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10 anos do impossível: Rosario Central 0-3 All Boys, o “Rosariazo”

Vella, com o indicador apontado para cima, decreta a subida do All Boys, logo após marcar o terceiro. Atrás dele, ao meio, o desolado Guillermo Burdisso

O penúltimo fim de semana de maio de 2010 foi gordo para a família Cambiasso. No dia 22, o membro mais ilustre festeja a tríplice coroa com a Internazionale, campeã europeia após 45 anos. No dia 23, foi a vez do seu irmão encerrar outro tabu: Nicolás Cambiasso, já um veterano, foi o goleiro a inspirar seus colegas de All Boys a voltarem à elite após 30 anos. O clube do bairro portenho da Floresta disputava uma repescagem com o tradicionalíssimo Rosario Central, que voltou de Buenos Aires com um empate em 1-1. Mas que há 10 anos viveu o Rosarioazo: um incontestável 3-0 dos alvinegros, a coroar a pessoa, sobretudo, do treinador José Pepe Romero.

O próprio Cambiasso mais famoso exaltou sem clubismos, em 2012, ao ser indagado pela El Gráfico sobre quem seria o melhor técnico do mundo. O título da nota foi exatamente a surpreendente resposta: “o melhor técnico do mundo é Pepe Romero”. O volante logo emendou os porquês: “e te falo sério. Em uma realidade com a do All Boys, subir duas categorias, seguir no cargo tantos anos e manter a humildade, e isto lhe digo porque tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, não é nada fácil. Não creio que o melhor técnico seja o que ganha todos os títulos ou o que tem os melhores jogadores. Atenção que é mais fácil ser técnico pedindo jogadores de 70 milhões, né?”.

Esteban também classificou aqueles dias como os melhores da vida esportiva: “o mais feliz, o dia seguinte ao que ganhamos a Champions com a Inter e consumamos o triplete. Na sexta-feira, ganhamos a Champions e no sábado meu irmão subia com o All Boys após ganhar do Central no Arroyito. Mais redondo, impossível”. Na mesma ocasião, foi perguntando sobre por qual razão o irmão Nicolás teria demorado tanto para se consagrar: “a posição é determinante. No arco és um só, e além disso é uma posição em que fica difícil que apostem em alguém jovem. Viste que sempre se diz que no futebol tens que ter sorte, dentre outras coisas? Bom, essa sorte de que tanto se fala é encontrar justo o técnico que apostou em você. Depois, lógico, tens que ganhar você com tuas condições, mas encontrar o cara certo no momento certo é questão de sorte em muitos casos”.

Os irmãos Cambiasso no Real Madrid. Só aproveitado no time B dos espanhóis, o goleiro Nicolás pôde consagrar-se no time do coração

Os dois irmãos Cambiasso começaram no futsal do clube Parque, cujo convênio com o Argentinos Jrs levou-os à base colorada. O Argentinos tem como rival mais tradicional, historicamente, justamente o All Boys. Com o rebaixamento alvinegro em 1980, a torcida colorada passou a estabelecer uma rivalidade intensa com o Platense, que permaneceu seguidamente na elite até 1999. Assim, o goleiro Nicolás, também conforme declarações já em 2012 à El Gráfico, não teve maiores problemas em se converter em um torcedor do Albo desde a juventude, embora se formasse no vizinho: “comecei a ver o All Boys em 1991, meio por acaso. Mas também seguia o Argentinos Jrs porque fazia os juvenis aí e já estavam alguns garotos do Parque na primeira divisão. No sábado jogava o All Boys e no domingo, Argentinos. Então, me dividia. Apesar disso, sou torcedor do All Boys e comecei e segui-lo muito. Vivi o acesso da campanha de 1992-93. Mais velho, ia a campo cada vez que podia, embora não com tanta paixão como quando era garoto. Era outro futebol”.

