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Manuel Seoane, o primeiro argentino carrasco (duplo) do Brasil

Contra a marcação de Pennaforte na Copa América de 1925. Marcou quatro gols no Brasil por aquele torneio

Se o referencial for gols, o primeiro carrasco argentino do Brasil terá sido Carlos Izaguirre. E ele também terá sido o primeiro carrasco duplo: abriu o placar e marcou ainda outra vez no 3-0 que encerrou o primeiro duelo das duas seleções, em 1914. Mas eram tempos cordiais: aquele jogo valeria a primeira Copa Roca, mas os hermanos não criaram obstáculos em transforma-lo em amistoso diante da falta de descanso dos vizinhos, cujo atraso na chegada naval os fizeram chegar muito em cima da hora. Dias depois, valendo a taça, o Brasil venceu e seu goleiro foi até carregado pela torcida argentina. Só na década de 40 que o clássico ganhou relevo em detrimento da rivalidade da Albiceleste com o Uruguai. Mas já haviam antecedentes condimentados, nas Copas América de 1925 e 1937. Maior artilheiro do amadorismo argentino, Manuel Seoane era a figura em comum nas duas batalhas. Ontem fez-se 45 anos da partida de La Chancha ou El Negro, ídolo histórico do Independiente também.

Negro é um apelido comumente empregado na embranquecida Argentina mesmo a quem tem mais fenótipo indígena, como era o caso de Seoane, do que propriamente africano. E Chancha é uma alcunha comum a barrigudinhos, algo menos suscetível a debates antropológicos; Seoane era mesmo um jogador roliço e a edição especial da revista El Gráfico que elegeu em 2011 os cem maiores ídolos do Independiente deixa mesmo claro: “não era rápido, mas era craque”. E como era: “os quilos a mais que tinha por sua tendência a engordar não eram nem de comida nem de vícios: eram de futebol… La Chancha tinha uma incrível habilidade para mover-se em espaços reduzidos, grande manejo da bola, excelente cabeceio, terrível potência para arrematar com ambas as pernas e muita malícia”.

Lançado em 2010, o livro Quién es Quién en la Selección Argentina traça um perfil similar: “apesar do seu físico volumoso, pesado, típico dos clássicos atacantes tanques que deu ao futebol argentino a etapa amadora, (…) era hábil e ainda que tivesse tendência à obesidade, se movia muito bem em espaços reduzidos. Era bom driblador, malandro até além do limite e preciso com a bola nos pés, tinha dotes de estrategista, mas – fundamentalmente – possuía uma eficácia fantástica frente à meta adversária. Potente e atrevido (…). Foi um goleador infalível, temido na área rival e um notável cabeceador”. Compensava a falta de agilidade com grande senso de antecipação. E sabia usar o corpanzil para não tirar a canela nas divididas. Ou os cotovelos mesmo. Como poetizou já em 1934 a El Gráfico, com ele na área “cada cruzamento originava um terremoto”.

Seoane nasceu em 19 de março de 1902 em Piñeyro, subúrbio de Avellaneda. Com 14 anos, já tinha 1,70 metros e 82 quilos. Seu primeiro clube foi o Sudamérica, equipe local, de onde passou ao Progresista, do bairro de La Mosca. Mas foi jogando em 1920 pela equipe da fábrica têxtil onde era operário que ele foi descoberto por um delegado do Independiente, Santiago García. Em sua estreia pelo time B do Rojo, deixou três gols em um 5-1 no Estudiantes. Não tardou muito a ser promovido ao principal; já havia disputado amistosos contra River e San Lorenzo que o talharam bem para encarar logo o Racing como primeiro adversário oficial, em 3 de abril de 1921.

Antes do 3-2, com gol dele, sobre o River pela 5ª rodada do primeiro título argentino do Independiente: Guastavino, Manuel López, Isusi, Collazo, o árbitro Guassone e Seoane; Gravano, Goycoechea, Ferro, Orsi, Ronzoni e Scoffano

Aquela partida precisou ser suspensa no intervalo devido a fortes chuvas e foi retomada já em 3 de julho. Ele não chegou a marcar ali, mas somaria logo dezoito gols naquela primeira temporada (e gradualmente marcaria quatorze vezes no Clásico de Avellaneda). O primeiro deles, já no compromisso seguinte, em 10 de abril, sobre o Lanús, aproveitando o rebote que o travessão proporcionou em um arremate do colega Guillermo Ronzoni. O Independiente terminou em terceiro, colocação ofuscada pelo título de 1921 ter sido ganho por um Racing que seguia conservando a espinha dorsal do elenco hepta seguido entre 1913 e 1919, ainda um recorde.

