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Rúgbi: como foi a outra vez invicta da Argentina contra os All Blacks

Holmgren e Milano freando Shaw, socorrido por Mexted. Essa imagem foi a escolhida para retratar o empate no livro oficial dos cem anos da União Argentina de Rúgbi

Aconteceu. Mesmo em um contexto improvável, aconteceu. A Argentina derrotou a Nova Zelândia pela primeira vez no rúgbi, com uma categórica vitória de 25-15 que Los Pumas lograram sobre os All Blacks no último sábado, pelo Três Nações. Nicolás Sánchez simplesmente anotou todos os pontos argentinos, reforçando ainda mais um olhar ao passado sobre a outra única vez em que os temidos neozelandesas deixaram o campo sem vitória contra os alvicelestes. Na outra vez, coube a Hugo Porta assinar todos os pontos de seu país em um empate que recentemente completou 35 anos, no estádio do Ferro Carril Oeste. Se o triunfo inédito já foi dissecado pelo grande portal lusófono da bola oval (aqui e aqui), vale ao Futebol Portenho retomar pontualmente suas matérias de rúgbi para revisitar o embate de 1985 – que influenciou na escolha de Porta como melhor rugbier do mundo, ainda sendo o único argentino a receber uma distinção dessas.

Na flor de seus 34 anos, Porta, então com 14 anos de serviços prestados à seleção, já havia afinal liderado meses antes a primeira vitória da Argentina sobre outra potência, a França, que havia vencido o Cinco Nações daquele 1985 e que dali a dois anos faria a final da primeira Copa do Mundo contra a onipotente Nova Zelândia – que terminaria campeã ainda que com um time bastante desfalcado daquele que empatou com os argentinos, ao renegar a maioria dos jogadores que no primeiro semestre de 1986 burlaram o boicote oficial ao apartheid sul-africano (os Springboks, na época, eram a única seleção com retrospecto positivo contra os neozelandeses, condimentando uma rivalidade que datava desde os anos 20) por intermédio de um combinado: os New Zealand Cavaliers, que na prática eram os All Blacks sem chancela de sua federação, que havia cancelado a viagem “oficial”. Ao fim de 1985, a revista El Gráfico publicou uma edição especial sobre os grandes momentos do ano e esse contexto não fugiu da órbita:

Los Pumas 24, França 16. Pela primeira vez, se havia batido a melhor equipe da Europa, uma das grandes candidatas para ganhar o Mundial de 1987. Os derrotados disseram ao mundo que Los Pumas eram bons, que se tinha que leva-los em consideração. Mas muitos estimaram que essa vitória argentina havia sido uma casualidade, já que os franceses se impuseram na revanche (23-15) e salvaram sua honra. Alguns observadores desmereceram o triunfo de Los Pumas, sem lembrar que em 1982 quinze argentinos derrotaram os Springboks [compondo a totalidade da seleção da América do Sul, vencedora oficial do duelo] e que, em 1983, superaram, em Brisbane, a Austrália. Apesar de tudo, o sensacional desempenho nesse primeiro test match contra a França não foi suficiente. Los Pumas necessitavam de outro resultado impactante para despejar todas as dúvidas. A casualidade quis que no mesmo ano de 1985 surgisse a segunda chance. A seleção da Nova Zelândia cancelou sua excursão à África do Sul. Só era conveniente substitui-la por algum país do hemisfério sul e, como consequência, foi escolhida a Argentina. Isso significou que Los Pumas poderiam enfrentar, na mesma temporada, os franceses e os All Blacks, considerado esse último a seleção mais capaz do mundo”.

