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Luto: último símbolo de uma era, Amadeo Carrizo parte aos 93 anos

Com outra lenda do gol, Lev Yashin, já em 1969. Ambos falecidos em 20 de março, com trinta anos de diferença

A Argentina teria tido três gerações douradas do futebol. A última, a dos anos 70, quando estrearam quase todos os jogadores campeões mundiais em 1978 e 1986. Mas que não seria tão brilhante como a dos anos 40, ocultada pela falta de Copas pela Segunda Guerra Mundial. A prática esportiva contínua até os 75 anos e um gole diário de vinho teriam ajudado Amadeo Raúl Carrizo (a pronúncia é “Cariço”) a ser o último astro remanescente daquele período, vivendo lúcido até depois dos 90 anos – como presidente honorário e nome de arquibancada do River, clube servido por 24 anos pelo melhor goleiro sul-americano do século XX, segundo a IFFHS, a Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol. Por causa dele, 12 de junho na Argentina não é dia dos namorados (lá comemorado na data de São Valentim, 14 de fevereiro), mas o dia do goleiro. Embora esse 20 de março – que também marca os trinta anos sem Lev Yashin – talvez já seja mais apropriado para honrar a função que ganhou luvas e mais noção de posicionamento por causa de El Loco ou Tarzán.

Indagado em longa entrevista concedida em 2012 à revista El Gráfico sobre como lhe ocorriam suas inovações, respondeu que “me saíam sozinhas, porque embora aos 7 anos já tivesse manhas de goleiro, gostava de jogar adiante, fazer um drible, e tudo isso me ajudou a ter essa técnica, a jogar com mais confiança. E é fundamental que o goleiro seja confiante, porque se titubeia, pode complicar. Ademais, assim transmites tranquilidade a teus companheiros. Nessa época, os goleiros ficavam embaixo dos paus e surpreendeu que aparecesse alguém fazendo essas coisas” – a íntegra da entrevista foi hoje redivulgada com destaque no site da revista, em homenagem póstuma. Na época, seu amado River padecia na segundona e o título da nota foi “não concebo o River na Série B”. “Ainda não concebo”, admitiu ele (que não é parente de Juan Pablo Carrizo, o goleiro millonario na ocasião da queda), que viveu para ver a revanche histórica culminante na Libertadores frente o grande rival, em 2018.

Carrizo se dizia um goleiro com cabeça de atacante, o que facilitava lançamentos para contra-ataque e se antecipar às decisões adversárias. Ele nasceu na cidade santafesina de Rufino, que já havia dado ao River o goleador Bernabé Ferreyra, que somou quase duzentos gols em quantidade inferior de jogos nos anos 30 e popularizara o clube nacionalmente. Se Carrizo sempre orgulhou-se das inovações, também foi sempre modesto sobre sua importância, colocando Bernabé como ídolo riverplatense máximo e Julio Cozzi, do Platense dos anos 40 (e do Millonarios colombiano de Alfredo Di Stéfano) como um goleiro melhor. Rufino era a cidade dos pais adotivos de seu pai, natural de Rafaela e órfão aos 8 anos. E torcedor do River. Mas se Amadeo não era barrado por ele no sonho de ser jogador (na infância, foi presenteado com uma bola, então artigo de luxo), antes torcia para o Independiente.

River de 1945. Carrizo, de camisa celeste, era reserva – a seu lado, de azul, Grisetti. O titular ainda era Soriano, de azul, sentado

Pela liga de Rufino, fez sua estreia no gol em jogo juvenil do clube Buenos Aires Pacífico. Sofreu vários gols do Jorge Newbery (clube que havia formado Bernabé) e saiu de cara amarrada ao vagão que servia de vestiário, mas foi mantido para a partida seguinte, dos adultos. Jogou “bem, nada de outro mundo, mas bem. E ganhamos”, conforme dito naquela entrevista. O contato com o River foi intermediado por Héctor Berra, do atletismo riverplatense (competira no salto em distância nas Olimpíadas de 1932). Conforme explicado por Carrizo, Berra “era de Rufino e trabalha na ferrovia com meu pai. Me recomendou. Primeiro me quis ver jogar (…). Armou uma partida amistosa, terei defendido mais ou menos bem, e escreveu uma carta de recomendação a Carlos Peucelle”.