Seoane, porém, causou impacto para desde ali aparecer pela Argentina. Havia desde 1919 um cisma no futebol argentino, no qual a seleção oficial representava somente os clubes da outra liga, liderada por Boca e Huracán. Isso não impedia que a associação rebelde que agrupava Independiente, Racing, River e San Lorenzo formasse sua própria seleção, cujos duelos posteriormente seriam convalidados com a reunificação das ligas em 1927. Em 17 de setembro de 1921, ele estreou pela seleção dissidente em um 3-1 sobre um combinado da capital chilena. E em seguida já guardou três gols em um 4-1 sobre o próprio Chile.

O problema é que apenas a seleção da outra liga podia representar oficialmente a Argentina nas Copas América e assim ele não foi convocado ao torneio. Mas seguiu fazendo seu papel. E como: no torneio de 1922, El Negro embasbacou a todos ao marcar 55 vezes ao longo de quarenta rodadas. No profissionalismo, quem mais chegou perto foi justamente o único a superar Seoane na artilharia máxima do Independiente e do clássico contra o Racing, o paraguaio Arsenio Erico, maior goleador também da própria liga argentina; este chegou aos 47 gols no torneio de 1937. O recorde anual passou em 1975 a ser de Héctor Scotta, que acumulou 60, mas somando os que fizera no Torneio Metropolitano com os do Torneio Nacional.

Sem surpresas, a taça de 1922 ficou com o Independiente, pela primeira vez campeão argentino. Seu ataque, onde brilhava também o jovem Raimundo Orsi, futuro vencedor da Copa de 1934 pela Itália, foi apelidado de Los Diablos Rojos, alcunha depois estendida a todo o clube. Mesmo atuando como meia-esquerda antes do peso da idade desloca-lo ao posto de centroavante de banheira, Seoane marcou mais de metade dos gols daquele ataque, que totalizou 97. La Chancha deixou dois gols cada em cada clássico com o Racing (derrota de 3-2 e vitória de 4-2) e colecionou tripletas: o chamado hat trick saiu no 4-0 sobre o San Isidro, no 4-1 sobre o Estudiantil Porteño e no 5-0 no Vélez. Já o poker foi alcançado contra o Quilmes, em um 6-0, e sobre o Estudiantes de Buenos Aires, onde marcou os quatro gols do jogo. E teve manita: na rodada seguinte a essa partida, ele fez cinco nos 6-0 sobre o Palermo…

O dia do gol olímpico: ex-jogador Pedro Calomino convertido em bandeirinha, o técnico Ángel Vázquez, Segundo Médici, Américo Tesorieri, Mario Fortunato, Emilio Solari, Florindo Bearzotti e Adolfo Celli; massagista Kanichi Hanai, Domingo Tarasconi, Ernesto Celli, Gabino Sosa, Seoane e Cesáreo Onzari.

O campeonato adentrou o ano de 1923, com o campeão jogando pela última vez já em 6 de maio, um 4-0 com dois gols do matador sobre o Barracas Central. Naquele mesmo ano, a seleção dissidente enfrentou o Third Lanark, de Glasgow. Em tempos em que a Escócia tinha futebol profissionalizado e falava tão grosso como a Inglaterra ou talvez até mais, por ter a vantagem no clássico britânico até os anos 80 (o Motherwell inclusive venceria a Albiceleste em 1928 mesmo com um já consagrado Seoane do outro lado), El Negro abriu o marcador aos dez minutos do segundo tempo, só igualado já no penúltimo minuto.

Aquela partida fez história: exatamente por conta do profissionalismo do adversário, a Argentina precisou, pela primeira vez, usar como ele números nas costas. Coube a Seoane a honra histórica de ser o primeiro Diez da Argentina. Naquele ano, ele também ganhou o campeonato argentino de seleções regionais, fomentado pelos dissidentes e bastante prestigiado na época; com ele, a seleção da capital triunfou por 3-2 na final contra Mendoza. No restante do ano de 1923, ele seguiu producente para o Independiente, que esteve no páreo pelo bi – o Rojo terminaria vice a três pontos do San Lorenzo, em torneio finalizado em janeiro de 1924.

