisso, Serna, Riquelme e Delgado e companhia, foi derrotado pelo nanico Almagro.

Em paralelo, a campanha na Libertadores ia satisfatória, obrigado. Até a derrota para o Almagro no Clausura, o Boca vinha com 100% de aproveitamento no primeiro turno da fase de grupos em La Copa: 2-0 no Oriente Petrolero, 1-0 fora de casa no Cobreloa, 2-1 no Deportivo Cali. Sequência mantida: em 20 de março, o Cobreloa foi novamente derrotado por 1-0. No Clausura, o time voltou a vencer, batendo por 1-0 o Huracán em 25 de março. Mas os mares não se acalmavam: ao invés de melhorar o contrato de Riquelme (dono de uma insatisfação similar à vista em Scottie Pippen no documentário The Last Dance: atado a um contrato moralmente defasado, sem fazer justiça ao auge que vivia, mas do qual a direção não abria mão), Macri, que afastava rumores de uma negociação com o Barcelona, anunciou a venda do meia aos catalães em 30 de março. Negociada à revelia do jogador.

Já se preparando para a chuva de críticas, o cartola tratou de pedir licença de dois meses do cargo (tocado pelo vice Pedro Pompilio, este um cartola bastante prezado pelo meia) ao mesmo tempo em que destacava que Román seguiria defendendo os xeneizes ao menos até o fim do semestre, permitindo-se que disputasse a Libertadores 2001 até o fim. E que, em caso de novo título, o astro seria emprestado pontualmente para o Mundial Interclubes (no fim das contas, a transferência não estava exatamente tão fechada assim e teria idas e vindas, com Román só rumando ao Camp Nou na temporada 2002-03). De fato, em 1º de abril Riquelme estava em campo na segunda vitória seguida pelo Clausura, um 2-1 na visita ao Lanús. Três dias depois, pela penúltima rodada da fase de grupos continental, Bianchi poupou-o. Reserva habitual, Fernando Pandolfi marcou o único gol do jogo.

E o River? O River, mesmo se desfazendo de quatro destacados nomes em janeiro (Aimar, Juan Pablo Ángel, Placente e Berizzo, todos exportados à Europa), se reagrupara com o regresso dos ídolos Astrada e Celso Ayala e promovia a estreia do adolescente Cavenaghi. Começou o torneio já aplicando um 6-2 no Estudiantes, a primeira partida oficial de Cavegol, embora o artilheiro ocasional fosse Martín Cardetti, que reuniu uma tripleta completa por Ayala, Coudet e Saviola. A disputa pela liderança não era com o Boca e sim com o San Lorenzo do treinador Manuel Pellegrini. Na oitava rodada, enquanto o arquirrival somava apenas a segunda vitória no Clausura (aquele 1-0 no Huracán), o Millo travou um confronto direto com o Sanloré. E não se intimidou em visitar o Nuevo Gasómetro: Cardetti duas vezes e Saviola assinaram um 3-1 que parecia deixar o torneio doméstico sob favas contadas. Liderança referendada pelo 1-0 no Chacarita em 1º de abril.

Capas da tiragem semanal da revista El Gráfico naqueles dias. Um mês depois do Topo Gigio, a de 8 de maio estampou Schelotto (autor do terceiro gol) com manchete profética

Então veio o Superclásico, com o San Lorenzo interessado no retrovisor – os azulgranas, em 1º de abril, haviam vencido fora de casa o Vélez.

Macri, embora já licenciado formalmente, não deixaria de comparecer à partida no camarote presidencial da Bombonera.

Parêntese. O torcedor do Boca que defendia o gol do River

Em 1983, o River viu sua lenda Fillol pedir para sair, revoltado com salários atrasados. Mas nunca sentiu maior carência na vaga. Veio Pumpido e o Millo seguiu representado na seleção naquele posto. Antes mesmo de Pumpido ir à Europa, o River cedia até mesmo seu reserva à Albiceleste, com a ascensão de Goycochea em 1987. Ambos saíram em 1988, mas Comizzo soube substitui-los… e cavar uma vaga na seleção de 1990 junto aos próprios Pumpido e Goycochea! Goycochea que voltou ao clube em 1993 para repor com segurança uma primeira saída de Comizzo. O talismã da Copa 1990 rumaria após a Copa de 1994 ao maradoniano projeto do Deportivo Mandiyú: ok, o time trazia na mesma época Burgos para o lugar. El Mono duraria até 1999 e o Millo sabia se virar sem ele: contratado como reserva em 1996, Bonano inclusive foi titular na maioria dos jogos da temporada 1996-97. E voltou a apoderar-se do posto com a saída de Burgos, ao mesmo tempo em que concorria com ele na própria seleção.