Se Bernabé populariza o River, foi Peucelle, que marcara gol na final da Copa de 1930, quem originara o apelido de Millonarios. Agora técnico, ele treinava juvenis e ajudara a formar La Máquina, o célebre elenco dos anos 40. “De Rufino a Buenos Aires são 430 km mas a viagem durou 15 horas, parava em todas as estações, e um bom momento em cada uma. Caí com a carta de recomendação de Berra. Eram como 2 mil garotos, eu pensei ‘aqui me expulsam com chutes no traseiro’. Me testaram, fui me banhar e não me esqueço mais o que me disseram: ‘bem, garoto, mande dizer a seu pai que ficas aqui no River’. Merda! Não havia telefone, assim alguém falou a Rufino: ‘digam a Don Manuel que Amadeo fica no River, aceitaram-no no teste’”.

Carrizo tinha 16 anos e na entrevista de 2012 declarou que essa aprovação de Peucelle foi o dia mais feliz da carreira. Mas a primeira semana longe de casa do homem que futuramente deteria os recordes de jogos pelo River (depois ultrapassado por Reinaldo Merlo) e no campeonato argentino (marca quebrada por Hugo Gatti, que foi seu reserva) foi difícil e ele esteve a ponto de voltar; a ideia foi demovida pelo pai. Ironia, estreou justamente diante do Independiente, um 2-1 de virada em Avellaneda pela terceira rodada do campeonato de 1945, em 6 de maio. Camilo Cerviño abriu o marcador aos 17 minutos e no seguinte Ángel Labruna empatou de pênalti. Roberto Gallo virou aos 33 do segundo tempo. Esse jogo integrou uma série de nove vitórias seguidas, então um recorde. E rendeu a primeira ovação a Carrizo: ao interceptar um cruzamento, foi empurrado pelo peito do adversário Norberto Pairoux, que tentou fazer Carrizo entrar com a bola no gol. O goleiro se deixou levar mas segurou firme a bola fora da linha. Até os oponentes aplaudiram.

Loucuras de Carrizo: se metendo a fora da área driblar no Superclásico e agarrando com uma só mão

Mas o titularíssimo seguiu sendo o peruano José Soriano, que já tinha um estilo arrojado de não se prender às traves. O River foi campeão em 1945 com Carrizo jogando uma vez mais na campanha. E quando Soriano se aposentou, a vaga inicialmente ficou com Héctor Grisetti. Nada que fizesse Carrizo abandonar a carreira para ser ferroviário como o pai, a outra opção que teria. “Não me senti postergado para nada, eu jogava no time reserva, para mim isso já era importante, treinava com os monstros de La Máquina, com (José Manuel) Moreno, (Ángel) Labruna e (Adolfo) Pedernera”. Com Grisetti de titular e nenhuma participação de Carrizo, o River foi campeão em 1947 e vice do Sul-Americano de 1948. Foi então que nas primeiras rodadas do campeonato de 1948 ambos se alternaram e a partir da sexta Carrizo se firmou. Naquele ano, esteve na primeira vitória millonaria sobre o Boca na Bombonera. O clube estava a três pontos da liderança na 25ª rodada, quando perdeu por 4-3 para o Independiente após estar vencendo por 3-1. Veio a famosa greve que fez os jogos restantes serem disputados por amadores. O River só conseguiu um empate nas três rodadas finais e a taça ficou com o próprio Independiente.