A inconsequência dos jogadores que toparam a execrada empreitada dos New Zealand Cavaliers pode ser explicada pelo contexto ressaltado pelo segunda-linha Eliseo Branca à revista especial sobre o histórico da seleção lançada pelo La Nación em 2013: “nessa época, não havia a Copa do Mundo, de modo que esses test matches [como se chamam os jogos entre duas seleções adultas no rúgbi, em oposição a amistosos ainda muito comuns de seleções nacionais contra clubes ou combinados] te davam a medida de onde estavas parado”. No mesmo depoimento, relacionado exatamente àquele triunfo sobre os Bleus, Branca destacou também que “o rúgbi naquela época era diferente, tinha outras regras e não se protegia o jogo, como sucede hoje. Havia um só árbitro, porque os linesmen nem sequer contavam e, é claro, uma câmera não te seguia, como ocorre agora. Tinhas que ser um gladiador porque, se não, estavas perdido. Se o outro estava louco, você tinha que dobrar essa aposta e ser louco e meio”.

Outra imagem do livro do centenário da federação mostra os convocados contra os All Blacks: Miguens, Carosio, Branca, Ure, Milano, Allen, Cuesta Silva e Sanés; Campo, Petersen, Lonardi, Turnes, Gómez, Cash, Cubelli e Morel; Pedro Lanza, Madero, médico García Yáñez, presidente Martínez, Porta, técnico Silva, técnico Guastella, Holmgren e Juan Lanza

Ainda sobre o embate contra os franceses, em 22 de junho de 1985, Branca confessou que “na prévia, me vinha a ideia da morte a meus pensamentos. Nunca me tinha acontecido. Pensei que morreria pela emoção de sair a campo jogar contra esses monstros. No ônibus, antes de descer, sentíamos verdadeiro pânico. Não podíamos esconder. Mas depois, quando chegamos ao estádio do Ferro, quando vimos essa multidão, passou. Era como um circo romano. Te preparavas para isso. Te preparavas para uma batalha. O triunfo foi uma das maiores alegrias que me deu o rúgbi, e me deu muitas”.

É de se imaginar como esses pensamentos ganharam mais magnitude contra uma seleção ainda mais renomada. Em 2 de novembro, Guillermo Holmgren (avaliado com nota 7 na edição pós-jogo da revista El Gráfico), Juan Lanza (5), Diego Cuesta Silva (6), Fabián Turnes (6) , Pedro Lanza (5), Hugo Porta (8), Bernardo Miguens (6), Ernesto Ure (5), Tomás Petersen (7), Jorge Allen (7), Eliseo Branca (5), Gustavo Milano (5), Diego Cash (5), Alejandro Cubelli (6) e Fernando Morel (8) foi a escalação titular (Rafael Madero, com nota 5 ao substituir Miguens aos 22 minutos, e Sergio Carosio, com nota 6 ao entrar no lugar de Allen aos 42, foram os reservas acionados, em lesões dos titulares) que sorriu por último contra Kieran Crowley (5), John Kirwan (9), Warwick Taylor (6), Victor Simpson (5), Craig Green (5), Wayne Smith (6), David Loveridge (5), Mark Shaw (6), Murray Mexted (7), Jock Hobbs (9), Gary Whetton (7), Andy Haden (6), Brian McGrattan (8), Hika Reid (7) e Steve McDowall (5).

Eis abaixo, enfim, a íntegra do relato pós-jogo (respeitando-se a divisão original dos parágrafos e com eventuais observações nossas em colchetes) da El Gráfico, ele próprio de autoria de um dos jogadores que, na vitória em 1965 sobre a equipe B da África do Sul, originaram o apelido de Los Pumas à seleção – o ponta Nicanor González del Solar (também quem redigiu aquelas palavras da edição de fim de ano). Dois antigos colegas dele naquela excursão treinavam a seleção em 1985: o ex-oitavo Héctor Silva e o próprio treinador Ángel Guastella, que estava em nova passagem no cargo. Brian Lochore era o técnico oponente:

Um empate inesquecível

Foi um milagre. Os All Blacks jogaram um rúgbi superlativo no primeiro tempo e oprimiram Los Pumas. A pressão, a destreza para ganhar a bola nas distintas formações e a capacidade para provocar desnível numérico com os backs permitiram que os neozelandeses dominassem amplamente e que apoiassem quatro tries. Apesar disso, o resultado parcial não refletiu essa superioridade. Por quê? Porque o chutador Crowley, que havia sido muito certeiro no primeiro test match, só converteu o scrum-try. Depois, lesionado sem dúvida por um guincho repudiável, fracassou em seus intentos e, como Porta converteu três penais, Los Pumas ficaram relativamente próximos, apesar de que a diferença em campo houvesse sido abismal. Esse 18-9 resultou milagroso, pois os All Blacks teriam merecido uma vantagem mais ampla.