O brilho de Esteban pelas seleções juvenis atraiu o Real Madrid, que para atrair a promessa topou contratar também seu obscuro irmão, a ser aproveitado apenas no time B dos merengues: “ir ao Real Madrid B significou uma experiência muito boa no social, no cultural e no esportivo. Viver só em uma cidade como Madrid com 18 anos dá muitas possibilidades para a confusão. Tivemos equívocos, mas bastante poucos. Cresci muito como pessoa. Me calhou assumir responsabilidades que não eram normais”. O clube espanhol optou por emprestar Esteban ao Independiente e depois ao River até reavê-lo em 2002. Nicolás, por sua vez, desembarcou em 1999 no El Porvenir, na terceira divisão argentina. Passaria ainda pelo Defensores de Belgrano, somando mais de cem jogos no “mundo ascenso” até estrear na primeira divisão já com 25 anos. Foi no Olimpo, em 2003. Com o rebaixamento aurinegro em 2006, rumou ao All Boys.

O Albo estava há três anos na terceirona quando então requisitou, em 2004, os serviços de um velho conhecido. José Romero foi um camisa 10 formado na base alvinegra, nos anos 60, integrando o primeiro acesso da equipe à elite, em 1972 – embora parasse de jogar ainda com 26 anos, visto como jogador bichado nos joelhos. Em 1981, já aparecia por ali como técnico infantil. Demorou até a temporada 2006-07 para o time da Floresta brigar seriamente pelo acesso. O 7º lugar bastou para o clube classificar-se a mata-matas pela segunda vaga, caindo para o Estudiantes de Buenos Aires nas semifinais. Para a temporada seguinte, não houve qualquer margem para o azar: o All Boys fez uma campanha arrasadora, de 85 pontos contra 70 do segundo colocado, resultando no título e na única vaga direta à segundona.

José Romero é o segundo jogador da esquerda para a direita na festa do All Boys pelo acesso à elite em 1972. Como treinador, saltou o clube da terceirona à primeira em três anos

No elenco, além de Cambiasso, brilhava outro irmão menos famoso de gente célebre, o armador Ariel Zárate, membro da numerosa família de atacantes do Vélez; deixou 13 gols. Marcelo Vieytes e Carlos Madeo foram outras caras da campanha que prosseguiram. A temporada de reestreia na segundona, em 2008-09, foi para estabilizar-se no meio da tabela. O bote foi dado na de 2009-10. O Olimpo disparou rumo ao título, finalizando com 71 pontos. O vice também subiria diretamente, enquanto o terceiro e o quarto lugar davam a vaga na repescagens contra os dois penúltimos da elite. O Quilmes se aproveitou que o Belgrano chegara à rodada final sem chances para assegurar o vice-campeonato com um simples 0-0 em casa, ficando nos 64 pontos – os cordobeses ficaram nos 57. A briga pela repescagem se resumiu a Instituto de Córdoba, Atlético de Rafaela e All Boys; os três estavam igualados com 60 pontos quando a rodada começou e jogariam em casa.

O Rafaela (2-0 no Platense) e o All Boys (2-0 no Independiente Rivadavia) cumpriram seu papel enquanto o Instituto, surpreendentemente, levou de 3-0 em Alta Córdoba para o Tiro Federal. Assim, o Rafaela credenciou-se para uma revanche contra o Gimnasia LP, que pela mesma repescagem no ano anterior, soubera devolver-lhe um 3-0 mesmo com dois homens a menos e precisando marcar dois gols após os 45 minutos do segundo tempo. O All Boys, por sua vez, pegaria o Rosario Central. A decadência rosarina datava desde o penúltimo lugar a lanterna no Apertura 2007, manchando gente dos bons tempos feito Kily González ou Emiliano Papa – e, sem surpresas, com quatro técnicos trabalhando em sequência, incluindo Carlos Ischia até Leonardo Madelón chegar e saber trabalhar o time a um 9º lugar no Clausura 2008.