Assim, firmar-se no gol do River era sinônimo de uma carreira também na seleção. No início de 2001, com Bonano sendo desfalque seguido com a Argentina nas eliminatórias, o treinador Américo Gallego bancou Franco Costanzo. Que logo foi pintado como “o goleiro do futuro”, embora logo enfrentasse críticas desproporcionalmente ácidas da mídia, em revanchismo à sua postura rígida de não conceder entrevistas. Justamente ele, já maduro, concedeu uma longa nota em junho de 2020 o La Nación. Repleta de curiosidades reveladas pelo natural de Río Cuarto, mesma cidade natal de Aimar, no interior cordobês.

“Em casa, minha mãe era San Lorenzo, minha irmã, River, e o resto éramos Boca. Obviamente, depois terminamos sendo todos River, menos meu pai, que quando jogava um clássico me dizia: ‘que vás bem e empatemos’. Até aí chegava o seu amor. Na pensão [do River], éramos vários os torcedores do Boca, mas começas a pôr a camisa do River e queres ganhar. Sentes a rivalidade, e se bem não odeias o rival, te dás conta de que quando melhor vá o River e pior o Boca, o clima será outro no clube. Os jogadores de futebol não somos como o torcedor comum, nos passa outra coisa. Eu cresci no River, vivia três anos na pensão do River, estudei no River, estive dez anos no clube, não há maneira de que não te transformes e termines gostando da cores e sentindo que o River é teu clube”.

O goleiro prosseguiu: “eu hoje sou River e meu irmão mais velho, que era Boca, é fanático pelo River e leva seus filhos ao Monumental. Nem te digo como festejei estes anos nem como gritei os gols em Madrid”. Não foi um caso isolado – há ídolos históricos em Núñez que assumiram-se torcedores do lado rival, como o citado Passarella. O goleiro, por sua vez, até destacou em outro momento daquela nota que “eu fui gandula atrás do gol na Libertadores de 1996, e tinha o sonho de ser parte de uma conquista internacional”. E, indagado sobre as chances de outros times argentinos de voltar do futebol europeu, foi taxativo: “sempre senti que a etapa na Argentina se fechou no dia em que saí do River. Senti que havia vivido e experimentado o que queria viver e experimentar”.

Costanzo após cometer o pênalti que originaria o Topo Gigio. E já em 2003, fotografado pela placar em outra noite “caliente”…

E como ele, afinal, foi parar no rival de outrora? “O irmão do Flaco Pitarch [Héctor Pitarch, antigo jogador riverplatense dos anos 70] vivia em Río Cuarto e lhe recomendava jogadores ao clube, porque El Flaco dirigia o time B do River. Em meus 14 anos veio o primeiro convite e minha mãe disse que era muito jovem. No ano seguinte, outra vez, e se deu que Pablo (Aimar) já estava fazia um ano no River e que eu tinha o pai de Pablo, como técnico no Estudiantes de Río Cuarto. E aceitamos. Minha primeira pré-temporada foi em 1998, me subiu Ramón (Díaz). A equipe vinha de ganhar um tricampeonato, Libertadores e Supercopa. Tinha um medo… eu era o mais jovem, 17 anos. Fui como terceiro goleiro porque Burgos estava com a seleção”.

“Os goleiros ainda não recebiam treinos específicos e o preparador Deán nos fazia correr junto do resto e sentia que morria, depois vinha o rachão e no final me chutavam e me cagavam de gols. Terminava fuzilado, mas estar com esses monstros era o máximo para mim. Sempre tive muito boa relação com os grandes, no fim terminavam de apadrinhando, e olhando-os aprendias como te manejar. Creio que [Leonardo] Ponzio, [Javier] Pinola, [Javier] Gandolfi, [José] Sand e La Gata [Gastón Fernández] sejam os últimos integrantes de uma geração que nos criamos sob a tutela dessas referências que te marcavam o que estava bem e o que mal. A relação dos grandes com os garotos vem mudando. Na realidade, mudou a sociedade, se perdeu bastante o respeito com os mais velhos”.