O que havia acontecido a Los Pumas, quem sete dias antes haviam jogado de forma estupenda e só tinham cedido no final? Se encontraram com uma equipe concentrada e sólida que não lhes deu vantagens e que, ademais, jogava com sagacidade. Por enquanto, Milano não saltou cômodo. Gary Whetton o empurrava no centro da linha e o mesmo faziam Mexted e Shaw com Ure no fundo. Os argentinos se preocuparam em frear a influência de McGrattan e de Haden na bola do line; conseguiram-no, mas à custa de romper sua própria estrutura, já que Allen formou adiante quando atiravam os All Blacks e Morel ficou muito longe de sua posição habitual.

Dois registros da edição pós-jogo da revista El Gráfico

Nos scrums, o panorama tampouco foi positivo. Los Pumas são corretos em sua postura e tornam a essa formação fixa em uma aposta de força, onde ganha o que tem melhor técnica. Os neozelandeses aceitaram o desafio no primeiro test match e não lhes foi bem. Na revanche, adotaram alguns truques: o pilar McDowall deslocava o ombro em Morel, baixava seus ombros ou se atirava quando os argentinos obtinham a bola. Em outras ocasiões, McGrattan, Reid e McDowall se levantavam e desarticulavam o empuxo argentino. Esses recursos confundiram os locais e o scrum não funcionou.

Restavam os mauls e rucks, onde os All Blacks são magníficos. Desde lines, depois de um tackle ou quando mandavam Simpson ao centro para chocar pelo meio do campo, os forwards da Nova Zelândia se agrupavam, penetravam a oposição argentina e lhe serviam a bola ao half scrum Loveridge, que não a aproveitou porque pecou de individualista.

Quando Los Pumas perdiam

E Los Pumas? Apenas aportavam fervor para defender, mas não tinham nenhuma chance de atacar nesse primeiro tempo. Para o cúmulo dos males, o primeiro try foi logrado com um dos recursos argentinos: um scrum a cinco metros.

Ainda quando não tinha a bola, Porta consertou para acertar dois penais e igualar. Mas em seguida chegaram mais três tries dos neozelandeses, apoiados por seus pontas. No primeiro de Kirwan, outra vez Loveridge surdinou escapar-se e Mexted abriu diretamente a linha. A bola foi ao potente ponta, que chegou após sortear um tackle de Cuesta Silva. No de Green, apareceram falhas argentinas. Loveridge chutou em carga, nenhum Puma embolsou a bola e Tayor aproveitou o presente. Combinou com Kirwan, que foi contido com esforço. Um maul e a arrancada do capitão Hobbs, de excelente tarefa na partida. No fim sobrou Green, que finalizou sem oposição.

Ainda quando Porta acertou outro penal, faltava o quarto try neozelandês. O ponta formou muito profundamente e teve espaço para correr, esquivar-se de Pedro Lanza e evitar um tackle de Rafael Madero. Foi a última conquista do primeiro tempo e a mostra do poderio neozelandês.

