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80 anos do único brasileiro artilheiro na Argentina: Silva Batuta, ídolo do Racing

Desde Petronilho de Brito (irmão do descobridor de Pelé, Waldemar de Brito) no San Lorenzo campeão de 1933, o futebol argentino teve brasileiros destacados por seus gols, como Paulinho Valentim em quantidade e Iarley em qualidade no Boca – e outros atacantes renomados, a exemplo de Heleno de Freitas, Yeso Amalfi, Almir Pernambuquinho, Charles Fabian, Gaúcho (todos também do Boca), Manoel Maria (Racing), Mário Sérgio (Rosario Central), e Jardel (Newell’s), que por sua vez não vingaram. Mas só um foi artilheiro do campeonato argentino: Walter Machado da Silva, ídolo de Corinthians e dos rivais Flamengo e Vasco, ex-jogador do Santos de Pelé e do Barcelona e que estivera na Copa 1966. Nascido em 2 de janeiro de 1940, hoje Silva (ou “Machado da Silva”, como é chamado na Argentina) faz 80 anos. Hora de relembrar sua passagem pela Argentina.

Globo Esporte, desconhecendo a grandeza do Racing, onde o “Batuta” deslumbrou, até exagerou nesta matéria na qual afirma em certo momento que o jogador seria o maior ídolo do clube. Ele está longe de ser o maior ídolo do Racing, mas, mesmo com uma passagem efêmera, é muito bem lembrado até hoje em Avellaneda. A ponto de, mesmo não alcançando títulos ou 30 jogos, estar entre os cem maiores ídolos racinguistas eleitos em edição especial da El Gráfico em 2011 – enquanto João Cardoso, titular e autor de gol do título na Libertadores 1967, não está (um equívoco, ao nosso ver).

Criado no São Paulo, a tempo de integrar o elenco campeão de 1957, Silva, após empréstimo ao Batatais, só veio a ter espaço como tricolor em sua Ribeirão Preto natal, despontando no Botafogo – chegou lá em 1959 e inclusive a excursionou pela Argentina em 1962. Dali foi pinçado pelos dirigentes corintianos em uma resposta àqueles tempos do ataque “faz-me rir”. Ele fez sua parte, com cerca de 90 gols em 140 jogos, suficiente para leva-lo ao Flamengo, mas não para tirar o Timão da sua famosa fila de 1954-77. Artilheiro do elenco campeão carioca em 1965 (incluindo o gol do título no Fla-Flu decisivo), valorizado de modo especial naquele ano de quarto centenário do Rio de Janeiro, cavou em cima da hora um lugar na Copa do Mundo: estreou pelo Brasil já em 1º de maio de 1966, em 2-0 sobre a seleção gaúcha. O primeiro jogo oficial rendeu um um gol em 3-1 contra o País de Gales.

Em outros amistosos pré-Copa, ainda atuaria no 1-0 contra o Chile, no 3-1 sobre o Peru (outro gol), no 2-2 com a Tchecoslováquia, no 1-1 com a Escócia e em 8-2 amistoso não-oficial contra os suecos do Atvidabergs, onde conseguiu um hat trick. Mas, na Inglaterra, só foi escalado no jogo derradeiro da canarinho, formando o trio ofensivo com Pelé e Paraná na derrota para Portugal. A eliminação brasileira precoce (que marcou a despedida involuntária de Silva na seleção) não impediu um interesse do Barcelona. Em tempos muito distantes da Lei Bosman e de desequilíbrio de finanças e prestígio entre o futebol europeu e o sul-americano, os catalães não conseguiram fechar nem com Pelé e nem com o argentino Oscar Más, que pôde se destacar na Copa. Focaram então em Silva. Enquanto as negociações não fechavam, ele seguiu no Flamengo pelo restante do ano.

Foi ídolo nos rivais Flamengo (com Almir Pernambuquinho, ex-Boca) e Vasco. É o quarto agachado nos campeões de 1970. O primeiro e o último em pé são o argentino Andrada e o técnico Tim, campeão no San Lorenzo em 1968

Curiosamente, pôde conhecer Avellaneda em 1º de novembro: naquela data, jogou no estádio do Independiente um amistoso pelos rubro-negros nada menos que contra a própria seleção argentina, que se preparava para a Copa América que se realizaria dali a dois meses. E foi do “Batuta” o gol flamenguista no honroso 1-1, empatando a partida. O bom resultado, porém, terminou esquecido em dezembro, na derrota na final estadual para o Bangu. Treinado pelo argentino Alfredo González, ex-atacante do próprio Flamengo, o alvirrubro ganhou por 3-0 em partida recordada pela briga generalizada iniciada pelo descontrolado Almir Pernambuquinho. Foi o último título estadual a escapar dos quatro grandes cariocas. O Batuta, novamente, havia sido o artilheiro do elenco flamenguista, e então transferiu-se ao Barcelona. Mas sua estadia ali seria breve e péssima: o futebol espanhol estava fechado a estrangeiros e a contratação veio na expectativa de que essa proibição fosse cessar.

