70 anos de Carlos Bianchi: antes de um senhor técnico, um goleador à altura de Messi
Nota revista e atualizada desta publicada em 2017
Todos sabem do Carlos Bianchi treinador. Nem tanto que esse sucesso estrondoso ofuscou o goleador notável que foi. É provável que ninguém tenha tido tamanho brilho individual nas duas funções. Bianchi seria o maior artilheiro do campeonato argentino se não jogasse na França. E vice-versa! Só em campeonatos nacionais, foram 393 gols, 385 deles na primeira divisão. Apenas no ano passado é que foi ultrapassado pelos atuais 427 gols de Messi e 417 de Cristiano Ronaldo em ligas nacionais; até então, apenas Gerd Müller somava mais gols considerando ligas de países campeões mundiais. E só Ibrahimović superou El Virrey no PSG em número de gols em uma só temporada – com apenas um a mais. Bianchi tem oito artilharias em campeonatos nacionais na carreira, recorde entre argentinos. Este especial vai relembrar esses e outros números impressionantes dele com chuteiras: um goleador veloz, malandro, inteligente, com grande senso de colocação e de chute preciso.
Para começar, um outro recorde especial de Bianchi (sempre pronunciando “Biântchi” pelos argentinos e não “Biânqui”): só ele e Guardiola foram técnicos campeões mundiais treinando os clubes em que se formaram. O argentino começou a carreira no Vélez e poderia ter se chamado Amor Bianchi, o mesmo nome de seu pai, por sua vez filho de um Giovanni Bianchi que imigrara aos 14 anos da Itália e, anarquista e romântico, detestava nomes convencionais e nomeou os irmãos de Amor como Vir (de virilidade), Cholo, Luz, Alba e Porvenir. O registro civil, porém, não foi tão solícito quando chegou a vez de Amor anunciar seu filho e assim Carlos foi o nome escolhido. Foi criado perto do estádio e chegou em 1964 nos juvenis, após anos de indisciplina escolar, cheio de episódios de gols nas aulas de educação física e de transgressões contra os padres professores.
Bianchi, ainda auxiliando o pai Amor como jornaleiro, estreou oficialmente no time adulto em 23 de julho de 1967 pela 21ª rodada do Torneio Metropolitano. Curiosamente, contra a outra equipe com a qual se identificaria, o Boca, em empate em 1-1. Mas, jogando só três vezes no ano, seria necessário esperar quase um ano para gritar seu primeiro gol. Foi em 7 de julho de 1968, em vitória por 4-2 sobre o Argentinos Jrs, que mandou a partida no estádio do Atlanta. O ano de 1968 foi também o último da carreira argentina de uma lenda: o goleirão Amadeo Carrizo. Descrito por Bianchi como “a perfeição no arco”, justamente naquele momento Carrizo, desde 1945 no time adulto do River, conseguia um recorde de minutos sem sofrer gols. Durou exatamente 726 minutos, cerca de oito jogos. Foi justamente o segundo gol da carreira de Bianchi que encerrou os 726 minutos. Como todo centroavante a se prezar, mostrou que não escolhia o modo de fazer gols: aquele foi de nariz (!).
Seu avô anarquista levou-o à redação do Crónica afirmando que o neto era melhor que Pelé. Mas, na ocasião, os aplausos foram todos para Carrizo, que estampou a capa da revista El Gráfico sob as legendas “a façanha que alegrou um país”. Aquele foi também o primeiro dos 16 gols que Bianchi faria no River. Muito antes do ex-atacante se consagrar no Boca, o destino já era irônico: Carlitos era torcedor do River na infância e se converteria exatamente na pessoa que mais gols fez no clube. Foram 16. O ano de 1968 também marcou o primeiro título do Vélez na elite. Bianchi foi um 12º jogador. O centroavante titular era Omar Wehbe, herói dos três gols no jogo decisivo com o Racing. Muito novo, Carlos era usado mais como ponta-esquerda, contribuindo na campanha com sete gols. Um deles, na maior goleada da história velezana, um 11-0 sobre o Huracán de Bahía Blanca, um exagero que adiante provou-se decisivo, pois foi por um gol a mais no saldo que o Fortín foi campeão. Bianchi participou da partida decisiva entrando no segundo tempo no lugar de Lorenzo Nogara.
