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Do bairro para o mundo: há 25 anos, o Vélez vencia seu Mundial, sobre o Milan

Trotta, Gómez, Sotomayor, Almandoz, Chilavert e Basualdo, Bassedas, Asad, Flores, Pompei e Cardozo em Tóquio

Chilavert já disse que aquele Vélez sairia campeão até no Vietnã em guerra. O cenário oriental foi o Japão mesmo. Pela frente, um Milan que era virtualmente a Itália quase campeã mundial naquele ano: as trocas eram praticamente Pagliuca por Sebastiano Rossi e Baggio por Savićević. Já os argentinos ainda eram um time de bairro – e por isso, diz a lenda, o técnico oponente Fabio Capello, quando inteirou-se disso, afirmou que, com este porte, se fossem italianos estariam na terceira divisão. Mas o elenco que havia encerrado o Dream Team do Barcelona de Romário, Stoichkov e do técnico Cruijff com um 4-0 na final da Liga dos Campeões acabou sobrepujado por aqueles esforçados sul-americanos.

“Tens caneta para anotar? San Telmo, Defensores de Belgrano, Huracán, Argentinos Jrs, Platense, River, Nueva Chicago, Laferrere, Almirante Brown, Flandria, Tigre, San Lorenzo, hmm… Deportivo Lugano, Deportivo Paraguayo, Riestra, Deportivo Merlo, Barracas Central e Vélez, onde me recusaram uns anos antes de me aceitarem. (…) Do Tigre fui meio resignado, já eram quase 20 equipes e 20 fracassos. Uma manhã passei pelo posto de diários do meu amigo Quique e li que o Vélez testava pela última semana as categorias 1971 a 1974. Fui sozinho, vestido de jogador, com minhas chuteiras, cabelo grande. Me colocaram no segundo jogo e arrebentei. (…) ‘Sempre foste parrudo?’, me perguntaram. ‘Quanto pesas?’ Lhe respondi que 98. ‘Baixe seis quilos e volte em dois meses que vamos seguir lhe testando’”.

Omar Asad assim respondeu em entrevista de 2010 à revista El Gráfico sobre as desventuras para iniciar a carreira. Poderia até ter ficado no Tigre (“estive 4 meses, treinava com o time principal e um dia me chama o presidente, Daniel Gutiérrez, para assinar o contrato. Me ofereciam zero de salário, zero de vale-transporte, zero de tudo, ‘para desempenhar-se no plantel profissional de Primeira e da Reserva do Club Atlético Tigre’. Pedi um minuto e chamei por telefone desde outro escritoriozinho meu primo Julio Asad, o ex-jogador, que me ajudava em tudo. ‘Sai e anda correndo, te espero na Beiró com General Paz”’). Se ficasse, o Vélez poderia ter se privado de suas maiores glórias…

El Turco estreou profissionalmente em 1992 e no ano seguinte foi artilheiro do elenco velezano campeão argentino pela segunda vez, a primeira em 25 anos. Um ano depois, um time de bairro venceu a Libertadores sobre o bicampeão São Paulo de Telê Santana, com Asad marcando o único gol argentino nas finais. E ele voltaria a anotar 25 anos atrás. Um golaço que simbolizou como poucos poderiam todo o atrevimento, garra e magia daquele vencedor Vélez dos anos 90.

Os coadjuvantes da conquista: Zandoná, Almandoz, Turu Flores e Bassedas turistando; Cardozo, Gómez, Pompei (encoberto), o capitão Trotta e Sotomayor com a taça Toyota

Mas o início da final não foi fácil. O Milan dava medo: “na noite anterior me levantei às 4 da manhã. (…) Estavam todos com os olhos bem abertos. Todos. Não era pelo fuso horário, era pelo cagaço terrível que tínhamos!”, disse Asad na mesma entrevista. O técnico Carlos Bianchi estava ciente dessa condição: “pensei, com lógica, que os primeiros minutos não iam ser nosso forte. Os nervos, a pressão de saber que todo o mundo os estava olhando influiria. ‘Se passamos esse lapso sem ser feridos, sou otimista’, disse aos jogadores na preleção”.

Quem ver o vídeo da íntegra da final notará que até a meia hora de duração do mesmo só o Milan foi ofensivo, ainda que com poucas chances claras de gol. Impressão vista logo no início: o Vélez deu a saída de bola, que chegou ao lateral Cardozo, que a perdeu bobamente para Boban (sem trocadilho). Um minuto e meio de jogo já veria um cartão amarelo, após falta de Almandoz em Massaro. Na cobrança, Chilavert agarrou com segurança um tiro rasteiro de Savićević, pedindo em seguida calma aos colegas.