Porta e a reação

Los Pumas demonstraram que não se dão por vencidos. Isso foi o que mais admirei deles nessa partida, além da exímia perícia de Porta para chutar’. O comentou o capitão Jock Hobbs e sintetizou a indomável atitude dos argentinos. Porque no segundo tempo, apesar de que não repetissem a atuação da semana anterior, conseguiram mais roubadas, melhoraram a marcação, resolveram os problemas do scrum e, sobretudo, tiveram Porta. Com bravura e integridade, os argentinos frearam os All Blacks e permitiram que Hugo, o Maradona do rúgbi, mostrasse sua facilidade para pegar a bola, essa que não se vai com os anos. Aos dois minutos, embocou um drop goal. Quinze depois, lograria outro, e dois minutos mais tarde, o terceiro. Alcançou seu próprio recorde, conseguido em 1979 quando obteve nove pontos com três drops. As pessoas gritavam e o que parecia impossível se concretizava. Atrás haviam ficado os magníficos tries de Kirwan, a pujança neozelandesa em mauls e rucks, sua pressão e sua destreza para quebrar a defesa argentina nas extremidades. A partida estava empatada em 18-18 e os argentinos se engrandeciam. Os neozelandeses tiveram um scrum a cinco metros e Los Pumas os fizeram retroceder e lhes furtaram a bola. Sem dúvidas, havia mudado o panorama.

Um final histórico.

Ainda quanto todos se conformavam com a igualdade, o árbitro australiano Fitzgerald (de excelente tarefa) castigou Los Pumas por um tackle alto de Porta. Outra vez, os estrangeiros tomaram vantagem. Mas o próprio Porta foi vítima e protagonista da segunda igualdade. Viu que pisavam em Holmgren e empurrou um neozelandês. Shaw deu um soco em Hugo e o árbitro apitou um penal. Desde o meio-campo, o capitão argentino ficou na história: converteu esse penal e fixou o resultado em 21-21. Restava o último penal de Crowley que pegou na trave, a chance que Green desperdiçou no final e, sobretudo, o equívoco de Ure quando se levantou em um scrum a cinco metros, justo quando Los Pumas haviam dobrado os All Blacks e estavam a ponto de concretizar um scrum-try e conseguir a vitória. Tudo isso é anedota já. O decisivo, o histórico, é o empate ante os All Blacks. Isso é nosso e entrou na galeria de façanhas de Los Pumas”.

A abertura da matéria pós-jogo da El Gráfico: legenda da foto destaca as lágrimas de Porta, ao centro

A superioridade dos visitantes no primeiro tempo, com efeito, foi tamanha (refletida nas diversas notas elevadas distribuídas pela sua escalação na avaliação da El Gráfico, enquanto o herói Porta recebeu “apenas” um 8) que a própria revista especial de 2013 do La Nación reconheceu: “se a seleção argentina tivesse ganho, esse triunfo que todos festejaríamos radiantes teria sido uma conquista injusta. (…) Os All Blacks realizaram nessa oportunidade o melhor trabalho de toda a excursão. (…) Os All Blacks, durante o primeiro tempo, tiveram a bola e a utilizaram com maestria; na recuperação, também atuaram sem falhas, de tal maneira que os argentinos não tiveram tempo nem espaço para desenvolver um jogo criativo (…). No segundo tempo, tudo mudou”.

O próprio Porta assumiu na mesma revista: “foi curioso; sempre pensei que jogamos melhor a partida que perdemos”, em referência aos 33-20 sofridos em 26 de outubro, mencionados no relato da El Gráfico como um jogo onde a vitória teria escapado na reta final. A edição pós-jogo da El Gráfico, em perfil dele sob o título “O Maradona do Rúgbi” (a encerrar com a descrição que “o nome de Hugo Porta preenche trinta mil gargantas e todos pensamos na pequenez da palavra ídolo”), já havia registrado o depoimento dele de que “já não nos conforma uma boa atuação e nada mais. Talvez se pensou que depois do primeiro test match contra a Nova Zelândia iríamos ficar nisso. E não foi assim, ao contrário. Ficamos feridos, realmente feridos. Havíamos perdido uma oportunidade histórica e nossa meta era buscar outra, não ficarmos pensando na anterior”.