O triunfo tirou o título das mãos do… River, que buscava desfazer jejum pendente desde 1957 – se prolongaria até 1975. Bianchi ficaria a dois gols da artilharia do Torneio Nacional de 1969 (chegou a fazer os cinco gols de um 5-0 no San Lorenzo de Mar del Plata), mas foi outro ano depois, no Torneio Nacional de 1970, que desabrochou de vez: artilheiro com 18 gols, em só 20 rodadas. Assim, estreou pela seleção em 22 de outubro, em um 1-1 amistoso com o Paraguai em Assunção. O desempenho de 1970 foi uma prévia do que produziria em 1971, um ano brilhante para o Vélez. Mas também traumático. Tudo porque o clube perdeu na última rodada um título que parecia ganho: um instável Huracán, mesmo fora de casa, conseguiu vencer de virada o líder, que tinha toda a festa já preparada. Relembramos neste especial: a taça do Metropolitano ficou com o Independiente apesar dos 36 gols de Bianchi. Ele foi só o quarto a passar dos trinta gols em um campeonato argentino, e o primeiro em trinta anos. Três deles, logo na primeira rodada, em um 4-0 no Los Andes.
Outros dois deles vitimaram novamente o River em um 3-0 fora de casa, na primeira vez em que o Fortín venceu o Millo no Monumental de Núñez. Fez ainda três em um 6-1 no San Lorenzo. E fora de casa – em dia em que uma vitória simples já havia previamente rendido uma promessa de que deixaria crescer bigodes (logo cumprida por um tempo). Bianchi deixava de ser Carlitos para ser El Virrey, “O Vice-Rei”, em alusão ao cargo de vice-rei que possuía Santiago de Liniers – homem que dá nome ao bairro velezano. Liniers, por sinal, foi um imigrante francês no solo argentino. Considerado um novo Bernabé Ferreyra (justamente o antecessor de Neymar como recorde de transferência no futebol com valor a superar o dobro do recorde anterior, nos anos 30) ou um novo Luis Artime, Bianchi também conseguiu tripletas contra Argentinos Jrs (4-0) e Platense (todos no 3-2 fora de casa). E pensar que foi só aquele título classificou o Independiente para a primeira das quatro Libertadores seguidamente vencidas pelo Rojo entre 1972-75…
Paralelamente, entre janeiro e agosto Bianchi realizou nove de seus 14 jogos pela seleção argentina. Por ela, também teve bons números, com 7 gols nos 14 jogos. Mas era imprevisível: em dez dessas partidas, ele passou em branco. E em quatro, conseguiu reunir os sete gols. O primeiro, já na sexta partida, foi o de um empate em 1-1 com o Uruguai no estádio Centenário. Pela Albiceleste, ele também destacou-se com os dois em um 2-2 com o Chile em Santiago e com três em um 4-1 sobre a Colômbia na Fonte Nova, na disputa da Taça Independência, uma Minicopa promovida no Brasil em 1972 em celebração aos 150 anos do Grito do Ipiranga. Essa irregularidade, a abundância de bons nomes caseiros em uma geração dourada do futebol argentino e a transferência à Europa em tempos em que isso mais atrapalhava do que ajudava a se manter na seleção fizeram com que Bianchi acabasse relegado em futuras convocações, perdendo lugar nas Copas de 1974 e 1978.
A transferência à Europa deu-se em 1973 (iria ao Cruz Azul em 1971, mas a AFA proibiu transferências de menores de 22 anos, apesar dos mexicanos haverem pago até a lua de mel do artilheiro, que só atuou rapidamente em um amistoso pelos mexicanos). Mesmo perdendo diversas rodadas do Metropolitano pela participação com a seleção na Taça Independência, Carlitos havia ficado a cinco gols da artilharia no Metropolitano de 1972. No Nacional, ficou a três gols. El Virrey despediu-se no início de 1973 de Liniers, não sem antes marcar dois gols em vitória por 4-2 sobre o River no Monumental e de marcar três em um 4-1 no San Lorenzo. O destino europeu seria o Barcelona, juntamente com Jairzinho, mas calhou de La Liga fechar-se a novos estrangeiros. Foi contratado então pelo Stade de Reims, que buscava um substituto para Delio Onnis, artilheiro ítalo-argentino que o clube vendeu ao Monaco. Bianchi foi imediatamente artilheiro da liga francesa (e o 3º maior goleador no continente, rendendo-lhe uma Chuteira de Bronze do L’Équipe), levando o Reims à 6ª colocação. Jogando com lentes de contato, item que começou a usar aos 25 anos…
Pelos dez anos seguintes, a artilharia da Ligue 1 ficou justamente ou com Onnis ou com Bianchi, que a dividiram salomonicamente: cada um foi goleador máximo cinco vezes. Já dedicamos este Especial a respeito: individualmente, Bianchi levou a melhor enquanto concorreu com Onnis (por sinal, o vice-artilheiro do Torneio Nacional de 1970, superado por Bianchi), o que durou até 1981, quando acertou seu retorno ao futebol argentino. Por quatro temporadas seguidas, entre 1976 e 1979, só deu Carlitos no topo máximo de gols no Francesão, valendo ressaltar ainda que ele sofreu 73 pontos após uma fratura tripla na tíbia em amistoso com o Barcelona em 1975, o que impediu ainda mais gols. Nas duas primeiras temporadas entre 1976-79, ainda estava no Reims, que não era mais a potência de Just Fontaine e Raymond Kopa nos anos 50. O argentino foi no máximo 5º lugar pelos rouge et blancs, em 1976 (Bianchi recebeu a Chuteira de Prata como segundo maior artilheiro do continente. O primeiro jogava no Chipre…), e vice da Copa da França, em 1977.