Mas Seoane brilhou sobretudo como ausente: foi desfalque sentido na reta final, após uma suspensão de um ano imposta por agredir o árbitro em duelo contra o River ainda em 11 de novembro. A sanção não lhe impedia em nada de seguir jogando por alguma equipe do outro campeonato e assim ele juntou-se ao El Porvenir na liga duopolizada por Boca e Huracán. O Porve ficou em quinto lugar em seu torneio de 1924 e seu artilheiro passou a ser empregado pela seleção “oficial”, estreando com gol em um 3-1 sobre o Paraguai dentro de Assunção em 15 de maio daquele ano, pelo troféu binacional Copa Chevallier Boutell. Em julho, a seleção enfrentou ainda por quatro vezes o Plymouth Argyle, outro time modesto do Reino Unido que ainda assim chegava com banca de clube profissional na terra “dos reis do futebol”.

De fato, os córnicos arrancaram duas vitórias por 1-0, mas tiveram dois trocos: um 3-0 com La Chancha fechando o placar e outro 1-0, com gol dele. Enquanto isso, o rival Uruguai vencia as Olimpíadas de Paris. No regresso da Celeste, os rivais programaram três amistosos entre setembro e outubro e Seoane e os argentinos esteve invicto nos três, marcados pelo primeiro gol olímpico oficial do futebol. O Uruguai teria seu troco ao fim do ano, retendo o troféu da Copa América realizada em Montevidéu. Mas a América do Sul não seria o limite a La Chancha: no primeiro semestre de 1925, o Boca, que já era o clube mais popular do país empreendeu a primeira visita de todo o futebol argentino à Europa.

Suas outras camisas: pelo sumido El Porvenir, chegou à seleção. Pelo Boca, ainda é o maior artilheiro do clube em jogos na Europa

Os xeneizes se reforçaram pontualmente com craques de outros times, a exemplo do próprio autor do gol olímpico (Cesáreo Onzari, do Huracán) e de Seoane, cedido pelo Porvenir. Pois El Negro não só foi o artilheiro da excursão como segue sendo o jogador que mais gols fez pelo Boca na Europa, em turnê consagradora. Foram doze em dezesseis jogos, com destaque aos dois no Sarrià para cima da lenda Ricardo Zamora no 3-0 sobre o Espanyol; ao que abriu o placar no 1-1 com o Bayern Munique; os dois do 2-0 com o Eintracht Frankfurt e três no 4-2 sobre o combinado de Paris – cujos times dominavam naquele período a Copa da França, antes da introdução do campeonato francês.

Além da genuína habilidade, Seoane sabia aproveitar o fator surpresa que causava como anônimo naquela terra: “quando os goleiros de equipes estrangeiras o veem aparecer nos quadros locais, interrogam se é o massagista ou o treinador e até algum mal-intencionado chegou a inquirir se tratava-se do presidente do clube”, chegou a publicar-se. Ele ainda atuou mais duas vezes pelo Boca, no regresso à Argentina em julho, em amistosos contra Newell’s (3-0) e o combinado rosarino (1-0). Os xeneizes, que abriram mão de participarem do campeonato argentino, foram apontados oficialmente como campeões de honra de 1925.

Sem a folga clubística, Seoane voltou a tempo de contribuir com a melhor campanha histórica do El Porvenir, o terceiro lugar naquele mesmo ano. Ao fim de 1925, foi a vez de enfim se consagrar na Copa América. Seus seis gols foram um recorde de artilharia na ocasião e metade veio como um hat trick para cima do Brasil, um 4-1 em um primeiro duelo. Foi uma edição esvaziada do torneio, que compensou programando turno e returno entre os três participantes. No jogo da volta, no estádio do Sportivo Barracas, o Brasil até abriu 2-0, mas aos 10 do segundo Seoane já anotava o gol do empate suficiente ao título sobre a seleção de Friedenreich, em derrota que ganhou contornos lendários como “Guerra do Barracas” no Brasil – que procuramos desmistificar nesse Especial.

Com o fim daquela punição de um ano, ele voltou ao Independiente em 1926. Sem ele, o clube pudera no máximo lograr o bicampeonato da Copa Competencia, espécie de Copa Argentina da época, nas edições de 1924 e 1925. Mas o campeonato ainda escapou por três pontos para o San Lorenzo em 1924 e o campeão de 1925 fora o Racing. Com seu goleador de volta, o Rojo brilhou. Venceu o campeonato argentino de 1926 com 75 gols em 25 jogos – basicamente três por rodada.