A revista pós-jogo ainda teve espaço para outros relatos à parte da descrição da partida. Ei-los também, respeitando-se a divisão original dos parágrafos e eventuais observações nossas em colchetes:

Saúde, Pumas! Demonstraram que já passou o tempo da aprendizagem e que estão maduros

Qual é o estilo de Los Pumas? Não é fácil defini-lo porque nossa seleção utiliza distintas modalidades, de acordo às circunstâncias das partidas. Talvez há alguns anos se identificasse com a técnica no scrum, mas, afortunadamente, agora são capazes de desenvolver um rúgbi mais completo. No desquite contra os All Blacks, mostraram uma capacidade de adaptação fantástica. Durante a semana, se analisaram os modos para contra-atacar o domínio dos All Blacks na boca do line. Então, Jorge Allen, que sempre jogou no fundo, foi o primeiro da fila. As limitações no scrum se corrigiram com o posicionamento recuado de Porta e com a retenção da bola no scrum.

Apesar disso, a gestão dos forwards neozelandeses complicou Holmgren igual, por mais que o half scrum melhorasse muitíssimo com respeito à primeira partida. Só no segundo tempo, quando Morel, Cubelli e Cash se encontraram à volta seus rivais, Ure jogou mais cômodo e cedeu a bola sem problemas a Holmgren.

É evidente que Los Pumas encontraram velocidade com a presença de Turnes, Cuesta Silva e Juan Lanza. O gêmeo Pedro [Lanza] nos deixou uma dívida porque não esteve tão ativo nem eficaz como seu irmão. Mas a seleção já não depende exclusivamente de Porta, por mais que Hugo tenha sido o artífice da igualdade nesse estupendo empate. No rúgbi, há aspectos-chave que definem os perfis da equipe. Se não se obtém a bola, não se pode atacar. Isso sucedeu a Los Pumas no primeiro período e, apesar disso, Diego Cuesta Silva, Holmgren e Juan Lanza fabricaram alguns ataques do nada. Isso só o pode fazer um conjunto capaz, atento ao que sucede no cotejo.

Porta saudando a multidão em dois ângulos, nos registros do La Nación na revista de 2013 e na capa pós-jogo da El Gráfico

No complemento, apareceu a integridade, a coragem. Porque nenhum baixou os braços, apesar do desconcerto. Tacklearam, disputaram palma a palma as formações móveis e saíram do confinamento. No primeiro tempo, não passaram da metade do campo; no complemento, posicionaram o jogo no terreno dos neozelandeses. Porta encontrou espaço e, graças à sua soberba pontaria, igualou em duas ocasiões.

Os All Blacks tampouco afrouxaram e continuaram avançando com esses forwards tenazes, que atravessavam a defesa argentina. Apesar disso, sempre houve alguém que os conteve. Várias vezes pareceu que caía o ingoal argentino, mas a defesa se manteve incólume. Graças a essa fibra se lograram doze tentos no complemento contra só três dos neozelandeses.

O significativo foi a confirmação de que Los Pumas não são rivais fáceis para ninguém. Os All Blacks vieram com seus melhores homens e participaram de dois test matches intensíssimos, onde as forças resultaram bastante parelhas. Los Pumas já estão maduros. Terminou o tempo de aprendizagem; chegou a época da competência de igual para igual contra qualquer rival.

Goodbye, All Blacks! Nos deixaram um modelo de rúgbi veloz e de grande trabalho coletivo

O dissemos logo depois da apresentação contra o CASI [clube recordista de títulos portenhos de rúgbi]. Os neozelandeses nos apresentaram um rúgbi positivo, baseado na praticidade e na unidade de seus atacantes. No desquite contra Los Pumas, tiveram quarenta minutos de alto nível. Quantas vezes haviam visto os argentinos uma equipe tão sólida, capaz de ganhar com limpeza a bola em todas as formações, de algemar seu oponente, de fabricar clarões para o arremate de seus três-quartos e de dobrar o rival nos aspectos em que, sete dias antes, haviam sido mais fortes? Nos atreveríamos a afirmar que só o haviam feito os All Blacks de 1976, que também nos haviam dado uma lição de facilidade e efetividade.