Nas outras duas temporadas entre 1976-79, ele foi artilheiro francês pelo nascente Paris Saint-Germain, um clube longe do poderio atual, recebendo inclusive nova chuteira de prata, em 1978. A equipe da capital fora fundada em 1970 e demoraria um pouco a engrenar. Na Cidade Luz, Bianchi reluziu ainda mais, e El Virrey agora era Le Goleador, com um país conhecido pelo orgulho pelo idioma nacional, especialmente naqueles tempos, rendendo-se a uma expressão estrangeira (Le Butteur seria o apelido correto em francês). Foram 60 gols em apenas 70 jogos. 37 deles, na temporada 1977-78, só foram superados no clube pelos 38 de Ibrahimović em 2015-16, e renderam-lhe na época nova Chuteira de Prata como segundo maior goleador entre todos os campeonatos europeus. Mas não bastaram para leva-lo à Copa do Mundo, em tempos em que ir à Europa mais atrapalhava do que ajudava a manter-se na seleção. Ele chegou a ser sondado pelo Boca em 1977, mas não houve negócio.
Afinal, em contexto bem diferente com o de Ibrahimović, o PSG nem em 10º chegava naqueles tempos – o que, por outro lado, só engradece os números do Virrey no Parc des Princes. E só um jogador “estrangeiro” foi chamado: Mario Kempes, do Valencia. No cômputo geral de seus gols, Messi e Di Stéfano são os maiores artilheiros argentinos, passando dos 500. Bianchi é o terceiro, acumulando 434. Por outro lado, ele não teve para si maiores oportunidades de jogar regularmente torneios continentais, em época em que literalmente só os campeões disputavam a Liga dos Campeões ou a Recopa Europeia. Apesar do brilho imenso de Carlitos, a velha Copa da UEFA também não ficava ao alcance, restando-lhe as ligas e copas nacionais. Assim, um modo mais justo de avalia-lo individualmente em comparação à concorrência de Messi e Di Stéfano é computando os gols em torneios domésticos. E na Copa da França, El Virrey também foi espantoso: em 28 jogos, 30 gols!
Para ser justo, Bianchi chegou a jogar uma temporada na Liga dos Campeões. Foi pelo Racing Strasbourg. Campeão francês da temporada 1978-79, quando o argentino ainda estava no PSG, o clube da Alsácia reforçou-se com aquele atacante para a temporada seguinte. Para seus padrões, Carlitos foi morno na nova equipe (“só” meio gol por jogo: 11 em 23), mas pôde deixar alguma marca para as estatísticas continentais: jogou só três partidas, mas ainda assim conseguiu um hat trick, marcando os três primeiros gols no 4-0 sobre o Start. É provável que seja o autor de três gols em um só jogo com menos partidas no torneio. Certo é que só ele e Di Stéfano, dentre argentinos, conseguiram hat tricks na competição até 2000. O Strasbourg cairia cedo, para o Ajax.
Apesar de tantos números impressionantes na França, rendendo-lhe duas biografias locais e até estampa em um champanhe, uma andorinha só não fazia verão. Bianchi nunca conseguiu ser campeão por lá e voltou ao Vélez em setembro de 1980. Também nas Américas, competições continentais não estavam em questão: o clube, mesmo campeão em 1968, recusou-se a jogar a edição de 1969. E a edição de 1980, que contou com o Fortín, acabara ainda em agosto. Nos gramados nacionais, Bianchi, mesmo já grisalho nos fios que ainda conservava em meio a uma careca escancarada, voltou com tudo: em 1981, foi artilheiro tanto do Metropolitano (com 36 gols em 36 jogos! E pelo 11º colocado…) como do Nacional (com 15 gols em 17 partidas…).