Mas no Apertura 2008 os canallas decaíram para penúltimo, sem que Madelón ou seu substituto Pablo “Vitamina” Sánchez (antigo ídolo, remanescente da heroica Copa Conmebol de 1995) dessem liga – tampouco Gustavo Alfaro, que vinha de ganhar a Sul-Americana de 2007 com o Arsenal. Este assumiu a tormenta em outubro de 2008 e renunciou em fevereiro de 2009. Reinaldo Merlo ganhou três de cinco jogos, mas também renunciou, sem conseguir ganhar o grupo. A figura messiânica de Miguel Ángel Russo foi então requisitada. Com dois bons ciclos anteriores em Arroyito, Russo conseguiu evitar o rebaixamento direto, mantendo o Central na sobrevida das repescagens com um 10º lugar no Clausura 2009. Nelas, impôs um 2-1 agregado sobre o Belgrano e manteve-se, mas o ídolo preferiu renunciar tão logo assegurou a salvação.

O outro lado da moeda: a desolação do Rosario Central

No Apertura 2009, o Central treinado por Ariel Cuffaro Russo, campeão como jogador pelo clube em 1987, repetiu a 10ª posição – o suficiente para que o zagueiro Guillermo Burdisso, outro irmão de um ilustre argentino da Inter de Milão, aparecesse em uma seleção argentina caseira testada por Maradona já em fevereiro de 2010. Mas no Clausura os auriazuis tornaram a despencar. Conseguiram vencer o Boca em La Bombonera após 20 anos, em 2-1 acompanhado presencialmente pelo autor dessa nota, mas terminaram em 17º de 20 clubes no torneio – posição que terminou repetida na tabela à parte dos promedios. No ínterim, Cuffaro Russo deu lugar ao mesmo Leonardo Madelón de outrora. Em 19 de maio, no estádio alvinegro Islas Malvinas, Mauro Matos (depois campeão da Libertadores com o San Lorenzo) pôs os azarões na frente com um cabeceio que aproveitou a saída apressada do goleiro rosarino em uma cobrança de falta.

Aos 22 do segundo, Matos teria feito o 2-0 quando seu pé direito emendou de primeira um lançamento, em lance incorretamente invalidado por impedimento. Nos minutos finais, os visitantes partiram para o abafa. A já reluzente careca de Luciano Figueroa aparecia no congestionamento na área, mas não foi o velho ídolo o salvador e sim Burdisso, que conectou um míssil que as mãos de Cambiasso não puderam segurar. O 1-1 satisfazia a torcida visitante por outra razão: o generoso regulamento não impunha peso extra pelo gol fora de casa, premiando os times da elite com o direito de manter-se com um empate agregado e com o segundo jogo em seu campo. Assim, qualquer empate no difícil Gigante de Arroyito bastava ao Central.

“Nunca dei uma preleção. Não me corresponde”, garantiu o goleiro naquelas declarações em 2012. Mas as palavras que ficaram famosas foram as suas antes da revanche naquele 23 de maio: “são onze que têm um medo bárbaro”, apostou, antevendo o possível nervosismo dos jogadores da casa ante a mera possibilidade de serem rebaixados diante da própria torcida caso a pressão natural da inflamada plateia canalla se voltasse contra seus representantes. Para isso, era preciso partir para cima. E assim foi feito. Eis as palavras que o Futebol Portenho usou há 10 anos: “o primeiro gol do All Boys foi logo no começo da partida, aos sete minutos, em uma jogada insólita. Após cobrança de lateral que foi parar na área, nenhum jogador canalla conseguiu evitar o lance e Vieytes controlou a bola e mandou por cima de Galíndez”.

A nota seguiu assim: “apesar da derrota por 1-0, um empate garantia o Central na elite. Tanto que o time teve várias chances, a melhor delas com Luciano Figueroa. Mas não era o dia do Rosario. Ao fim do primeiro tempo, o goleiro Nicolás Cambiasso (irmão do campeão europeu) salvou um chute forte de Figueroa em cobrança de falta. Na sequência da jogada, o All Boys marcou o segundo gol. Vella arriscou de longe e Galíndez deu rebote de forma surpreendente, nos pés de Campodónico, que mandou para as redes. Na segunda etapa, com um Rosario mais ofensivo, o All Boys, mesmo com um jogo mais simples, conseguiu criar várias jogadas de risco aos canallas. E aos 20 minutos, o time chegou ao gol da classificação para elite argentina. Após uma cobrança de escanteio, Cristian Vella, com um chute preciso, deu números finais no Gigante de Arroyito”.