Almandoz voltou a errar aos 4 minutos, com sua tentativa de chutão indo baixo e resvalando no calcanhar de Massaro, que estaria com a frente livre caso pudesse dominar o rebote da bola. Aos 17 minutos, Gómez também foi amarelado, ao pisar em Donadoni. É por volta da metade da primeira etapa, aos 23 minutos, que os argentinos enfim conseguem chegar ao ataque em sequência e esse ponto de virada é simbolizado justamente por Asad. “Três meses antes de viajar, meus companheiros me desafiavam: ‘gordo cagão, que se faz de atrevido em Ciudad Evita, vamos ver se te animas em fazer o mesmo nos carcamanos, heim?’. Bianchi, cúmplice, metia corda: ‘mas você bancará, Omar, ou não bancará?’. E quando estávamos para entrar, me disse: ‘na primeira que tenhas, peite Baresi, demonstre-lhe que tens personalidade”, declarou El Turco naquela entrevista.

A “sugestão” de Bianchi tem uma versão mais conhecida e mais chula. El Virrey se tornou um técnico vencedor com diversas características: profissionalismo 100%, liderar com o exemplo, pôr o grupo acima de tudo, respeitar seus jogadores para ser respeitado, valorizar seus jogadores, transmitir confiança, cultivar liderança e também ser humilde e autocrítico são só algumas. Outra é ser simples e preciso na linguagem do jogador: a “tática” que teria passado para Asad usar no aristocrático Baresi, sabendo que os 34 anos já pesavam no lendário líbero, seria “mostre-lhe a bunda e jogue nele a merda”.

Os protagonistas: Asad (celebrando o gordo réveillon do Vélez, que foi fundado em 1 de janeiro), Bianchi e Chilavert

A oportunidade veio por volta dos 24 minutos de jogo. O tanque argentino deu de ombros no defensor, que caiu com tudo no chão, incrédulo. Para arrematar, o lance foi legal e Asad ainda arrancou um escanteio. Na sequência, após a cobrança, catimbou também o goleiro Rossi. Quem ver o jogo todo nota: dali os argentinos passaram a ditar o ritmo e os rubro-negros, a perder os nervos. Dois minutos e meio depois, Savićević foi amarelado após perder um ataque e jogar o braço em Sotomayor. Aos 31, Boban isolou livre após boa jogada do ex-colega de seleção iugolsava.

A confiança foi crescendo. Asad bailou sobre Baresi por volta do minuto 30, aos 32 Turu Flores arrancou e só foi parado após Desailly derruba-lo… Aos 40, o Vélez havia perdido um ataque e Albertini estava com a bola com certa tranquilidade. Mas Pompei resolveu lutar por ela e o volante italiano conseguiu perdê-la e fazer falta na entrada da área. O monstro não era tão feio: “(Bianchi) buscou um efeito-cascata do ruim ao bom. Primeiro, nos mostrou um vídeo da final da Champions: o Milan havia ganhado por 4-0 do Barcelona de Cruijff com baile. (…) Em dois dias, nos mostrou uns jogos do torneio italiano do momento, todas derrotas do Milan. ‘A realidade é essa’, nos disse. E nos ressaltou que éramos um grupo humilde e que desfrutássemos da final porque seria muito difícil voltar a vivê-la. Tinha razão: só voltaram ele, Ischia, Santella e Basualdo”, explicou Asad. Desses, todos depois acompanhantes de Bianchi no Boca, só Basualdo era jogador.

Veio o segundo tempo, onde enfim Chilavert precisou trabalhar mais. Costacurta viria a ser o pior jogador em campo, mas fez belo lançamento que colocou Massaro livre na cara do paraguaio. Foi o lance de gol mais claro do Milan no jogo, mas Chila caiu no momento certo para afastar o chute cruzado, no segundo minuto da etapa complementar. A resposta hermana não tardou, com um bom ataque engatado. A defesa italiana rechaçou e a bola foi recuada de volta a Chilavert, que, como um líbero, avançou uns bons passos fora da grande área e lançou na medida para Basualdo. Enquanto este cruzava, Costacurta segurou Turu Flores pela camisa na grande área.

Chilavert ainda não era o cobrador oficial e sim o capitão Trotta (eles chegaram a se desentender exatamente porque Trotta queria bater dois meses antes a cobrança que rendeu o primeiro gol de falta do goleiro: confira). O chute forte no meio do gol entrou entre as pernas de Rossi. Sete minutos depois, Asad estava descolado de Baresi e acreditou que chegaria em bola mal recuada de Costacurta para Rossi. Alcançou-a, tirou o goleiro da jogada, girou o corpo e emendou sem ângulo para marcar o mais belo gol das Intercontinentais. A empolgação foi tamanha que o goleiro reserva Guzmán, por invadir o campo, recebeu o vermelho. A ironia é que Asad poderia ter ficado de fora do jogo não apenas se tivesse desistido da carreira depois de seguidos nãos, mas também por opção de Bianchi.