No Torneio Nacional, foi decisivo justamente na eliminação do Boca, e do Boca de Maradona, recém-campeão do Metropolitano. Com direito a Dieguito expulso, Bianchi abriu o placar dos 3-1 em jogo único nas quartas-de-final. Mas o cenário francês se repetiu: os colegas não ajudavam e o Vélez foi eliminado nas semifinais justo no Clásico del Oeste com o Ferro Carril, apesar do Virrey marcar em ambos os jogos. Por outro lado, as duas artilharias de 1981 significaram total de oito artilharias na carreira. Só outro dois argentinos conseguiram oito: Di Stéfano e Atilio García, maior goleador do futebol uruguaio e do Nacional de Montevidéu. Em 1982 (fez os três de um 3-1 no River…) e em 1984, o Vélez foi respectivamente 5º e 4º colocado no Metropolitano, terminando o de 1983 a quatro pontos do campeão Independiente no embalo da vice-artilharia do veterano centroavante.
Ele ainda jogou cerca de metade do Metropolitano de 1984, onde o clube foi 6º. Acertou uma breve volta ao Reims, que estava na segunda divisão. Em sua despedida como jogador do futebol argentino, não evitou a derrota em casa para o Boca. Mas foi aplaudido pelas duas torcidas. Ao todo, computou 206 gols em 324 jogos na elite argentina – o recordista é Arsenio Erico, com 295, número que Virrey, apenas o 11º, tranquilamente superaria não fosse os sete anos na França. Os 206 bastaram para fazer de Bianchi o maior artilheiro velezano. Na Ligue 1, de mesmo modo, ele está só em 9º entre os maiores artilheiros, com 179 gols, mas em 220 jogos. Nenhum dos que estão à sua frente têm média tão alta (0,85 gols por jogo). O 1º foi o “rival” Delio Onnis, com 299 gols (em 449 jogos), números que Carlitos certamente alcançaria se jogasse mais tempo.
Em 2017, um levantamento que reuniu gols das ligas argentina, inglesa, francesa, alemã, italiana e espanhola mostrou que Bianchi era líder com seus 385 gols em jogos de elite (foram 393 considerando os pelo Reims na segundona em 1984). Cristiano Ronaldo era o mais próximo, com 369. Seguem os 366 de Jimmy Greaves, os 365 de Gerd Müller, os 363 de Onnis e os 349 de Messi, com La Pulga e o português enfim ultrapassando em 2018 a contagem do Virrey. Na passagem pelo Reims em 1984 na Ligue 2, foi jogador-treinador, Bianchi virando só treinador depois; quando chegou ao Vélez em 1993, chegou a ouvir risadas dos próprios comandados no Vélez ao involuntariamente misturar o castelhano com a língua francesa à qual já estava tão acostumado. O resto da história todos conhecem e detalhamos nos Especiais abaixo:
Há 20 anos, o Vélez entrava na sua era dourada (Clausura 1993)
Há 20 anos, o Vélez vencia a Libertadores, sobre o São Paulo de Telê (Libertadores 1994)
20 anos do título mundial do Vélez Sarsfield, sobre o Milan (Mundial 1994)
20 anos do único bicampeonato argentino do Vélez (Apertura 1995 e Clausura 1996)
15 anos do início de uma era no Boca: a 1ª taça de Bianchi e Riquelme (Apertura 1998)
Há 15 anos, o Boca reconquistava a América e saía da fila pelo tri da Libertadores (Libertadores 2000)
Melhor time da história do Boca sacramenta lugar na história ao vencer o Real Madrid, há 15 anos (Mundial 2000)
15 anos do bi seguido (e 4º título) do Boca na Libertadores. Graças a Córdoba (Libertadores 2001)
Há dez anos, o Boca de Schelotto e Delgado se vingava do Santos na final da Libertadores rumo ao Penta (Libertadores 2003)
Há 10 anos, o Boca ganhava o último título mundial da Argentina (Mundial 2003)
Dez anos do mais emocionante Boca-River (semifinal da Libertadores 2004)
Clique aqui para acessar as estatísticas dos gols de Bianchi na primeira divisão. Feitas por franceses, aliás.
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