A técnica nas formações móveis deverá ser imitada. Nós conversamos várias vezes com Jock Hobbs (principalmente em Córdoba e em Mar del Plata) e nos sintetizou o segredo dos All Blacks: determinação. Os atacantes chegam ao maul ou ao ruck e avançam, passam por cima da bola ou empurram seu companheiro se a tem em suas mãos. Em nosso país, os censuraram porque pisavam no jogador caído. Eles entendem (e nós compartilhamos o ponto de vista) que o homem que obstrui a saída de bola deve ir-se. Se fica, atua com deslealdade e o rival pode pisar-lhe em sua busca pela bola. Sabemos que muitos não compartilharão a postura, mas vale a pena recalcar algo: eles não utilizam a ponta da chuteira, não machucam. Atuam com toda a palma e o dano ao caído não é grave.

O empate resultou sensacional para Los Pumas e, ao mesmo tempo, um banho de água fria para os neozelandeses. Haviam jogado tão bem o primeiro tempo que jamais poderiam pensar que a partida poderia se complicar. Foram incapazes de marcar um quinto try no complemento e isso não os satisfez. Admiraram Porta e a integridade de Los Pumas, mas são conscientes de que lhes escapou a vitória porque não privaram ao final, tal como haviam feito uma semana antes. De todos os modos, ganharam a admiração dos argentinos, que descobriram um modelo para jogar um rúgbi veloz, onde a bola se obtém de forma limpa, após um trabalho coletivo.

Como faziam McGrattan, Shaw ou Reid para avançar um maul, se do outro lado os argentinos os freavam. Marchavam porque era algum o que portava a bola mas haviam sete que o ajudavam. Nenhum atacante olhava; todos empurravam e trocavam o rumo da ofensiva quando os continham. O mesmo sucedia com os backs. Simpson entrava direto e, se o detinham, se dava volta, ciente de que seus atacantes o apoiariam. Só uma equipe com tanta integridade como Los Pumas pôde aguentar essas marteladas constantes que, entre outros resultados, esmagaram a Inglaterra por 42-15 em 1985.

Goodbye, All Blacks, adeus. Nos veremos no Mundial de 1987. Ali continuarão estes duelos entre neozelandeses e argentinos, artífices de dois test matches inesquecíveis”.

Hugo Porta em três momentos: descrito como “o Maradona do rúgbi” na edição pós-jogo; dividindo com Francescoli, a tenista Gabriela Sabatini e Claudio Borghi a capa da edição de retrospectiva da El Gráfico para 1985; e novamente com Francescoli, Sabatini e também Martín Palermo, Manu Ginóbili e Maradona na edição dos 90 anos da revista, em 2009, como um dos “heróis modernos”

O triunfo desse 14 de novembro de 2020, por sua vez, veio em um contexto periclitante às ambições argentinas: com a pandemia, o Super Rugby (espécie de Champions League do hemisfério sul, contra franquias das campeões mundiais África do Sul, Austrália e Nova Zelândia) acabou não disputado neste ano, impedindo avaliações atuais da seleção – que competia virtualmente na disputa sob o uniforme dos Jaguares, a única franquia argentina no torneio e se viu necessitada a distribuir improvisados treinamentos caseiros individualizados diante dos lockdowns. A pandemia também retirou a África do Sul na edição de 2020 do Rugby Championship, a competição anual que opõe os hermanos contra aqueles três países e que com isso readotou provisoriamente o nome de Tri Nations.

Outro fator que pesava contra os prognósticos de uma vitória inédita é que, mesmo que os All Blacks viessem de derrota para os australianos, haviam lhes surrado em dois duelos imediatamente anteriores – que ainda incluíram a maior goleada da história daquela rivalidade, um 43-3 sobre o Wallabies em plena Sydney em 31 de outubro. Todo um contexto que explica ainda mais as lágrimas do treinador argentino Mario Ledesma, nove anos após o marcante pranto com que ele pendurava as chuteiras ao ser substituído na eliminação pela mesma Nova Zelândia na Copa do Mundo de 2011.

