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Campeão argentino, sim senhor: 90 anos do título do Gimnasia LP

Varallo, último sobrevivente da primeira Copa do Mundo: em sua época de Gimnasia LP e vestido nas cores alviazuis nos últimos dos seus cem anos de vida

La Plata viveu horas de loucura coletiva. O trem em que vinham os jogadores teve que fazer a viagem lentamente porque os mais entusiasmados, para não perderem a recepção, se penduraram nas janelinhas, nas grades e até se fincaram no para-choque da locomotiva. Passada a estação Tolosa, já em cada porta, em cada janela e em todo sítio visível ao passo do trem, se haviam congregado os fãs para ovacionar os campeões” – Carlos Asnaghi, historiador do Gimnasia y Esgrima La Plata.

Se ontem foi noite de Oscar, “foi há 84 anos” seriam outras aspas apropriadas para iniciar esse texto, suspiradas pela idosa Rose no megavencedor Titanic, em cena que virou meme para zombar de clubes em jejum. O caso do Gimnasia é tão complicado que a frase só não é literal porque foi ultrapassada. Ontem fez-se 90 anos da única conquista tripera na elite argentina. Como se não bastasse, nem sempre ela é reconhecida: ainda é comum mídia e público argentinos contabilizarem os troféus somente a partir do profissionalismo, oficializado em 1931… pois já vinha sendo realizado na prática naquela década de 20. O longo campeonato argentino de 1928, embora iniciado em abril daquele ano, só finalizou-se já em 30 de junho de 1929. Como a Argentina sediaria naquele ano a Copa América, foi adotado então o formato da Copa Estímulo, torneio frequente naquela década para manter os clubes ativos enquanto a liga se paralisava em função de torneios da seleção, que naturalmente drenava os principais jogadores.

Nome histórico na Argentina, Minella (atrás dele, o futuro artilheiro palmeirense Echevarrieta) desfalcou o time da final: Ruscitti, Santillán, Di Gianno, Scarpone, Delovo e Belli; Curell, Varallo, Maleanni, Díaz e Morgada

Assim, ao invés de pontos corridos entre todos os 35 clubes figurantes da primeira divisão, a federação dividiu-se em dois grupos para pontos corridos internos em turno único. Os líderes travariam então a decisão – que, vale ressaltar, colocaria em disputa o mesmo troféu normalmente oferecido aos campeões da liga – e que desfilou ontem no Bosque do Gimnasia, celebrado por familiares dos campeões há 90 anos. O grupo do time continha duas forças do amadorismo: o Huracán de Guillermo Stábile (meses depois, o atacante terminaria artilheiro da primeira Copa do Mundo), detentor do título anterior e campeão outras três vezes na década; e o Racing, duas vezes campeão nos anos 20 e outras sete (seguidas, um recorde) na década anterior – sua dupla de zaga Fernando Paternoster e José Della Torre, depois importado pelo America-RJ, seria a titular na seleção na primeira Copa. Mas quem mais deu trabalho foram o Lanús e o River, na época ainda distante da grandeza que viria a adquirir a partir dos anos 30 (não tivera nenhum jogador seu chamado à Copa, por exemplo). Em 17 jogos no seu grupo, os platenses venceram 14 e perderam os outros três (um 2-1 para o San Isidro, outro para o Atlanta e um 1-0 para o Racing).

Das vitórias, destaque para o 4-0 no Platense, com dois gols de Martín Maleanni, um de Francisco Varallo e um de José María Minella; um 4-1 fora de casa no Estudiantes de Buenos Aires, gols de Minella, Varallo, Julio Di Gianno e Ismael Morgada; um 3-0 fora no Almagro, com um de Morgada e dois de Varallo; um 4-1 no El Porvenir, com três de Morgada e outro de Varallo. E também ao clássico de La Plata: o Estudiantes fazia campanha apenas mediana e resolveu não se apresentar a campo, dando a vitória ao rival por W.O. Dos jogadores mencionados acima, dois merecem menção especial: Varallo, que fez 20 anos apenas cinco dias antes da final, iria à Copa do Mundo; chegou a acertar a trave uruguaia na final quando os argentinos venciam por 2-1. Posteriormente, seria contratado pelo Boca, onde também seria ídolo, muito ídolo: foi por décadas o profissional com mais gols no clube e o segundo no âmbito geral, até Martín Palermo supera-lo em anos recentes. El Pancho depois se notabilizou como último sobrevivente da primeira Copa do Mundo, falecendo aos cem anos e ainda lúcido, em 2010.