Como blaugrana, Silva só pôde jogar amistosos, estreando em fevereiro de 1967 em exibição morna contra o Feyenoord. Não tardaria a ser passado ao Santos e terminou mais lembrado na Espanha por conta de declaração racista do então presidente do Barça, Enric Llaudet: “pois se não pode jogar, o usarei como chofer. Sempre quis ter um chofer negro”. O relato, do jornal El Paísestá neste link. De setembro a novembro de 1967 na Vila Belmiro, Silva pôde contribuir com sete gols na conquista estadual. Mas, sem se firmar totalmente em um ataque que, além de Pelé, já era bem municiado com Toninho Guerreiro e Douglas, acertou um retorno ao Flamengo para 1968. Pôde inclusive deparar-se duas vezes com o Racing naquele ano. No Torneio Conde de Fenosa na Coruña, os argentinos venceram por 2-0. O troco viria no Marrocos, na decisão do Torneio Mohamed V, ganha de virada por 2-1 pelos cariocas – curiosamente, com gol de um brasileiro que vinha do próprio Racing, o ponta Luís Cláudio.

Em tempos de bastante valorização desses torneios, a delegação rubro-negra foi muito festejada ao desembarcar no Galeão, conforme contado pelo amigo Emmanuel do Valle no seu Flamengo Alternativo. A empolgação tinha suas razões: os cariocas podiam gabar-se em ter batido o então campeão mundial. La Acadé de fato ainda respirava sua maior conquista, a primeira do futebol argentino, após triunfar no tira-teima com o Celtic em novembro de 1967. Foi nesse contexto glorioso que Silva, a dois pontos da artilharia do Cariocão de 1968 (sem evitar que o Flamengo ficasse apenas em terceiro), transferiu-se ao Racing. Sequer desconfiava-se que só nos idos de 1988 o clube levantaria uma taça não-amistosa (com a Supercopa Libertadores, sobre o Cruzeiro) e que entre 1966 e 2001 passaria por 35 anos sem títulos na elite. Esse jejum tinha tudo para ser menor em 1969, com El Equipo de José, o time do técnico Juan José Pizzuti, ainda em alta.

O campeonato metropolitano de 1969 (novo nome do antigo campeonato argentino, concentrado na Grande Buenos Aires, La Plata e Rosario e que desde 1967 dividia o calendário anual com o “Torneio Nacional”) funcionou assim: os 22 clubes foram divididos em dois grupos, que separavam rivais. Cada time enfrentava em turno em returno os oponentes do grupo e faziam também dois jogos integrupais, normalmente os clássicos (entre aqueles cujo rival estava na elite, é claro). Os dois primeiros de cada grupo fariam semifinal e final em jogos únicos em campo neutro. E Silva começou mal: expulso em plena estreia, contra o Los Andes. Mas no seu jogo seguinte, fez seu primeiro gol, um 2-0 no forte Estudiantes (tri seguido na Libertadores no período, havia acabado de ser campeão mundial também, em 1968, sobre o Manchester United em Old Trafford). Foi a primeira vitória racinguista, na terceira rodada.

A declaração de Doval está no segundo parágrafo – salve a imagem ou abra-a em nova janela

O brasileiro deixou os seus gols seguidamente também na quarta e na quinta rodadas: um 1-1 com o Huracán, que curiosamente marcou também através de um brasileiro, Araquém de Melo; e um 3-1 no Platense, com dois do reforço. Mas só a partir da nona rodada é que o Batuta viraria de vez El Negro Exquisito, palavra esta que na Argentina tem sentido diferente, significando “requintado” e não “estranho”. Após três partidas em branco, deixou o seu no 2-2 em clássico intergrupal com o Independiente. Nos cinco jogos seguintes, deixou sete gols: após um 0-0 com o Argentinos Jrs, o brasileiro anotou nos 2-2 com o River no Monumental de Núñez; um também fora de casa nos 3-1 sobre o Los Andes, já no returno; três em um 5-2 no Newell’s; e o único no 1-0 em reencontro com o Estudiantes, dessa vez dentro de La Plata. Nos nove jogos restantes da primeira fase, somou mais quatro gols.

Ao todo, foram 14 gols de Silva em 22 jogos daquela fase inicial, da qual seu Racing foi a melhor equipe: somou 35 pontos de 44 possíveis, enquanto os líderes do outro grupo, Boca e Chacarita, ficaram nos 30. “Era delicioso vê-lo jogar: tinha um grande domínio da bola, um drible vistoso, uma pegada de outro planeta e um soberbo cabeceio”, relatou aquela El Gráfico especial de 2011 sobre o desempenho do “brasileiro luxuoso que esteve só um ano, mas ninguém o esqueceu. Nesse 1969 que esteve afincado em Avellaneda, se apresentou grandemente com tiros livres impossíveis de agarrar, com passes-gol que causavam admiração, com arremates eletrizantes aos ângulos e gols de cabeça que faziam com que o Racing somasse muitos pontos”, prosseguiu a revista. 