Um de seus quatro gols sobre o Brasil na Copa América de 1925

O artilheiro do torneio? Seoane, com 25 gols, todos decisivos em um torneio definido nos detalhes, um ponto acima do San Lorenzo. Ainda que ele seguisse precisando conciliar os jogos com seu emprego na indústria têxtil como classificador de lãs, tendo de precisou comparecer normalmente no trabalho no dia seguinte ao título. Era preciso aquecer as vendas natalinas de 1926… a reconquista da liga ofuscou com o passar dos anos outro feito: o Independiente foi tri seguido da Copa Competencia, o que lhe permitiu ter a posse definitiva desse troféu na época. A campanha, que começou com uma fase de grupos, já começou com o Clásico de Avellaneda e com El Negro marcando os dois gols do duelo.

San Isidro (3-0), Sportivo Barracas (4-0) e Almagro (3-0) tampouco foram páreos e os Diablos Rojos avançaram para as semifinais, já em janeiro de 1927. O 0-0 com o River no estádio neutro do Sportivo Barracas forçou um jogo-extra ali mesmo cinco dias depois, decidido aos 21 minutos pela cabeça certeira de Seoane. Na decisão, freou qualquer reação da surpresa Lanús ao anotar o terceiro de um 3-0 descontando só aos 42 minutos do segundo tempo pelos grenás.

Em 1927, as associações separadas em 1919 se reunificaram, permitindo um retorno de Seoane ao torneio de seleções regionais após quatro anos. Defendeu dessa vez a seleção da região metropolitana de Buenos Aires, que triunfou sobre a da própria capital no primeiro mata-mata, com gol dele nos 2-1. Na decisão, marcou o gol do título no 2-1 de virada sobre Mendoza, em 12 de outubro. A reunificação permitiu, sobretudo, que El Negro voltasse à seleção oficial após um ano e meio. Naquele ano, esteve nos dois duelos não-oficiais da Argentina contra o Real Madrid (0-0 e 3-2) e, principalmente, na primeira conquista que a Albiceleste teve fora de casa na Copa América.

Ela venceu a edição sediada em Lima com La Chancha brilhando sobretudo nos 7-1 sobre a Bolívia, onde deixou dois gols. Além da taça, o torneio também premiava seus dois primeiros colocados com as vagas olímpicas do futebol sul-americano para os Jogos de Amsterdã. O Independiente não foi além do sexto lugar no campeonato reunificado de 1927, mas Seoane, autor de três gols em vitória de 7-4 no Clásico de Avellaneda, era nome certo para as Olimpíadas – celebrado naquele mesmo 1928 nos versos do tango “Patadura”, famoso hit futebolístico de Carlos Gardel. Ainda no primeiro semestre, venceu o goleiro uruguaio no 2-2 contra o Peñarol que inaugurou a Doble Visera, o mítico estádio de cimento (modernidade para a época) que foi a casa roja até 2006.

Juan Evaristo, Ludovico Bidoglio, Octavio Díaz, Humberto Recanatini, José Fossa e Luis Monti; Alfredo Carricaberry, Pedro Ochoa, Manuel Ferreira, Seoane e Segundo Luna: Argentina campeã de 1927. Mas Seoane não iria às Olimpíadas… por amor. Ou ciúme

Mas o craque recusou ir à Holanda para não deixar sozinha a esposa com quem acabara de casar. Mesmo que o amadorismo ao fim dos anos 20 já fosse de fachada, o complemento de renda que o clube passava sob vista grossa a Seoane era insuficiente para bancar o luxo de levar a acompanhante à viagem. A seleção buscou então um atacante de características similares às dele: o gordinho Roberto Cherro, maior artilheiro do Boca no século XX e que tinha em El Negro um ídolo e espelho assumido. Como se sabe, o Uruguai terminou novamente campeão olímpico.

A amargura ficou maior no regresso: em 30 de agosto, as duas seleções se reencontraram em Avellaneda. E deu Argentina, 1-0, gol de Seoane. Que naquele mesmo mês, no dia 11, também marcou três gols em um 4-1 sobre o Barcelona. Em 1934, ele ainda guardava a camisa usada naquele jogo contra os catalães sem lava-la e gostava de relembrar os dizeres do presidente blaugrana: “nós temos um mago, que é [Josep] Samitier, mas vocês têm onze, caramba!”.