A vitória histórica é mais um degrau da notável evolução dos Pumas, que em 2015 registraram sua primeira vitória sobre os sul-africanos e também sobre a virtual seleção do Resto do Mundo, os Barbarians; depois desse último sábado, só remanescem duas seleções invictas contra a Argentina. Uma dificilmente renderá tão cedo um reencontro: no único tira-teima entre os dois países, na excursão à África do Sul que rendeu o próprio apelido de Los Pumas aos argentinos, a então Rodésia levou a melhor. Porém, depois que tornou-se o Zimbábue, o país (justamente o único fora do alto escalão a já ter vencido os All Blacks, quando ainda era uma relativa potência colonial) ainda teve fôlego para aparecer nas duas primeiras Copas do Mundo, mas mesmo sua bolha rugbier não passou imune às desventuras econômicas da presidência de Robert Mugabe e despencou até a nível continental.

A outra seleção é a dos British and Irish Lions, o combinado das quatro nações britânicas reunido somente a cada quatro anos para excursões aos três campeões mundiais do hemisfério sul – mas que por muito pouco não caiu para a Argentina em plena Londres ainda em 2005, alcançando o empate já sob cronômetro estourado.

Mas ainda vale resgatar outros pontos de 35 anos atrás. Em tempos onde a federação internacional ainda não lançava uma premiação oficial de melhor jogador do mundo, só criada em 2001, a distinção cabia à imprensa. E o semanário francês Midi Olympique, de Toulouse e “uma das maiores autoridades do jornalismo mundial de rúgbi”, reconheceu em Porta a distinção para o ano de 1985, o que foi bastante destacado na edição de retrospectiva daquele ano lançada pela El Gráfico em janeiro de 1986 – Porta, por exemplo, dividiu capa com Enzo Francescoli e Claudio Borghi, o rosto do Argentinos Jrs campeão da Libertadores de 1985. Eis o perfil dedicado ao camisa 10 da bola oval:

“O exemplo e a fama de Hugo Porta excedem o uso doméstico. Mais de uma década capitaneando a uma equipe que já havia se convertido em lenda e que em 1985 alcançou o maior nível mundial: Los Pumas. À frente deles entrou nos grandes templos rugbísticos do mundo: Twickenham, o Parc de Princes, Ellis Park ou qualquer outro. Com a mesma humildade e o mesmo temperamento. Com a mesma grandeza com que se emocionou e chorou quando no Sheraton Hotel levantou o Olimpia [prêmio anual concedido ao melhor atleta argentino dentre todos os esportes] e recebeu uma ovação que era agradecimento. Por tudo o que fez, por tudo o que significa como esportista. Um sentimento que também o mundo conhece. Porque se algo faltava a este arquiteto, torcedor do Boca, lhe chegou à sua árvore de natal através da designação do Midi Olympique: o melhor jogador do mundo. Um reconhecimento a toda uma trajetória brilhante.

O semanário francês entrega o resultado final de sua enquete em sua edição n. 3.754, de 30 de dezembro de 1985, e em sua capa, sobre o logo, titula: ‘os dez melhores jogadores do mundo: Porta triunfou!’. Logo, na página 10, se encontra a exibição editorial do acontecimento e Jacques Verdier faz o perfil dos eleitos e o porquê da eleição, começando assim sua nota:

A retrospectiva de 1985 da El Gráfico destacando Hugo Porta como melhor jogador do mundo

‘Se poderá discutir indefinidamente sobre seu valor absoluto, emitir certas reservas sobre sua rapidez para lançar ao ataque a sua linha de três-quartos, dizer que joga excessivamente com os pés ou que todos jogam para ele. Mas como permanecer insensíveis à sua formidável campanha e aos resultados obtidos em suas apresentações internacionais que têm assegurado em grande parte o sucesso de Los Pumas ante a França e o empate que conseguiram com os All Blacks em Buenos Aires?

Pesadelo dos franceses depois do primeiro test match na Argentina, se deve a ele a ‘bagatela’ de 21 pontos que desestabilizaram os neozelandeses.