Costanzo foi companheiro de todos esses na base millonaria, alguns ainda ativos – com Ponzio e Pinola no próprio River e Sand vingando no Lanús (“temos um grupo de WhatsApp”, acrescentou). Ao fim, o grande desgosto ao pai com o tempo se resumiu à escrita do nome: “sempre brigava: ‘é Costanzo, sem N!’. Essa frase escutei mil vezes: ‘sem N!’. todos nos criamos sabendo que havia que explicar. No Sul-Americano sub-20 que ganhamos em Mar del Plata, dois dias antes da estreia, vi ‘Constanzo’ estampado na minha camisa. Que desilusão! Pensei: meu velho me deserda. ‘Eu com essa camisa não jogo’, disse ao roupeiro. Não lembro se o primeiro jogo joguei com o N descartado e depois corrigiram. Até hoje tenho que seguir esclarecendo”.

O jogo. E o pós-jogo.

A liderança do River no Clausura contrastada à apatia do Boca por si só não jogava o favoritismo à Banda Roja. Na edição publicada na semana que antecedeu o duelo, a El Gráfico não teve o pudor de usar como manchete “um fantasma de espera”, referindo-se aos seguidos revezes diretos e indiretos do Millo diante do rival (como o fato de o Boca vencer o Mundial sobre o Real Madrid quatro dias após o Monumental de Núñez ver o Vasco aplicar 4-1 pelas semifinais da Copa Mercosul…). Bianchi escalou Abbondanzieri; Ibarra, Bermúdez, Matellán e Clemente Rodríguez; Omar Pérez, Serna, Traverso, e Riquelme; Delgado e Barijho. Gallego respondeu mandando Constanzo, Hernán Díaz, Ayala, Yepes e Sarabia; Guillermo Pereyra, Astrada, Damián Álvarez e Ortega; Saviola e Cardetti.

Do lado da casa, apenas Ibarra, Bermúdez, Riquelme e Delgado haviam começado jogando aquele cinematográfico duelo da segunda quartas-de-final entre os rivais na Libertadores de 2000, marcado pela epopeia protagonizada por um Palermo regressado após seis meses de estaleiro. O outro remanescente seria o garoto Burdisso, reserva usado ali substituindo Delgado e em 2001 substituindo Riquelme já aos 40 minutos do segundo tempo. Mas repetiriam os mesmos 3-0, diante de um quadro visitante também bem diferentes – os únicos titulares millonarios nas duas surras foram Yepes (sempre recordado pelo drible de caneta aplicado por Román naquela Libertadores) e Saviola. Cardetti e Pereyra também jogaram, com ambos saindo do banco em 2000.

O placar final se repetiu, mas foi preciso aguardar até os 21 minutos do segundo tempo para a torneira segurada por Costanzo começar a abrir. Riquelme cobrou uma falta pela esquerda, afastada inicialmente pela zaga rumo ao outro flanco. O lateral-direito Ibarra recuou para recolher a sobra da bola. Esperava-se um novo cruzamento, mas El Negro acreditou em si e, na jogada que terminaria tão associada a Robben, tirou com o corpo a marcação e arriscou de longe mesmo e de canhota. Costanzo, ligeiramente adiantado no lance, não alcançou e a bola morreu no ângulo. Golaço que marcaria qualquer Superclásico, mas que acabou ofuscado pelo lance imortalizado cinco minutos depois. E que terminou por tornar inócua uma grande recuperação do goleiro millonario na partida.

O golaço de Ibarra

O River não conseguiu ter êxito num escanteio e, em contra-ataque fulminante, Delgado colocou um Clemente ainda ostentando cabelos na cara de Costanzo, que derrubou o lateral-esquerdo. Héctor Baldassi apitou instantaneamente o pênalti, sem qualquer margem de contestação. A única reação inicial do goleiro foi baixar a cabeça e exibir caretas de desânimo. Riquelme ajeitou a bola e por instantes as câmeras deixaram o gramado para focar em outras caras e bocas franzidas, estas com os óculos e o bigode de Mauricio Macri. Román mirou o canto direito de Costanzo, que deu um passo à frente para conseguir buscar a bola.

