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Um brinde ao Quilmes, que há 40 anos conquistava seu único título na elite profissional

A ressaca não é de um domingo eleitoral. Não em Quilmes, com o perdão do trocadilho. Por lá, ela já dura 40 anos. Naquele 29 de outubro de 1978, o Cervecero tornava-se pela segunda e última vez campeão argentino – e ainda a única, na era profissional. Tudo em pleno ano de título mundial da seleção a um clube que, embora pioneiro no futebol argentino, já tinha porte de nanico. Simbolicamente, a taça veio sob muito papel picado (justamente uma invenção atribuída à torcida quilmeña, em 1961) no Gigante de Arroyito, o estádio em que a Argentina deslanchara na Copa. “Copamos o mundialista” virou um orgulho e trocadilho a mais naquela campanha histórica do Torneio Metropolitano de 1978.

Muito mais que um tradicional time pequeno, o Quilmes é oficialmente o clube hermano de futebol mais antigo ainda em atividade, fundado em 1887 (clique aqui), ainda que na realidade só tenha sido criado algum tempo depois. Como os primeiros clubes argentinos de futebol, ele nasceu na comunidade britânica, inclusive se vestindo nas cores das seleções inglesa e escocesa. Ela dominou o campeonato argentino nas duas primeiras décadas do torneio, vencendo todos entre 1891 e 1912. O primeiro clube “latino” foi justamente o rival do Quilmes, não por acaso chamado Argentino de Quilmes. O último título da era britânica, em 1912, foi justamente do Decano (clique aqui), que só um bom tempo depois seria apelidado de Cervecero, embora a cervejaria homônima do qual é há tempos a principal patrocinadora tenha sido criada um ano depois do clube.

Quando o clube foi campeão em 1978, já estava há muito tempo mais “nacionalizado”. Simbólico para os novos tempos o fato de o maior campeão pelo clube (três vezes) se chame Omar Gómez, vindo dos juvenis e apelidado de El Indio. Já o Torneio Metropolitano de 1978, ainda que tenha sido pausado durante a Copa do Mundo realizada na Argentina naquele ano, não foi dos mais atrativos para o grande público. Na era profissional (desde 1931), é até hoje o de menor média de ingressos vendidos por jogo, 3.883. Por mais que o futebol argentino vivesse uma era de ouro, com craques de seleção mesmo em clubes pequenos, os principais estavam de fora: afinal, a preparação da seleção para a Copa começou em janeiro.

Desde aquele mês, os pré-convocados estiveram concentrados – por exemplo, o último jogo da Daniel Bertoni (autor do último gol da Copa) pelo Independiente foi precisamente na final do Torneio Nacional de 1977, travada já em 25 de janeiro de 1978; o ponta, por sinal revelado no Quilmes como outros campeões mundiais naquele ano, casos do goleiro Ubaldo Fillol e do armador Ricardo Villa, seria um dos que teriam dedicação exclusiva à seleção a partir de então e após a Copa tornou-se jogador do Sevilla. Houve lá algumas exceções, mas de gente incluída de última hora. Foi o caso de Norbeto Alonso, cujos 15 gols pelo River no Metropolitano fizeram com que público, crítica (e, supostamente, os militares) pressionassem Menotti para inclui-lo. Alonso e o citado Ricardo Villa pegaram vagas que poderiam ter sido do adolescente Maradona, que, após figurar nas rodadas iniciais pelo Argentinos Jrs, juntara-se à concentração.

Festejos no primeiro fim de semana de outubro, quando o clube chegou à liderança. E o plantel campeão: Tocalli, Recavarren, Fanesi, Palacios, Milozzi, Gáspari, Zárate, Bourgeois e Gaño; Merlo, Filardo, Bianchini, Andreuchi, Salinas, Milano e Gómez no Gigante de Arroyito

Com seu corte, Maradona ficou liberado para reaparecer no Metropolitano, o que ocorreu já na 15ª rodada. Diego descarregou sua fúria: justamente ali, obteve sua primeira artilharia em campeonatos argentinos, com 21 gols. Não foi isolada: outro a anotar 21 foi Luis Andreuchi – por sua vez, do time campeão. Sim, o Quilmes favoreceu-se de certo modo com os desfalques da concorrência. Os principais clubes da época ficaram longe da taça: o River, quem mais cedeu jogadores à seleção (cinco), ficou em 6º. Os outros foram Independiente (8º) e Huracán (15º), com três cada, assim como o Talleres, que ainda não participava dos Metropolitanos, apenas dos Torneios Nacionais. As três equipes do pódio, por sua vez, não estiveram representadas na Copa: o Unión, 3º colocado, e o vice, ninguém menos que o Boca.