No fim de 1928, ele ainda faria história como autor do primeiro gol noturno do futebol argentino, pouco depois do início de um jogo iniciado já às 22h10. Foi em 7 de dezembro, abrindo o placar do combinado vermelho e branco, virtual seleção B da Argentina, contra os titulares das Olimpíadas, na solenidade que inaugurou os refletores do antigo estádio do Vélez no bairro de Villa Luro. Seu Independiente, do seu lado, terminou a seis pontos do título do torneio de 1928, só finalizado ao fim do segundo semestre de 1929. O grande momento do clube para aquele ano veio em seguida.

O Chelsea veio à América do Sul como outro clube britânico modesto na terra natal, mas com aura divina. Com efeito, os profissionais dos Blues venceram por 1-0 a seleção argentina em 30 de maio. Seoane não jogou ali, mas enfrentou os londrinos em 15 de junho, pelo Independiente. Abriu o placar no empate em 1-1 e sua imagem icônica prestes a soltar o pé para marcar o gol virou até capa de disco (Revolución) lançada em 1995 pelo grupo Juana La Loca. Seoane também marcou o único gol do duelo contra o campeão italiano, o Bologna, em 31 de agosto. Ao fim do ano, seu clube ficou a sete pontos da classificação à final do campeonato de 1929. Ainda assim, El Negro foi o artilheiro da edição, com 13 gols em 16 jogos.

Seus quase 90 quilos não impediam categoria para marcar sobre o Chelsea em 1929 (à esquerda) ou para essa impulsão contra o Boca, em registro de 1931

Seoane ainda foi chamado em novembro para a Copa América sediada em Buenos Aires, mas limitou-se ao duelo contra o Peru. Cherro, com média de gols em 75% de seus jogos pela Albiceleste, soubera lhe suprir bem demais a ausência e La Chancha acabaria esquecida na convocação à Copa do Mundo de 1930. Para o atacante, a glória em 1930 precisou se resumir ao título no campeonato argentino de seleções após três anos, com cinco gols em seis jogos pela seleção do região metropolitana – sobretudo dois no 3-0 sobre o Chaco, o da vitória de virada por 2-1 sobre Mar del Plata nas quartas-de-final e um na decisão, no 3-1 sobre a surpresa Bragado… duas semanas depois da Argentina ser vice mundial.

Já no campeonato de clubes de 1930, o Rojo caiu para sétimo. Foi o último torneio em que os principais clubes do país ainda se prenderam oficialmente ao amadorismo, período em que ninguém mais fez tantos gols como Seoane: foram 259, dos quais 240 foram defendendo o Independiente. Em 1931, os 18 principais times então se rebelaram contra a associação, descontentes em dividir igualitariamente a renda dos duelos contra equipes de torcidas deficitárias. Seoane, entrando nos 30 anos, marcou em oito partidas, incluindo nos dois primeiros clássicos profissionais contra o Racing (derrota de 7-4 e vitória de 4-1). Sua tarde de glória foi contra o Lanús, onde marcou quatro vezes no 4-1.

Parecia entrar no ocaso da carreira, mas em 1932 reapareceu com 23 gols. No caminho, deixou o dele no 2-0 fora de casa sobre o Boca, três em 6-3 fora de casa sobre o Chacarita e outros três em 4-0 no Quilmes, um no 5-0 que encerrou a invencibilidade do River na 16ª rodada, um em 2-0 fora de casa no Clásico de Avellaneda, os dois do triunfo de 2-1 no returno com o Boca… assim, naquele mesmo ano ele ainda mereceu um perfil da El Gráfico que o descrevia sob os olhares de um garoto de rua (“vamos jogar uma pelada? Eu sou Seoane!”), de um sociólogo (“a camisa vermelha do Independiente colocada sobre o odre repleto de seu ventre é como uma alegoria bolchevique que simboliza as ideias avançadas, cobrindo o capitalismo centralista”) ou de um torcedor do Racing (“homem a homem, não temos medo dos do Independiente. Mas o ponto é que Seoane não é um homem. É uma fera!”)…

O rival, porém, soube atrapalhar tudo na rodada final. O Rojo era líder, mas foi derrotado em casa e forçado a um jogo-desempate com o River. Os 5-0 já eram passado e o Millo venceu por 3-0, levantando seu primeiro troféu profissional e encerrando jejum de doze anos. O torneio agridoce de 1932 foi o canto do cisne do veterano. Ele ainda entrou em campo de modo irregular pelo Independiente, a última vez em jogo despedida contra os uruguaios realizado em 22 de agosto de 1934, que rendeu-lhe uma casa própria em Quilmes a partir da coleta feita em seu benefício. Em 1933, já havia se improvisado como treinador dos colegas.