Algum mundial de clubes já teve gol mais inesperado e maravilhoso?

“Lá não comíamos bem (…), então com o Turu (Flores) pegávamos um pão com manteiga para saciar a fome. Um dia Bianchi me viu comendo pão e pediu que o preparador físico me pesasse. A balança cantou ‘94,5’. Então lhe disse em voz alta a Santella, para que eu escutasse: ‘se esse jogador não pesa 93 no dia do jogo, não joga’. Na quarta-feira de 1 de dezembro, dia do jogo, às 9 da manhã golpeiam a porta. Abro e estava Bianchi com a balança na mão e Santella atrás. Eu… de calções. (…) Fomos ao banheiro e deu… 92,5. Matei o careca. Santella estava atrás e festejava. ‘Ainda não festeje, que falta o café da manhã e o almoço’, me disse. Ao fim, fiz um pique de 20 metros com 93 quilos, um raio, toquei para um canto, dei meia volta e meti o gol”.

O Milan foi para cima, mas inquieto. Chilavert, tranquilamente, fazia seu trabalho, antecipando-se para interceptar passes e cruzamentos ou agarrando sem oferecer rebotes as tentativas de Massaro e Simone. Quem mais esteve perto de novo gol foi o Vélez: primeiramente, Asad interceptou passe do péssimo Costacurta e avançou livre. O zagueiro, como último homem de linha, não teve opção senão derrubar El Turco e, com isso, ser expulso. O técnico Fabio Capello jogou a toalha em seguida, ordenando a substituição de Savićević. Nos cinco minutos seguintes à expulsão, o Vélez teve duas boas chances: na primeira, Pompei quase marcou de fora da área e na outra Flores poderia ter marcado se não demorasse demais para definir. Já o Vélez, contra um dos elencos mais celebrados da história, soube ganha-lo sem qualquer substituição e jogando bem, batendo o Milan com certa facilidade inimaginável – outro volante, Bassedas, já disse que a final da Libertadores, contra o São Paulo, foi bem mais complicada.

Embora o time de Liniers tenha ganho os títulos mais importantes do futebol argentino em 1994, a El Gráfico permitiu promover um debate com os outros clubes campeões no ano – ambos duas vezes, aliás, com o River faturando em março o Apertura ainda válido por 1993 e em dezembro o Apertura 1994 como seu único título argentino invicto; e com o Independiente levantando o Clausura e, com um futebol envolvente, a Supercopa. A revista entendeu que o Rojo tinha o melhor meio e o Millo, o melhor ataque, com Chilavert sendo decisivo para o Fortín ter a melhor defesa, além de auxiliar o ataque com seus lançamentos – como o do gol que abriu o placar no Japão. A equipe de Bianchi foi qualificada como pragmática conforme o adversário e sem maior riqueza técnica, mas avaliaram-na como a de mais “fibra combativa”: “nessa matéria, o Vélez foi um expoente de garra excepcional. Nesses jogos decisivos que não se podem perder de nenhuma maneira, mesmo jogando mal, demonstrou ser um autêntico herdeiro da estirpe batalhadora e brava daquele arquétipo do Fortín que se chamou Victorio Spinetto”.

Spinetto era o astuto treinador que tirou o clube da segundona em 1943 e permaneceu no cargo por mais de dez anos, tendo como pupilo Osvaldo Zubeldía, atacante que usaria as ideias do mestre como técnico do lutador Estudiantes tri da Libertadores. No Mundial de 1994, essa garra estava simbolizada em especial pelo volante Marcelo Gómez, que jogou sob infiltrações para não perder a partida após sentir dor no joelho no pré-aquecimento. E quanto a Asad? Foi eleito com justiça o melhor em campo, sendo presenteado pela Toyota com um carro de marca. Mas, além da garra, havia a imposição do conjunto sobre individualidades: “fizemos uma rifa, (…) tiramos o dobro do valor e repartimos a grana entre todos. Foi uma ideia do Bianchi, e nos deixou claro antes de viajar, para que não houvesse egoísmos. Quando me trouxeram a Toyota do Japão, queria morrer. A pus ao lado do meu Fiat 147 branco e chorava”.

Flores, Basualdo, Asad, Sotomayor e Gómez: a camisa rossonera ergue o troféu, mas trajando a conquistadora garotada de bairro

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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