Boca ao ataque. Destaque para o salto do goleiro gimnasista Scarpone, à direita

Pepe Minella não pôde disputar uma Copa do Mundo, mas ainda assim se fez presente na história do torneio: natural de Mar del Plata, batizou o estádio desta cidade a sediar a Copa de 1978. Minella, que depois se consagraria como técnico mais vezes campeão pelo River até o fim dos anos 70, estreou pelo clube justamente na primeira rodada e logo firmou-se, mas uma inoportuna lesão em dezembro tirou-o dos gramados por alguns meses; seu lugar seria reposto por Jesús Díaz na reta final e acabaria recuperando-se tarde demais por um lugar na Copa de 1930. Já sua ausência em Copas seguintes deve-se mais aos dirigentes do que por falta de capacidade: em 1934, só amadores foram enviados à Itália, e em 1938 os cartolas argentinos resolveram não participar em protesto pelo país ter perdido para a França o direito apalavrado de sediar o evento, fatores que também impediram novas participações de Varallo. Depois seria a vez da Segunda Guerra Mundial impedir novos mundiais até 1950.

O Gimnasia terminou o grupo com apenas um ponto de vantagem sobre o River, mas na maior parte nadou de braçada. Poderia até ter garantido na penúltima rodada a vaga na final, quando veio a derrota para o Racing, proporcionando algum suspense. Na última, em 12 de janeiro, o artilheiro Morgada e Maleanni marcaram os dois gols sobre o Lanús e assim a vitória fora de casa do River no El Porvenir restou inútil. O confronto direto entre líder e vice-líder ocorrera ainda em outubro em La Plata, e Varallo acrescentou mais um motivo para ser ídolo no Gimnasia e no Boca, sendo autor do único gol na ocasião. A final não foi jogada de imediato: no outro grupo, Boca, que já vinha de um bivice seguido, e San Lorenzo terminaram igualados na liderança.

Evaristo Delovo em ação. À esquerda, contra o goleador Cherro

Embora os azulgranas do beque Luis Monti houvessem vencido o confronto direto, o critério de desempate seria mesmo um jogo-extra. Curiosamente, a única derrota sanlorencista havia sido para o Estudiantil Porteño, o clube de Atilio Demaría. Monti e Demaría seriam justamente os únicos jogadores presentes em seleções diferentes finalistas de Copa do Mundo, ambos pela Argentina em 1930 e pela Itália em 1934, embora só Monti costume ser lembrado pelo feito (pois Demaría não esteve em nenhuma dessas finais). O Boca, por sua vez, tinha quatro homens posteriormente convocados à Copa: o beque Ramón Muttis, o médio Pedro Suárez, o ponta Mario Evaristo e o atacante Roberto Cherro. Cherro era justamente o único que superava Varallo no âmbito geral da artilharia xeneize até Palermo superar a todos em 2010. Além deles, tinham consigo dois membros da seleção vice nas Olimpíadas de 1928, o beque Ludovico Bidoglio e o superartilheiro dos Jogos, Domingo Tarasconi, até hoje o sul-americano com mais gols no torneio olímpico. Outro destaque era o marechal paraguaio Manuel Fleitas Solich, que se notabilizaria como técnico em sua seleção e no Flamengo.

O Gimnasia encerrou sua jornada no grupo ainda em 12 de janeiro de 1930 e pôde descansar, pois foram necessário nada menos que três jogos-desempates entre Boca e San Lorenzo. Tudo porque, no primeiro, empataram em 2-2 e os capitães de ambos, para as vaias da plateia, recusaram jogar uma prorrogação: o duro verão portenho naquele 19 de janeiro extenuara as equipes. No segundo, em 26 de janeiro, a história se repetiu, com novo 2-2 e saída conjunta de campo antes da prorrogação – o que fez a associação emitir-lhes um alerta: se houvesse novo empate no terceiro jogo, não teriam opção senão jogar o tempo extra. Em 2 de fevereiro, enfim, deu Boca, 3-1.