Pepe Romero, já em novembro daquele 2010, não teve trabalho em declarar à El Gráfico qual a maior alegria da carreira: “este clube não poderá viver nunca mais algo assim, não o digo por pedantismo porque tenha sido eu o que esteve à frente do plantel, mas muitos pensavam que não poderíamos logra-lo, porque um cenário como o estádio de Arroyito é muito complicado. Mas nos preparamos com muita confiança. Internamente, tinha dúvidas no primeiro jogo em nosso campo porque não sabia o que podia acontecer. Mas depois, apesar do empate, me dei conta de que se podia ganhar. Por isso, fomos lá tratar de abrir vantagem de cara, de ser protagonistas. Fiz alguma mudança, por exemplo, o de Campodónico no lugar de Torassa porque Mariano tem mais área, é mais goleador, mais ganhador no sentido do temperamento. Também pus Carlitos Madeo, que não vinha jogando, e acertei, mas o grande mérito foi de todo o plantel que jogou uma partida bárbara, que, repito, será inesquecível porque ganhar de 3-0 no Arroyito é uma façanha que dificilmente possa voltar a repetir-se. Por isso nós, e muito mais a torcida, desfrutamos de uma maneira incrível”.

Nicolás Cambiasso, por sua vez, comparou naquelas declarações em 2012 os seus dois acessos pelo time do coração: “cada acesso do All Boys deixou uma moral. Com o da 3ª divisão à 2ª, em 2008, aprendi a estar dois turnos sem poder relaxar. Se deve seguir buscando a motivação sem confundir-se, falar muito no grupo e não contagiar-se com a euforia da torcida. Pareceu fácil, mas não foi. E da 2ª divisão à 1ª, em 2010, compreendi que nunca se deve perder a esperança. Corremos desde atrás no torneio e ganhamos o direito de jogar a repescagem na última rodada. Até que se sobre o último apito, o assunto não está terminado. Meu sonho é que o All Boys chegue a jogar na 1ª no próximo ano, coincidindo com o centenário do clube“.

O Rosario Central sentiu demais o baque, terminando em um pífio 12º lugar na segundona de 2010-11. Na temporada seguinte, já brigou fortemente pelo acesso contra o gigante River e o Instituto da revelação Paulo Dybala, mas uma surpreendente derrota para o rebaixado Sportivo Desamparados na rodada final o limitou a disputar a repescagem contra um dos penúltimos da elite – e dois 0-0 favoreceram o San Martín de San Juan. O time não brincou e (treinado por Miguel Ángel Russo, aliás) foi campeão do torneio seguinte, embora o título de 2012-13 terminasse ofuscado pela conquista dias depois que o rival Newell’s teve na elite; ficou o consolo de constranger o vizinho vencendo os quatro primeiros Clásicos Rosarinos que houveram a partir do retorno canalla e estender a invencibilidade até o oitavo dérbi e voltar a retoma-la nos quatro duelos subsequentes.

E o All Boys? O sonho do goleiro Cambiasso cumpriu-se, com o time vivendo na elite o ano do centenário antes de cair em 2014 (junto com o rival Argentinos Jrs, aliás), ocasião que pendurou as luvas do ídolo. Os quatro anos de festa tiveram como ponto alto o 5º lugar no Clausura 2012, que permitiu ao Albo sonhar com uma vaga na Libertadores e até voltar a ser representado na seleção pela primeira vez desde os anos 60, por intermédio de Oscar Ahumada. Sucesso que teve como contrapartida a massificação da canção de autoria de seu principal rival, o Nueva Chicago.

“La Concha de tu madre, All Boys” de fato tomou de assalto as arquibancadas de toda a elite argentina após décadas restrita à obscuridade das divisões de acesso. As pessoas do bairro da Floresta, claro preferiram embalar-se com um hit próprio, que já servia de trilha para aquela façanha de dez anos atrás: uma paródia de “Imposible”, da banda Callejeros, também massificando-a para outras torcidas que incluíram até a do Palmeiras. Daí o título da nota e a intensa celebração de dez anos promovida pelo clube em suas redes sociais hoje.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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