Argentina campeã de 1937: O preparador Lago Millán, o técnico Seoane, o goleiro Estrada, Iribarren, Lazzatti, Fazio, Cuello, Martínez (jogou no Fluminense), Emeal (jogou no Vasco), o goleiro Bello e o massagista Sola; Minella, Colombo, Blotto, García, Zozaya e De la Mata; Tarrío, Varallo, Ferreyra, Cherro, Guaita, Scopelli, Peucelle e o ídolo são-paulino Sastre

Não chegou a ter êxito, com o Rojo caindo ao sexto lugar, mas seu renome ainda era alto a ponto de a AFA convidar-lhe em 1935 para treinar a seleção. A ele na verdade cabia ser no gramado o rosto dos dirigentes, os reais responsáveis pela escalação, cabendo-lhe apenas ver quem devia ser substituído no calor dos jogos e passar orientações pontuais. A Argentina ficaria no vice da Copa América de 1935 ao perder na rodada final o clássico com o Uruguai, mas a revanche não tardaria a El Negro, mantido no cargo para a edição realizada em Buenos Aires na virada de 1936 para 1937. Brasil e Argentina terminaram igualados e forçados a um jogo-extra, no que foi virtualmente a primeira final entre as duas seleções.

Assim como em 1925, a imprensa brasileira dramatizou bastante a derrota, chegando a haver manchete “Quase Chacinados” do Jornal dos Sports. “Na verdade, perdemos porque eles jogaram melhor”, assumiria décadas depois à Placar o atacante Tim sobre o tal “jogo da vergonha”. Os dois gols do título saíram dos pés de uma das alterações pontuais exercidas por Seoane: o adolescente Vicente de la Mata entrou no decorrer do jogo e dali se coroou para ser o herdeiro do treinador também como maestro de um Independiente campeão. A AFA, contudo, optou por não participar das eliminatórias à Copa do Mundo de 1938, em resposta indignada à perda da sede do evento para a França, por acreditar no dever de que o torneio se alternasse entre Europa e América do Sul como continente anfitrião.

Seoane seguiu buscando seu sustento no pós-futebol empreendendo uma loja esportiva, mas não prosperou e perderia até a casa. Enquanto muitos craques de seu tempo caíam no esquecimento, La Chancha seguia sendo exaltada por seus pares. Pentacampeão italiano com a Juventus nos anos 30 e posterior técnico do timaço do River apelidado de La Máquina nos anos 40 e da própria Juventus na virada dos anos 50 para os 60, Renato Cesarini exaltaria em depoimento dado já em 1965 que o maior jogador que vira fora Seoane mesmo – que, no fim da vida, já vivia de favor no alojamento que o Independiente mantinha em Quilmes.

Uma última homenagem em vida veio em uma produção onde a El Gráfico juntou ele e seus históricos sucessores com a camisa 10 do Rojo – uma dinastia que seguiu ainda nos anos 30 com Antonio Sastre, ídolo também são-paulino que tinha em Seoane um ídolo antes de ser colega dele no time vice-campeão de 1932 e comandado na seleção vencedora da Copa América de 1937; nos anos 50, o número foi honrado por Ernesto Grillo sobretudo em um 6-0 sobre o Real Madrid dentro do Santiago Bernabéu em 1952, antes de Grillo marcar sobre o mesmo clube pelo Milan na final da Liga dos Campeões de 1958; nos anos 60, Mario Rodríguez fizera o plástico golaço do primeiro título do clube na Libertadores. A bola da vez nos anos 70 já era um jovem, mas já brilhante Ricardo Bochini, ídolo-mor do clube e de Maradona.

Seoane pôde partir em Quilmes naquele 21 de agosto de 1975 como uma última alegria, proporcionada pelo elenco regido pelo Bocha: o tetracampeonato seguido na Libertadores, garantido dois meses antes.

Registro da década de 70 com Mario Rodríguez, Ricardo Bochini, Antonio Sastre, Seoane e Ernesto Grillo: os grandes camisas 10 dos anos românticos do Independiente
https://twitter.com/afa/status/1296839484466552832

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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