O time de Núñez foi severamente afetado ao fim da greve, cuja falta de êxito levou muitos atletas a partirem ao Eldorado Colombiano, em especial a revelação Di Stéfano – que declararia que teria feito muito mais gols na carreira se seguisse acompanhado de Carrizo, em alusão à qualidade do goleiro em longos lançamentos o ataque. Após cabeçadas em 1949 (vice do Racing) e 1951 (a um ponto do campeão, de novo o Racing), o primeiro título do goleirão como titular enfim veio em 1952. O River vinha embalado nos anos anteriores por quatro vitórias seguidas no Superclásico (só Carrizo e mais três estiveram em todos os dérbis pelo lado vencedor) e por uma vitoriosa turnê pela Europa, que rendeu um 4-3 no Real Madrid e outro 4-3, no Manchester City, no que foi a primeira vitória de um clube argentino na Inglaterra – além de um 5-1 no Sporting, então o maior clube português.

O River foi bi em 1953 e embora a taça de 1954 tenha ficado com o Boca, aquele ano também foi especial ao goleiro. Na antepenúltima rodada, o Boca tinha chances de garantir o campeonato em pleno Superclásico, em pleno Monumental de Núñez. O Millo não deixou e ganhou por 3-0, mas a lembrança mais famosa foi do goleiro. No fim da partida, houve um lançamento para o boquense José Borello, longe demais. A bola estava fora da área, mas estava mais próxima de Carrizo, que saiu para busca-la. Ainda assim, Borello continuou correndo. Se esperava que Carrizo recuasse a bola para a área para então agarra-la, mas ele esquivou para a direita. Parou de frente para o próprio gol. Borello tentou nova investida e o goleiro outra vez driblou-o pela direita. Nova tentativa do auriazul, novo drible e então Carrizo deu um chutão ao ataque.

Um reencontro amistoso de Carrizo com o “humilhado” Borello, falecido em 2013

A torcida do Boca jamais perdoaria a mais nova ousadia de alguém que já tinha no repertório agarrar com uma só mão bolas cruzadas  (“era um bom recurso para a bola um pouco alta e passada, porque com uma mão chegas mais alto”) e surgiram rumores de Borello teria inimizade com Carrizo para merecer tamanha humilhação, algo desmentido por ambos e reforçado em 2012: “a verdade é que nunca fiz nada para gozar ninguém. (…) Como não gostava chuta-la para a arquibancada e sim seguir a jogada, tinha que fazer um drible. (…) Com Borello éramos muito amigos, e ele nunca se sentiu afetado por esse drible. Com esse critério, se ao goleiro lhe metem um gol de calcanhar, de peixinho ou de luxo, teria que sentir-se ofendido”. Foi no fim daquele 1954 que Carrizo, enfim, estreou pela seleção, em um 3-1 sobre Portugal em Lisboa. No mesmo ano, enfrentou a Itália em Roma, derrota de 2-0 mas um jogo fundamental na mitologia de Carrizo.

“O goleiro deles, um tal (Giovanni) Viola, usava luvas. Lhe perguntei se davam resultado favorável, e me respondeu ‘buonobuono‘ e me presenteou com um par. Comprei uns mais e na volta, contra o Racing, os estreei. Aqui ninguém usava e me dava um pouco de vergonha, então as firmei no elástico do calção para não revelar, e antes de tocar o apito, tchã, as pus”. Quem garantiria o título na casa rival seria o River no ano seguinte, um 2-1 de virada na Bombonera. As excentricidades de El Loco, contudo, só o fariam voltar à seleção em julho de 1957 após um segundo jogo ainda em 1954 (derrota de 2-0 para a Itália). O também espetacular, mas sóbrio Rogelio Domínguez firmou-se na época, mas após vencer a Copa América de 1957 partiu para o Real Madrid de Di Stéfano e não se convocava quem atuasse no exterior. E o River, em paralelo, ganhara o campeonato também em 1956 e já encaminhava naquele 1957 seu primeiro tricampeonato.