Conseguiu, sem segura-la: ela caprichosamente resvalou no travessão. E sobrou para o próprio Riquelme – ou melhor, “o toureiro”, na narração oficial – busca-la de volta e emendar um cabeceio certeiro, antes do arqueiro se recuperar a tempo. Passados quase vinte anos, Costanzo já conseguia ser bem-humorado, naquela entrevista de 2020: “é uma lástima que meus companheiros não chegassem ao rebote e Riquelme metesse o gol de cabeça! Que bronca! Esse penal passam seguidamente na TV, porque depois Román fez o Topo Gigio ao Macri, e eu apareço no meio, como ator coadjuvante, haha”.

Pois o toureiro honrou o apelido. Desviou da manada de colegas que buscava celebra-lo e rumou ao meio-campo, defronte aos camarotes, onde Macri não deixava de comemorar, sem prestar atenção no protesto do craque – a manter-se indiferentemente sisudo com as mãos na orelha. Abaixou-as por um momento apenas para afastar alguns abraços, prontamente recolocando-as.

No River, o técnico Gallego foi para o tudo ou nada, trocando o meia Álvarez pelo atacante Nelson Cuevas no minuto seguinte. Mas não contava com a imprudência do experiente Cardetti. Aos 33 minutos, El Chapulín, para brecar novo contra-ataque, ele literalmente caminhou sobre as costas de Ibarra. Novo apito instantâneo de Baldassi, acompanhado de um cartão vermelho ao atacante. Até a falta ser cobrada, os dois técnicos aproveitaram para fazer novas alterações: primeiro, Omar Pérez deu lugar a Waiter Gaitán no Boca, enquanto Diego Barrado substituiu Pereyra no River. Bianchi replicou trocando Barijho por Guillermo Barros Schelotto.

Essa última substituição foi com toque de Midas, pois El Mellizo deixou sua marca de imediato: quando a falta cometida pelo expulso Cardetti enfim foi cobrada, o malandro ponta tratou de puxar a marcação de Yepes na grande área e se deixou puxar pelo colombiano, convertendo a falta numa nova cobrança de pênalti – dessa vez, bastante protestado pelos rivais contra Baldassi, que inclusive orientou Costanzo a esperar o tiro na linha. E o goleiro caiu no conto de Schelotto, que sempre cobrava pênaltis com tiros fortes no meio do gol. E sempre acertava diante da hesitação adversária na possibilidade de uma mudança repentina de hábito.

Costanzo pulou inutilmente para o outro canto, daquela vez.

Aos 40, Riquelme deu então lugar a Burdisso. E, retribuindo o jogo sonso do desafeto presidencial, explicaria à imprensa que sua comemoração incomum era nada mais que uma homenagem à filhinha, simulando as orelhas de abano do desenho animado Topo Gigio (nunca ouviu falar? O Google Imagens trará imagens autoexplicativas). Ainda que essa animação, dos anos 60, fosse transmitida mais habitualmente na Argentina apenas nos anos 80. Com o tempo, a comemoração ficou habitual a Román e a seus fãs – como Eden Hazard. E foi ironizada até pelo próprio Macri, já na tentativa de reeeição presidencial em 2019 do ex-cartola.

O gol do insistente Riquelme, no rebote de um pênalti

Ao fim, o Boca fechou o pódio daquele Clausura, mas longe de disputar o título – inclusive, levou de 5-2 do Vélez três dias mais tarde. O foco assumido no semestre foi vencer a Libertadores, cumprido à risca enquanto se somava 30 pontos no torneio caseiro. O Superclásico definiu os rumos sim, mas para o River. Não que trouxesse desânimo: o Millo venceu seis dos seus sete compromissos seguintes e empatou o outro. Mas não contava com o salto exponencial do San Lorenzo: o Ciclón, após aqueles 3-1 sofridos em casa no duelo direto, só fez emendar vitórias até o fim do torneio. Garantiu a taça na penúltima rodada, exatamente quando o River voltou a perder – ironicamente, para o clássico rival sanlorencista, o Huracán.