Mas os detratores do título cervecero têm que lidar com outro fato: uma menor parte substancial das rodadas é que ocorreu até o fim da Copa, até a 16ª das 42 rodadas. Outro fato a enaltecer aquele Quilmes é que ele conseguiu reverter uma liderança de 5 pontos que o Boca chegou a ter a nove rodadas do fim, em uma época onde a vitória valia 2 e não 3. Um Boca que, se não esteve na seleção, não foi por falta de poderio: vencera em 1977 pela primeira vez a Libertadores. Em agosto de 1978, venceu a Intercontinental válida por 1977. E um mês depois de ser vice argentino, conseguiria o bi da Libertadores. O foco na competição continental é apontado como o causador da perda do título nacional. Por outro lado, os auriazuis eram líderes argentinos após se garantirem na final da Libertadores de 1978, em classificação obtida nada menos que sobre o River Plate, em 17 de outubro, na última semifinal.

A primeira partida da final continental só seria em 23 de novembro. Cinco dias após a vaga na decisão, o clube ainda soube vencer no campeonato argentino (3-2 no Atlanta), mantendo-se no topo. A perda da dianteira só viria uma rodada depois, a penúltima, em 25 de outubro. Contra o fraco Estudiantes de Buenos Aires (que terminou rebaixado e até hoje não voltou à elite), o campeão do mundo ficou só no 0-0. A liderança era de 1 ponto. O Quilmes, que na mesma rodada venceu por 2-1 o Chacarita, conseguiu assim a ultrapassagem. Mas teria que vencer em Rosario para garantir a taça sem depender do concorrente. Seria contra o Rosario Central, enquanto o Boca pegaria o Newell’s em casa.

Nada muito complicado, segundo Indio Gómez: “nós éramos uma equipe combativa, estávamos certos de que poderíamos lograr algo importante com essa camiseta”. Gómez afirmou também que, para os cerveceros estarem descansados e aclimatados para a partida, realizada em um domingo, viajaram na quinta-feira: “e, na mesma quinta, atrás do nosso ônibus, vão uma quantidade de carros de adultos e crianças que vão a Rosário convencidos de que esse time vai ser campeão”. Foram mais de 20 mil visitantes no Gigante de Arroyito. Ainda segundo Gómez: “o árbitro olhou e murmurou: ‘garoto, com essa gente aí não se pode perder’”. De fato, o atacante chega a dar 90% do crédito do título aos torcedores, pois não foi simples: por duas vezes o Rosario Central esteve à frente do placar, ao passo que o Boca vencia o Newell’s.

O golaço do título, de Jorge Gáspari

El Indio, com lesões e sem ritmo de jogo após voltar de uma suspensão de 5 jogos, iniciou a tarde na reserva. Quem buscou duas vezes o empate foi outro herói, o artilheiro Luis Andreuchi. Ele empatou na artilharia com Maradona com dois gols naquela tarde, ambos de pênalti. E ambos psicologicamente providenciais: o primeiro, aos 36 minutos do segundo tempo, saiu só 5 minutos após o Central ter aberto o placar. Em paralelo, no finzinho da etapa inicial de sua partida, o Boca abria o placar na Bombonera, em jogo que ficaria no 1-0 mesmo sobre o Newell’s.

No segundo tempo, o Central desempatou já aos 2 minutos. Isso fez o título virar boquense por 60 segundos: Andreuchi empatou ainda mais rápido, aos 3 minutos, convertendo pênalti que ele mesmo sofrera de um certo Edgardo Bauza após roubar-lhe a bola. Àquela altura, Quilmes e Boca estavam empatados, o que forçaria-lhes um jogo extra. Não chegava a ser um cenário exatamente favorável à parte mais fraca dos dois, um clube de porte incomparavelmente pior e que só dispôs de dezessete jogadores naquele campeonato inteiro. Aos sete, a tranquilidade aumentava. Não com outro nome importante da campanha, o zagueiro-artilheiro Horacio Milozzi, que marcou dez vezes no torneio. Mas em quem terminou personificando a taça, o volante Jorge Gáspari.