O retorno de Carrizo à seleção foi histórico: vitória por 2-1 sobre o Brasil no Maracanã no dia da estreia e do primeiro gol de Pelé pela canarinho. Adiante, o goleiro foi mantido nas tranquilas eliminatórias rumo à Copa do Mundo. A Argentina não a jogava desde 1934 e, vencedora de diversas Copas América nos anos anteriores, chegou com confiança exagerada. Foi eliminada com um 6-1 para a Tchecoslováquia. Carrizo disputou 20 partidas oficiais na seleção (além de três não-oficiais em amistosos pré-Copa 1958, no 10-2 contra a seleção da cidade de Paraná, no 2-0 sobre a Internazionale e no 1-0 sobre o Bolonga) e em metade delas não foi vazado, mas aqueles seis gols de uma vez o crucificaram para o público. “O avião não aterrissou no lugar de sempre, e sim numa zona mais distante. Descemos e tivemos que ir caminhando até o terminal. Parecia tudo armado para que nos insultassem. Nos trataram mal até quem tinha que vistoriar as malas (…). As pessoas nos atiravam moedas e me gritavam ‘traidor da pátria’. O problema seguiu nos estádios, porque entrávamos e nos gritavam qualquer coisa. Menos o torcedor do River, que jamais me disse nada. Por isso, terei gratidão eterna ao torcedor do River”.

O último jogo de Carrizo pela Argentina: no Maracanã, contra a Inglaterra pela Copa das Nações. Ao lado, famosa foto com Pelé, derrotado por 3-0

Carrizo foi convocado ao mundial de 1962 e participou dos treinamentos, mas no fim não se convenceu e em seu lugar chamou-se seu reserva no River… justamente o tal Rogelio Domínguez, regressado da Espanha. Enquanto se ausentava da seleção, Carrizo não deixou de ter bons momentos no River, embora o time sofresse em ricochete com o vexame da seleção na Suécia: como base da Albiceleste, o elenco afetou-se bastante e ficou longe do título nos primeiros torneios que se seguiram. Mas, em 1961, uma nova turnê pela Europa rendeu nova vitória sobre o Real Madrid (um 3-2 com brasileiros marcando todos os gols argentinos, curiosamente) na primeira derrota dos merengues em casa após nove anos e que quase rendeu a transferência de Carrizo ao clube espanhol. “À noite, tivemos o jantar das duas equipes, estavam os dirigentes, e um me comentou: ‘Don Antonio (Vespucio Liberti, presidente do River que dá nome oficial ao Monumental) pede que te aproximes da mesa dos presidentes, que te quer cumprimentar Santiago Bernabéu’. Me felicitou pela partida. Depois, esse mesmo dirigente me contou que Bernabéu deu um lance para me levar, mas Don Antonio lhe disse que não rotundamente”.

“Liberti não queria saber nada com vender-me. Tive várias oportunidades do México, Brasil, França”. Sim: Carrizo foi negociado entre dois “estádios”… e permaneceu no futebol argentino, em tempos sem desnivelamento de prestígio e finanças com o europeu. Naquela turnê, o River também ganhou de 5-2 da Juventus e em 1962 a vítima foi o Santos de Pelé, derrotado por 2-0 – Pelé sempre destacou o argentino como um dos goleiros mais complicados que enfrentou e isso se reforçou na Copa das Nações, torneio organizado pelo Brasil em 1964 que envolvia ainda Argentina, Inglaterra e Portugal. Foi a conquista mais expressiva da Albiceleste até a Copa do Mundo de 1978. Depois do desastre de 1958, Carrizo sentiu-se confiante para voltar à seleção em outubro de 1963 (dois jogos contra o Paraguai) e teve naquele torneio sua revanche pessoal. O Brasil foi derrotado por 3-0 e uma foto de Pelé entregando a bola ao argentino simbolizou o santista “entregando os pontos”, conforme legenda famosa. Naquela partida, o veterano goleiro pegou um pênalti de Gérson. Despediu-se da seleção ao fim do torneio. 