Foram treze vitórias azulgranas seguidas entre as onze naquele Clausura (os 47 pontos obtidos por aqueles campeões são exatamente o recorde absoluto de pontuação na era dos torneios curtos) e as duas primeiras do Apertura seguinte, até hoje um recorde no profissionalismo de um elenco histórico: mesmo se desfazendo em seguida dos nomes que terminariam mais célebres com o tempo, com as vendas do zagueiro Coloccini e do atacante Loco Abreu, a espinha-dorsal regida pelo técnico Manuel Pellegrini não tardaria a ser novamente campeã – agora, encerrando a virgindade internacional com aquela Copa Mercosul sobre o Flamengo. Mas isso já é outra história, contada nesse outro Especial.

Epílogo: declarações pertinentes do goleiro goleado

Costanzo viveu altos e baixos no River. Naquele 2001, Bielsa o observava e o goleiro, convocado ao banco de alguns amistosos (“era um garoto em uma equipe repleta de figuras como Batistuta e Simeone, sentia orgulho”) tem fé de que poderia ter ido à Copa 2002 não fosse uma maré ruim extracampo. Com mais espaço após a venda de Bonano ao Barcelona no fim daquele semestre, ele logo o perdeu após romper os ligamentos do joelho na queda de um choque aéreo contra o Palmeiras na Copa Mercosul, nos 3-3 em setembro. Passou seis meses parados e voltou a tempo de estar na partida do título do Clausura 2002, na penúltima rodada, devido à suspensão do veterano Comizzo (recontratado pelo River) por cartão vermelho na antepenúltima.

Mas na própria volta olímpica, nova crise: sentiu o joelho e descobriu que as dores provinham de ele calhar de ser “um caso em 10 mil” de determinada complicação médica: “no fim de semana seguinte, enquanto todos festejavam com as cabeças pintadas, me operavam outra vez. Foi um baque terrível, duríssimo, outra vez passar pelo mesmo”. Ele voltou em junho de 2003 – curiosamente, em pleno Superclásico, onde o River abriu 2-0 dentro da Bombonera, mas acabou engasgando um 2-2 após ter dois homens expulsos. O título de novo Clausura veio e ele, enfim, estreou na seleção, no amistoso de inauguração do estádio Ciudad de La Plata. “Nessa noite também estreou Masche[rano], que depois somou alguns jogos a mais que eu na seleção, haha”. Autoironia de quem só entrou em campo pela Albiceleste naquela partida mesmo, enquanto o ex-colega tornaria-se o recordista de jogos pelo país.

É que em 2004, ele tornou a lesionar-se. Germán Lux foi o goleiro nos cardíacos Superclásicos pelas semifinais da Libertadores e logo chegou à própria seleção também. O que permitiu, ironicamente, que Costanzo recuperasse terreno no clube quando o concorrente o desfalcava. “Me neguei a me operar, não queria passar pelo mesmo que uns anos antes. Me deram a opção de repouso e reabilitação com tratamento, a agarrei e funcionou até as semis da Libertadores seguinte, contra o São Paulo. Faltei na ida, mas não podia faltar na revanche, então joguei infiltrado. No fim, o ombro saiu do lugar um montão de vezes n aminha carreira, mas aprendi a jogar assim”.

A eliminação para o Tricolor foi um golpe duro por si só e piorou a tempestade interna de um ambiente tumultuado de véspera, ao descobrir-se que o defensor Ameli mantinha caso extraconjugal com sua dupla de zaga desde aquele San Lorenzo campeão de 2001, por sinal – Tuzzio. Costanzo permaneceu no River até a quarta rodada do Apertura 2005. Havia comentado com o treinador Astrada de uma proposta do nanico Alavés espanhol. “Me interessava, a essa altura eu já estava com a cabeça ultraqueimada, já não desfrutava no River”. O treinador concordou: “aceite, nós não sabemos o que passará aqui”. No outro dia, então, o Banfield venceu por 4-1 e Astrada realmente caiu. “Lujambio me meteu 3 gols e xingavam a mim até os mudos. Eu pedi aos dirigentes uma reunião nessa mesma noite porque tinha uma oferta. Fui a um bar perto do River nesse domingo à meia-noite e na segunda-feira à tarde viajei à Espanha. Lembro que liguei à minha mãe e lhe disse que ia à Espanha. ‘Quando’, me perguntou. ‘Em duas horas’. Não podia acreditar!”.