Gáspari, curiosamente, era proveniente de outro Quilmes, o de Mar del Plata, clube mais dedicado ao basquete. A narração do seu gol na voz quase oficial de José María Muñoz entrou para a mitologia quilmeña: “Bianchini evita dois adversários. Perigo. Joga para Gáspari. Perigo. Chuta! Gol!! Golaço!!! Um canhotaço violento a meia altura! Um golaço! Gáspari… Quilmes 3, Rosario Central 2! Quilmes acaricia o título, senhores!” foi o relato enquanto o volante virava base de pirâmide erguida por colegas que nele se empilhavam após aquele verdadeiro golaço à altura da ocasião. Já as palavras descritivas do próprio Gáspari foram as seguintes:

“Bianchini se adiantou pelo meio, eu o acompanhava pela esquerda, como faço sempre. Me passou-a [bola]. Eu dominei a bola e saquei (…). Creio que o goleiro estava muito voltado sobre sua trave direita, por isso não chegou (…). Quando vi que havia sido gol, saí correndo como um louco. Depois, não me lembro de nada mais. Também, se todos os muchachos se atiraram em cima de mim!”. Um ano depois, Gáspari foi convocado pela Argentina para a Copa América. Para ser o último jogador aproveitado pela Albiceleste como cervecero no século; depois dele, só Rodrigo Braña nas eliminatórias à Copa 2014, nome na prática pertencente à “cota Estudiantes” de Alejandro Sabella, que o treinara na equipe de La Plata.

Outro ângulo do gol de Gáspari e a invasão cervecera em Rosario: foi essa torcida que teria criado a chuva de papel picado, nos anos 60

Outro destacado na conquista de quatro décadas atrás foi exatamente o treinador. Era José Yudica, único campeão argentino na função por três clubes não-grandes: ele também venceria o Torneio Nacional de 1985 com o Argentinos Jrs (bem como a Libertadores, pouco depois) e com o Newell’s em 1988, com o qual também seria no mesmo ano finalista da Libertadores. Yudica era o treinador do Quilmes já no ano de 1977, chegando a sair mas voltando pouco antes da pausa mundialista, substituindo a dupla Oscar López e Oscar Cavallero. “Chegou no momento justo, nos deu tranquilidade, confiança, segurança a todos. Ordenou ao time, o fez jogar no limite de suas possibilidades, e logrou encravar-nos a ideia do máximo esforço, o sacrifício e a entrega total”, declarou sobre ele o artilheiro Andreuchi.

Apesar do jogo cheio de reviravoltas, a El Gráfico cornetou que a partida não foi das mais técnicas, com a beleza da partida se restringindo ao espetáculo que a torcida cervecera fazia nas arquibancadas. Ainda assim, a ansiedade, aumentada pelas circunstâncias daquela partida, era tamanha que Yudica chegou a invadir o campo antes do tempo, imaginando que o árbitro finalizara o encontro quando na realidade sinalizava um minuto de acréscimo – “os 60 segundos mais longos do campeonato”, nas palavras da El Gráfico.

A taça de 1978, contudo, não mudou a imagem mais relacionada ao Quilmes, a de um clube “ioiô”. Havia vencido a 2ª divisão só três anos antes. Em 1982, conseguiu em um mesmo ano ser vice (no Torneio Nacional) e voltar a cair (no Torneio Metropolitano). Menos de dez anos depois do seu apogeu, o clube chegou a estar na 3ª divisão. Venceu-a justo no ano do centenário oficial, em 1987 – foram estes os três títulos de Omar Indio Gómez no clube, um ídolo ainda em ascensão em 1978, quando foi reserva na escalação alinhada com Bernabé Palacios; Guillermo Zárate, Horacio Milozzi, Alberto Fanesi, Pedro Gaño; Horacio Bianchini, Gáspari, Horacio Salinas (Heriberto Recavarren); Miguel Filardo (Omar Gómez), Andreuchi e Héctor Milano.

Festejos dos jogadores (Gáspari é o terceiro na imagem esquerda) e do “apressado” técnico Yudica

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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