O River, por outro lado, atravessava os anos 60 em jejum, perdendo nos detalhes alguns campeonatos, muitos deles para o Boca – o que não impedia convivência extracampo amistosa com o carrasco brasileiro Paulinho Valentim. Outro revés dos mais doloridos foi a Libertadores de 1966 para o Peñarol, um 4-2 após estar ganhando por 2-0. Carrizo foi criticadíssimo pelo presidente Antonio Liberti após uma defesa com o peito, lance que teria mexido com os brios uruguaios e impulsionado a virada. Para a Copa do Mundo, novamente o goleiro do River convocado foi seu reserva, agora Hugo Gatti. Mas apesar da qualidade e personalidade do novato, este nunca firmou-se no clube, com Amadeo ainda seguindo em Núñez até o início de 1969. Já tinha 42 anos quando conseguiu naquele ano seu último feito: um recorde de invencibilidade de cerca de 730 minutos. A marca anterior era justamente de um goleiro do Boca, Antonio Roma. E o Boca poderia ter atrapalhado se vencesse o Superclásico marcado pela tragédia da porta 12.

Em seu último grande feito na Argentina, o recorde sem sofrer gols alcançado já 1968, “façanha que alegrou o país” segundo a capa da El Gráfico. E no jogo festivo de 1999

Foi 0-0 enquanto tudo era só festa, Carrizo impediu um gol ao convencer o adversário Norberto Madurga de que o árbitro assinalara-lhe um impedimento. Ao fim, até os jogadores rivais o aplaudiram. O mito seria vazado contra o Vélez. O autor do gol era o jovem Carlos Bianchi, que antes de sonhar em ser o maior técnico do Boca era torcedor justamente do River, inspirado por Amadeo, “a perfeição no arco” segundo o Mr. Libertadores. “Tinham que passar 23 minutos para alcançar o recorde (…). Roberto Maidana estava com o microfone ao lado do arco contando os minutos que me faltavam para chegar ao recorde. Me punha um pouco nervoso, na verdade. Depois, nunca esquecerei como acompanhou a torcida do Vélez. Foi maravilhoso. Se uniu ao festejo da gente do River e aplaudiu, tiraram todos os lenços, um momento de felicidade única para mim. Carlitos Bianchi, que me fez o gol, acho que até ameaçou em aplaudir”. A marca, atualmente, é a quarta maior invencibilidade – o recorde pertence desde 1981 a Carlos Barisio, outro ex-goleiro a falecer nesse 2020.

“Chorei três vezes na minha vida: quando vim de Rufino, só em um trem. Quando bati o recorde do arco invicto. E quando o escrivão Kent me chamou por telefone para dizer que meu ciclo no River havia terminado”. A saída do River ocorreu justamente naquele ano. O jejum desde 1957 perdurava. Em 1968, o Millo caiu para o San Lorenzo nas semifinais do Metropolitano e teria vencido o Nacional se convertesse um pênalti claro contra o campeão Vélez, em lance onde um zagueiro adversário impediu um gol socando a bola em cima da linha; o adversário terminaria, pela primeira vez, campeão argentino. Já o ex-colega Labruna era o técnico do River e proferiu que “Amadeo já não está para seguir jogando”. O goleiro trocou então os millonarios pelo Millonarios, rumando ao clube de Bogotá: “fui ao Millonarios e joguei dois anos. E não joguei mais porque tinha a família aqui e sentia falta. Chorei muito, porque não esperava, assim tão forte e tão violento”,

“Me disseram que meu ciclo estava terminado e que me iam fazer uma partida homenagem e que havia a possibilidade de seguir no clube ensinando os garotos. Não aconteceu nenhuma das duas coisas”, lembrou em 2012, classificando a tristeza da saída comparável apenas ao rebaixamento que vivenciou como torcedor em 2011: “uns torcedores do River, enojados pela decisão de me dar o passe livre, romperam o carnê de sócios na porta da minha casa. Como passavam os dias e não havia notícias da homenagem, foram ver Armando, o presidente do Boca, para fazer a homenagem na Bombonera, de tanta bronca que tinham. Mas esfriei o assunto, teria sido um disparate”. Mesmo com 24 anos de futebol argentino, ali só um marcou alcançou dez gols anotados em Carrizo, conforme ressaltado em perfil da revista brasileira Placar sobre o goleiro na sua eleição de 1999 para os craques do século (foi Ricardo Infante).