Imagem de capa pós-título da El Gráfico, de 15 de fevereiro, com Varallo e Morgada, descritos como “os pontos mais altos da linha de ágeis do Gimnasia, campeão de 1929”

Uma semana depois, enfim, jogar-se ia tanto a decisão, no estádio neutro do River, como uma partida pelo terceiro lugar entre o próprio River e o San Lorenzo, no campo do Racing. Os extenuados azulgranas preferiram não comparecer e perderam o bronze no W.O. Já os os auriazuis eram os francos favoritos: haviam se impulsionado como grandes naquela década; além do bivice seguido nos torneios de 1927 e 1928, haviam ganho seis campeonatos desde 1919 e empreendido de modo vitorioso em 1925 a primeira excursão argentina à Europa, batendo o Real Madrid e igualando-se com o Bayern Munique. Mas desde a manhã já havia um bom prenúncio ao Lobo: o campeonato de times B se realizou no mesmo dia entre os mesmos clubes, e o Gimnasia venceu, enquanto os auriazuis perderam até mesmo na final do campeonato sub-19, para o Huracán: “torcedores do Boca, anotem essa data: 9 de fevereiro de 1930. Não a esqueçam, e o dia em que tenham que fazer algo importante, se é 9 de fevereiro adiem o assunto. Essa data para vocês é como uma cruz: foram todos mortos”, analisou a revista El Gráfico. E isso que o elenco principal, após pressão platense nos 15 minutos iniciais, ia confirmando seu favoritismo.

O Boca chegava continuamente ao arco adversário, fazendo do goleiro gimnasista Felipe Scarpone ser a grande figura do primeiro tempo, e terminou a etapa em vantagem após gol contra de Di Gianno aos 30 minutos. Essa pressão foi mantida até os dez minutos da etapa final. Foi quando o Gimnasia animou-se com um bate-rebate na área auriazul onde o gol foi evitado por muito pouco. O empate não tardou, saindo aos 17: Maleanni colocou com calma no ângulo bola cruzada por Morgada após este vencer a corrida com Pedemonte e Bidoglio pela linha de fundo. O Boca relançou-se à ofensiva, mas permitiu brechas a um contra-ataque que rendeu a virada aos 25: Morgada correu mais que Bidoglio e cruzou para Maleanni consagrar-se de vez como herói. Esforço não faltou aos favoritos, com Bidoglio lançando-se ao ataque e com apenas o goleiro e outro zagueiro permanecendo de sobreaviso na defesa.

Morgada novamente, agora como capitão do Gimnasia antes das vitórias sobre Real Madrid (sim!) e Barcelona (sim também!) na primeira semana de 1931

Os triperos se compactaram bem, para novas vaias da maioria do público – só 5 mil dos 45 mil presentes eram torcedores de La Plata. A própria El Gráfico também resmungou: “para muitos, o Gimnasia y Esgrima de La Plata não mereceu a vitória em seu match contra o Boca Juniors. O argumento que se esgrime, para fazer essa consideração, é o azar. O arco boquense passou por situações de iminente perigo e em duas delas os ágeis platenses lograram cristalizar seus propósitos. Boca, por sua vez, provocou iguais situações, embora em um maior número, sem conseguir. Em sortes iguais, o Boca deveria ter ganho”. Adiante, a pressão do Boca após a virada foi assim descrita:

“A cerca de Scarpone ia cair em um momento ou outro. Parecia inevitável: mas as pessoas que a defendiam não se entregavam. Resistiam aos ataques e até ensaiavam cargas que chegavam a fundo porque não encontravam maiores obstáculos. O domínio boquense era evidente. Em síntese, essa foi a característica do match. O Boca superou seu adversário por sua defesa. Admitindo que as linhas ofensivas de ambos os teams fossem de igual capacidade, no que se refere às defesas a diferença foi favorável aos perdedores. Mais conscientes seus homens, removiam e apoiavam, enquanto que os adversários se concentravam a despejar as situações sem preparar as jogadas. Não contou essa defesa com figuras como as de Fleitas Solich e Bidoglio, que realizaram formidáveis performances, a ponto de ser o primeiro dos nomeados o melhor homem do field. Essa falta de jogo a supriram, em parte, com o entusiasmo que demonstraram em todo momento da luta, embora sem se porem ao tom com os adversários”.