Serna segue Riquelme, que já gesticula para negar apoio na comemoração: o Topo Gigio está a caminho…

O Alavés terminou rebaixado com drama: escapava na rodada final e já comemorava, quando o concorrente Espanyol, em sua partida, marcou aos 46 minutos do segundo tempo o gol da permanência que ao mesmo tempo fazia o clube do argentino cair. Mas serviu de trampolim a uma vida mais sossegada na Suíça (ao mesmo tempo em que sumia de vez do radar da seleção), virando ídolo de Roger Federer no Basel, o clube do coração do tenista (“em 2018, para festar os 20 títulos do Basel, o clube convidou jogadores campeões e Roger. Fazia sete anos que não jogava no clube, estava conversando com um ex-companheiro, e logo me tocam na costa e escuto um ‘Hello Franco, how are you?’. Era Roger, se lembrava do meu nome e tudo. Seus pais e sua irmã seguem vivendo aqui, gente super humilde e simpática”).

Após pendurar as luvas, o goleiro se reestabeleceria na Basileia, concedendo de lá aquela longa entrevista, com essas outras declarações: “na Suíça, se falam quatro idiomas e aqui também existe um dialeto suíço-alemão, que se escreve igual ao alemão mas se fala diferente. Bom, eu falo esse, e acordobesado, imagine! Ao voltar em 2019, após os seis anos no Chile, me meti em um curso intensivo para recuperar o alemão. O mais raro de tudo isto é que sigo mantendo meu sotaque cordobês. Cada vez que vem alguém da Argentina, tem a obrigação de me trazer uma caixa de Tita e outra de alfajores Suchard de mousse de chocolate. A porta só se abre se trazem essas duas coisas. O problema é que hoje essas caixas duram menos, tenho concorrência em casa e tenho que andar escondendo”.

O final das aspas acima foi uma referência aos quatro filhos e à esposa Carla. Muitos deles, nascidos na Suíça, embora o goleiro descartasse virar a casaca naquelas oitavas-de-final da Copa 2014: “por mais que tivesse vários amigos na seleção da Suíça, essas coisas não se negociam. Estavam aí Shaqiri e Xhaka, dois ex-companheiros meus no Basel, dois grandes jogadores, mas sempre vou pela Argentina”. E a entrevista não deixou de abordar a a pandemia. Talvez seja o grande ponto forte da nota:

“A Suíça é um país pequeno, de 8 milhões de habitantes. Teve 30 mil casos, o que é muito em relação à população, mas sendo um país de tanto dinheiro, está muito preparado em infraestrutura de saúde. Houve medo, mas também consciência. A realidade é que juntar-se a comer churrasco com amigos não é comum aqui, então essa parte tinham solucionada. Nunca estivemos enclausurados e podias sair, sempre que não se juntassem mais de cinco pessoas. E isso se respeitava. Um amigo argentino que vive aqui diz uma frase buenísima: ‘a Suíça de estropeia’. Claro, sais da Suíça e te chocas com a realidade. A verdade é que tudo funciona perfeitamente. Dizem que a Suíça é o país com mais policiais do mundo: todos os cidadãos te controlam e te avisam se sais da linha. E te põe multas se não cumpres essas regras, assim de simples. É uma sociedade muito estrita. A Suíça é uma bolha dentro da bolha europeia”.

Epílogo do epílogo: em contraste com o sossego do futebol suíço, Costanzo também relembrou o dia em que Luís Fabiano “preferiu ajudar na briga” a bater pênalti, nas semifinais da Sul-Americana 2003: “essa sim foi uma batalha campal, nunca vivi anda igual. Com as equipes brasileiras costuma haver bastante rixa e nessa noite, entrando no estádio, nos quebraram todos os vidros do ônibus. Todos, hein, não ficou nem um são! Entramos atirados no piso, debaixo dos assentos. Já começou quente o assunto. Terminando passando nos pênaltis e para a final com o Cienciano eram tantas as baixas por expulsões e lesões que tiveram que ir dois goleiros para completar o banco de reservas e estreou de lateral-direito Luis Lobo. Estreou como titular em uma final internacional!”.

Hazard não é o único fã famoso de Riquelme

https://twitter.com/BocaJrsOficial/status/1379992610731876353

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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