Com a camisa do seu outro clube profissional, o Millonarios de Bogotá, junto de Marcelo Gallardo. E na entrevista de 2012 de onde tiramos a maioria das aspas dessa nota

“Eu fiquei mal, passaram os dias e em pouco me convidaram a dois amistosos no Peru: Alianza Lima contra o Dínamo de Moscou. Eu de um lado e Lev Yashin do outro. Joguei essas partidas e na volta me chamou Alfonso Senior, um grande dirigente do Millonarios da época do Eldorado, que havia visto a partida e quis me levar por seis meses (…). Eu tinha 42 anos e fiquei seis meses, depois outros seis e um ano mais”. No futebol colombiano, Carrizo não ganhou títulos, mas também conseguiu um recorde de invencibilidade (490 minutos) e até se deu ao gosto de bater uma falta: “fiz só uma vez, contra o Unión Magdalena. Íamos perdendo e era o último minuto, então fui chutar. Os caras teriam pensado: ‘este sabe tudo’, e me armaram uma barreira com todos, já não vi mais o arco. Meti uma cobertura e o goleiro pegou. Me animei em fazer porque terminava a partida”. Carrizo ensaiou carreira de técnico e já em 1972 ganhou a quarta divisão com o Deportivo Armenio, mas desistiu.

“Não tive a decisão de seguir com isso. Não gosto que a continuidade do treinador dependa de dois ou três resultados nem que não se dê valor ao homem. Além disso, nunca acreditei muito nos técnicos porque ninguém nunca me ensinou nada, aprendi só. (…) Eu estou convencido de algo: o goleiro decide só, não precisa de terceiros. Na realidade, eu ia às charlas técnicas só por respeito…”, esclareceu à enciclopédia do centenário do River. Também disse à enciclopédia: “minha ideia sempre foi reivindicar o goleiro, dar categoria ao posto. Na várzea, toda a vida, ao garoto mas leso, ou ao mais gordo, ou ao mais pé murcho, mandavam ao gol. Não gostava disso. E quis demonstrar então como a função de goleiro também é transcendente, como se podia fazer malabarismo com a bola, como se cortavam os cruzamentos com uma só mão, como se devia apequenar a área. Me ajudou o fato de que desde criança tive muito bom trato com a bola. Era muito habilidoso, sabia driblar como os que jogavam de atacantes. Assim tratei de impor um estilo e converter o posto de goleiro em algo totalmente diferente ao que havia sido até esses momentos. Busquei mudar a imagem do goleiro e creio que, com os anos, consegui”.

Essa nota é uma versão revista e atualizada de quando festejamos os 90 anos de Carrizo, em 2016. Em 2017, outro remanescente dos dourados anos 40 também chegou aos 90 anos: Juan José Pizzuti, segundo maior artilheiro profissional do Racing e técnico desse clube na conquista da Libertadores e Mundial de 1967. Na nota sobre Pizzuti, destacamos que ele “é uma das últimas lendas vivas da geração dourada que o futebol argentino teve nos anos 40 (de outros, podemos citar Santiago Vernazza e Amadeo Carrizo)”. Ex-colega do goleiro, Vernazza partiu ainda em 2017, aos 89 anos. Pizzuti, por sua vez, foi outra perda nesse 2020, falecendo em janeiro. Di Stéfano já havia nos deixado em 2014. Se em fevereiro a Era de Ouro de Hollywood teve sua perda final em Kirk Douglas, agora aquela geração argentina sente isso sem seu mais longevo personagem, na vida e nos gramados. Algo percebido para bem além de Núñez, com Boca e outros rivais já afastando o clubismo em homenagens à lenda. “Carrizo foi um revolucionário” foi, justamente, o desfecho naquele perfil que a Placar fez a ele para a edição dos craques do século.

Em homenagem do River em 2014, com o presidente millonario Rodolfo D’Onofrio e jogadores caracterizados no estilo do ídolo. Um dos que o aplaudem, com quadro nos braços, é o sucessor Ubaldo Fillol
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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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