O vitorioso técnico daquele Racing, Juan José Pizzuti, acabaria chamado para treinar a seleção argentina após o insucesso dela em se classificar à Copa do Mundo de 1970. Indagado pela mesma El Gráfico, mas naquele 1969, sobre Silva, Pizzuti respondeu assim: “um grande jogador. O que nós precisávamos para dar força ao ataque. O brasileiro tem qualidade e experiência. Sabe regular o jogo e pode regular toda a equipe, porque já não podemos seguir jogando na vertigem de 1966… aquilo já passou (…). Machado vai muito bem acima. Tem a característica clássica dos grandes jogadores brasileiros: o salto duplo. Se eleva, pára no ar e segue subindo. Tem marcado gols magníficos arqueando-se e cabeceando por cima do defensor”.

Silva também foi capa da revista na época e em certa matéria menciona-se que um jovem ponta do San Lorenzo chamado Narciso Doval procurou-lhe sobre uma oferta do Flamengo: “quero saber como é a situação lá (no Brasil) porque me têm pedido. Estou consultando el negro para saber se me convém ir”, explicou Doval, que brilharia no rubronegro e no Fluminense nos anos 70. Contudo, o carnaval teve um fim cediço.

“A elegância feita gol”, diz o pôster à esquerda; em clássico com o Independiente, onde deixou o seu gol; e chamado de “melhor camisa 9” do Racing em comentários à foto com o futuro cruzeirense Perfumo

Com a melhor campanha na fase de grupos, o Racing poderia empatar no jogo único de semifinal com o Chacarita, um intruso nada acostumado a lutar por títulos. Os alvicelestes pareceram ter se apegado à vantagem ou se poupado para final teoricamente mais difícil (ou ambos) contra Boca ou River, que travaram a outra semi. A avaliação da El Gráfico sobre a mentalidade ofensiva racinguista foi de só 2 pontos e dois jogadores de defesa foram os melhor avaliados pelo clube ali: o goleiro Agustín Cejas, depois ídolo no Santos de Pelé, com 7 pontos, enquanto o futuro ídolo cruzeirense Roberto Perfumo levou 6. A Silva foi dado nota 5, ainda assim a mais alta do quinteto ofensivo.

O Racing acabou castigado. No fim do jogo, aos 42 do segundo tempo, um peixinho certeiro na entrada da pequena área fez o único gol da partida, mas a favor do Chacarita. O Chaca provaria adiante que não era fogo de palha e goleou o River na final por 4-1, conquistando o único título de elite dos tricolores. Fosse em outro contexto, os racinguistas talvez jogassem de outro modo: cerca de dois meses depois, já no Torneio Nacional, ganharam do Chacarita por 3-0 – com dois de Silva… também ironicamente, porém, o desempenho em geral no Nacional foi morno; o Racing ficaria apenas em 8º. O brasileiro ainda atuaria na extinta Supercopa de Campeões Mundiais: seu último jogo pelo Racing foi nesse torneio, em derrota de 4-1 para o Peñarol em 23 de dezembro.

“O sucesso não me fazia esquecer o Brasil. Só Deus sabe como fiquei alegre no dia em que assinei contrato com o Vasco. Sentia-me um menino de dez anos”, contou o atacante à Placar em 1970. Deu-se bem naquele ano: enquanto o Racing, sem ele, Cejas e Pizzuti, fazia sua pior campanha até então (um 11º lugar), o atacante participou ativamente do fim do maior jejum cruzmaltino, sendo o artilheiro do elenco campeão estadual. O time se livrava de uma seca de doze anos, com elenco onde figuravam também o goleiro argentino Edgardo Andrada e o técnico Tim, comandante do San Lorenzo que em 1968 tornara-se o primeiro time campeão argentino invicto no profissionalismo. Já veterano, Silva ainda defenderia no Rio também o Botafogo antes de viajar cada vez mais ao norte.

Ele passou primeiramente pelo Rio Negro no Amazonas e depois para a Colômbia, onde esteve no Junior de Barranquilla; e por fim foi à Venezuela, onde pendurou as chuteiras no Tiquire Flores, em 1975. Silva chegou a graduar-sem direito, mas optou por voltar ao Flamengo – agora, na área administrativa, além de atuar ocasionalmente em equipes de masters rubro-negras. Segue sem ser esquecido na Argentina: “Walter Machado da Silva contabiliza 28 jogos em seu passo pelo Racing, convertendo um total de 18 gols. A média é impactante. (…) Ao marchar de novo ao Brasil, o Racing o extrañó…“, concluiu seu perfil aquela El Gráfico. A palavra extraño, sem o acento agudo, traduz-se mesmo como “estranho”. Mas o verbo extrañar tem outro sentido. Significa sentir saudades…

O brasileiro novamente lembrado por torcedores. Na foto, Agustín Cejas, Alfio Basile, Roberto Perfumo, Enrique Wolff, Nelson Chabay e Juan Carlos Rulli; Hugo Zarich, Osvaldo Lamelza, ele, Roberto Salomone e Miguel Adorno.
https://twitter.com/RacingClub/status/1212828623129980928
https://twitter.com/DD1P_Ok/status/1212717095445835776
https://twitter.com/Comu_Racing/status/1212722318927159297

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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