Jamais, sem dúvida, um jogador internacional teve tanta influência este jogo, a ponto de permitir a uma formação de nível intermediário de um país em desenvolvimento transformar-se em um possível candidato para a futura Copa do Mundo. A suas destacáveis qualidades, Hugo Porta soma a regularidade, a precisão e um belo desdobramento tático-técnico, digno de um grande do rúgbi.

Para este natal, Midi Olympique o consagrou com um belo presente: o Jogador n. 1 do Mundo. E viva a Argentina!’.

Para o semanário francês, editado em Toulouse, os dez melhores do mundo são estes: 1º) HUGO PORTA (Argentina). 2º) SERGE BLANCO (França). 3º) JÉRÔME GALLION (França). 4º) JOHN KIRWAN (Nova Zelândia). 5º) MARK SHAW (Nova Zelândia). 6º) ERNESTO URE (Argentina). 7º) PHILIPP MATTHEWS (Irlanda). 8º) ROBERT NORSTER (Gales). 9º DIDIER CODORNIOU (França). 10º) RORY UNDERWOORD (Inglaterra). E, como se vê, não só está Hugo Pota, mas também Ernesto Ure, considerado como o melhor oitavo do mundo e de quem Verdier diz: ‘um grande jogador com as mãos e um combatente exemplar, atuou grandemente ante França e Nova Zelândia’. A eles devem somar-se Petersen, Cuesta Silva, Turnes e Allen, que integraram a lista de 51 nomeados para ser escolhidos como nº 1. Um reconhecimento total para nosso rúgbi.

Hugo Porta, o melhor do mundo. Hugo Porta, um orgulho argentino. O grande protagonista do esporte em 1985”.

Essa matéria da edição de retrospectiva também contou com depoimento do próprio secretário geral da redação do Midi Olympique, Henri Nayrou, que deu mais detalhes sobre a escolha: “a eleição do melhor jogador do mundo se realiza sobre a base da redação do Midi Olympique mais o voto que pedimos a jornalistas britânicos de reconhecida trajetória. Como primeiro passo, se faz uma seleção de jogadores para estabelecer uma lista de prováveis. (…) Dessa lista de 51 rugbiers cada um vota pelo melhor e foram sua seleção ideal.

Evidentemente, se escolheu Hugo Porta como melhor jogador do mundo pelo seu valor intrínseco, e porque foi o artesão da vitória de Los Pumas contra França no primeiro test mach em junho passado, além de marcar todos os pontos no empate contra os All Blacks. Com um adicional, para nós sumamente importante: o advento da Argentina nas nações maiores do rúgbi mundial a 18 meses da Copa do Mundo. Quisemos marcar este feito e dar-lhe uma luz particular. Voltando ao plano individual, Porta é um artista do rúgbi, tanto com as mãos como com os pés. Tem uma técnica individual perfeita e um espírito notável. Sabíamos que era um grande do rúgbi mundial, sabíamos que era um grande capitão, faltava somente que sua equipe estivesse no maior nível mundial. Também, é certo, a anulação da excursão da Nova Zelândia pela África do Sul nos privou de elementos de comparação para jogadores como [Dan] Gerber, [Naas] Botha ou [Rob] Louw, por exemplo, que são os grandes expoentes sul-africanos.

Pessoalmente, vi três vezes Porta jogar e me pareceu genial, e ainda que algum dos jornalistas da redação só o tenham observado em uma atuação, quiseram simbolizar nele como jogador a escalada da Argentina. (…) Penso que a de Hugo Porta foi uma excelente eleição e que Serge Blanco é um digno delfim”.

Naquela revista, ainda houve uma página com duas colunas: um listando os pontos positivos do ano, e outra com os tristes. Fechando a coluna nomeada “Estamos contentes”, está a razão “por Hugo Porta”.

Holmgren em registro da revista de 2013 do La Nación. E a retrospectiva de 1985 da El Gráfico colocando Hugo Porta como motivo culminante dos momentos felizes do esporte argentino no ano

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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