Outro Boca x Gimnasia, em 1931: agora Varallo reforçava os xeneizes e, sem comemorar, marcou quatro gols nos ex-colegas. À direita, ele com outro ídolo nos dois: Guillermo Barros Schelotto

A revista, ao fim, se rendeu, mas com ressalvas destacando os trivices: “mas não se pode dizer que o Gimnasia y Esgrima tenha se classificado campeão por casualidade. Pode-se ganhar um jogo por sorte, mas não é possível chegar a uma final se não se houver creditado condições para isso. A lógica não está em um jogo, e sim em uma sucessão de jogos. Se em favor dos que chegam a uma final se podem verter juízos louváveis, o que corresponde ao Boca? Nenhum dos clubes que lhe avantajaram nos últimos anos pode vangloriar-se de ter estabelecido performances similares ao do Boca. Nenhum deles teve mais méritos para obter a vitória que vem perseguindo. Durante três anos, é segundo. Os demais, antes e depois de terem sido campeões, não puderem ser segundos”. De fato, o campeão de 1929 fora apenas 21º colocado em 1928 e terminaria 1930 apenas em 8º. Aquele título, porém, não tardou um ano para ser referendado de outro modo.

Mesmo desfalcado de Varallo, emprestado ao Vélez para uma excursão pelas Américas, o Gimnasia não só repetiu na primeira semana de 1931 o feito do Boca de 1925 ao bater na Espanha o Real Madrid como também bateu o Barcelona. Nenhum time sul-americano havia ainda vencido ambos da dupla espanhola. Se não havia Varallo, havia de volta Minella, o artilheiro da uma excursão que contou inclusive com o empréstimo de Demaría – cujo desempenho no 3-3 contra a Inter de Milão credenciou-lhe para ser adquirido pouco depois por este clube. Ele anotou o primeiro gol, Díaz (que anotara em Real e Barça) fez o segundo e o terceiro foi da revelação Arturo Naón, que mais tarde viria a ser o maior artilheiro gimnasista antes de reforçar brevemente o Flamengo. Formava-se a base de El Expreso, elenco considerado o campeão moral do torneio de 1933, onde havia ainda o maior goleador estrangeiro do Palmeiras, Juan Echevarrieta. Título que faria falta também de modo extracampo: ao fim da década, a AFA instituiu que os clubes oficialmente grandes deveriam ter ao menos dois títulos na elite, vinte anos seguidos de participações nela e 15 mil sócios. Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo cumpriam todos os requisitos. O Huracán cumpria os dois primeiros, mas não o último, ao passo que o Gimnasia cumpria os dois últimos (chegou a ser a instituição com mais sócios no país, inclusive), mas não o primeiro…

Filha e neta de Varallo na semana passada, com a taça erguida há 90 anos pelo Gimnasia

A grandeza não chancelada se desbotaria com o correr do tempo, com o clube se revestindo involuntariamente de um folclore repleto de azares. O mais recente deles, no sábado, contrastou enormemente com a efeméride do domingo: mesmo difundindo-se globalmente como clube treinado por Maradona, o time, em duelo direto contra o Patronato na luta contra o rebaixamento, sofreu em casa empate em 1-1 aos 39 do segundo tempo no minuto seguinte à perda de um pênalti. Já havíamos listado em 2016 a incrível coleção de fracassos do Lobo, cuja parca coleção de títulos no futebol (além de conquistas na segunda divisão, só ergueu-se a Copa Centenário já em janeiro de 1994, pelo elenco dos jovens gêmeos Barros Schelotto). A sofrida história alviazul, alegadamente mais numerosa em La Plata mesmo na descomunal concorrência de prateleiras com o Estudiantes, também já teve sua tradição representada no time tripero dos sonhos, eleito por nós também em 2016. Naturalmente, membros de 1929 estiveram presentes: Varallo, Minella e o lateral-esquerdo Evaristo Delovo, a serviço do clube daquele ano até 1941. Abaixo, a ficha técnica da decisão que venceram:

Gimnasia LP: Felipe Scarpone, Julio Di Gianno e Evaristo Delovo, Vicente Ruscitti, Juan Santillán e Antonio Bielli, Miguel Curell, Francisco Varallo, Martín Maleanni, Jesús Díaz e Ismael Morgada. Boca: Alejandro Mena, Ludovico Bidoglio e Luis Strada, Américo Amoia, Manuel Fleitas Solich e Adolfo Pedemonti, Donato Penella, Francisco Kuko, Mario Evaristo, Roberto Cherro e Antonio Alberino. Gols: Di Gianno, contra (30/1º) e Maleanni (17/2º e 25/2º)

https://twitter.com/gimnasiaoficial/status/1225509466331893761

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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