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40 anos sem “A Maravilha Elástica”: Ángel Bosio, o primeiro goleiro argentino das Copas

Em 1990, a Argentina foi à Copa do Mundo com três goleiros que haviam pertencido ao River dois anos antes: Nery Pumpido (campeão da Copa de 1986), Sergio Goycochea e Ángel Comizzo. Antes as traves eram guarnecidas pelo campeão de 1978, Ubaldo Fillol, que divide com Amadeo Carrizo a preferência de maior da posição no clube, no país e na seleção. A favor de Carrizo, o fato de que seus reservas de River também foram contemplados com vagas em Copas (Rogelio Domínguez em 1962, Hugo Gatti em 1966). Simbiose que teve em Ángel Bosio um primeiro capítulo. A “Maravilha Elástica” faleceu há 40 anos. Hora de relembrar o arqueiro argentino titular da Copa de 1930.

Não que Bosio tenha sido o primeiro goleiro significativo da história do River. Antes do clube ter seu primeiro título na elite nacional, em 1920, Carlos Isola já conseguia representa-lo na seleção, participando até da primeira Copa América (em 1916). Mas não a ponto de virar ídolo na Albiceleste. Bosio foi o primeiro a realmente ficar marcado na seleção, que reconhecia sua qualidade muito antes da contratação feita pelo River, ocorrida somente em 1933. Até lá, Bosio jogava no Talleres de Remedios de Escalada. Ágil, seguro e elegante, o goleiro já era apelidado de Maravilha Elástica quando ainda defendia esse Talleres, sumido da elite desde 1938 embora viesse a futuramente polir Fernando Redondo (nos infantis), Javier Zanetti e Germán Denis.

Seu primeiro clube chamava-se América, chegando ao Talleres ainda juvenil. Não como goleiro, e sim na ponta-direita; em dado momento, o goleiro titular precisou ausentar-se de uma partida-desempate de um torneio zonal. Bosio então foi improvisado e gostou. Mas demorou a se consolidar; chegou a sofrer sete gols em um jogo, quando ainda tinha 15 anos. Esnobado após aquele dia, foi jogar no Progresista em 1923. Cinco partidas bastaram para ser alçado ao time principal, onde ficou um ano e meio. Dali foi ao Argentinos del Sud, destacando-se por defender oito dos doze pênaltis marcados contra a equipe em 1926.

No Talleres de Remedios de Escalada. O clube revelaria Javier Zanetti, mas não joga a elite desde 1938

Em 1927, então, teve seu retorno solicitado pelo Talleres, o clube de seus amores – a ponto de Bosio ser recriminado em Banfield, onde vivia, por preferir uma equipe vizinha (a cidade de Remedios de Escalada, nomeada com o sobrenome da esposa do libertador argentino José de San Martín, fica a dez minutos de carro dali), ao invés do clube local. O Talleres havia entrado na elite em 1926, terminando em 14º de 26 clubes. Mesmo reforçado com o ex-juvenil, despencou para 23º entre 34 times em 1927. Mas o goleiro fazia a sua parte: em 14 de julho daquele ano, estreava pela seleção argentina, em vitória de 1-0 sobre o Uruguai dentro de Montevidéu, pela Copa Newton, troféu bi-nacional.

Foi lembrado para a Copa América realizada ao fim do ano, atuando em uma partida, exatamente a decisiva para o país vencer pela primeira vez fora de casa o torneio: o 5-1 sobre o anfitrião Peru. O título valeu à Albiceleste a vaga nas Olimpíadas de 1928. Reserva de Octavio Díaz nos outros jogos da Copa América, Bosio foi titular em Amsterdã, só se ausentando em uma das cinco partidas da Argentina nos Jogos. Acabou crucificado no gol que deu o título ao rival Uruguai, marcando por Héctor Scarone em chute de longa distância. Bosio preferia ter rancor do outro gol sofrido nos 2-1, atribuindo o tento de Roberto Figueroa a uma jogada em impedimento.

Sobre chutes de longa distância, dizia que eram justamente os mais complicados de se defender. “Os forwards parecem não entender assim, e tratam de se colocar nas barbas do goleiro para então shotear. Na maioria dos casos estou prevenido e a bola tem que ser impulsionada com muita habilidade para tirar vantagem. Por outro lado, os tiros de longe tomam por surpresa e saem colando onde menos se espera”, declarou no jeito rebuscado da época. Contra as críticas maliciosas de que se esquecera de fazer o básico ao tentar uma pose, protestava que “só um louco pode acreditar que diante de um avanço ou uma bola impulsionada até a vala, que vem com todas as chances de franquear a linha do goal, posso pensar em adotar maneiras elegantes”.

Nas Olimpíadas de 1928: técnico Lago Millán, Médici, Bidoglio, Bosio, Monti, Paternoster, Juan Evaristo e massagista Sola; Carricaberry, Tarasconi, Ferreira, Gainzarain e Orsi

Apesar da polêmica, ele seguiu titular na seleção. Em agosto de 1928, esteve em três jogos da Argentina contra o Barcelona, que visitava o país. E não perdeu: 3-1, 0-0 e 1-0. Já no no campeonato de 1928, só finalizado em meados de 1929, o Talleres ficou só em 18º de 36 times. O goleiro explicou que isso “tem uma explicação fácil. Contra os clubes grandes, ante o temor de ser goleados, os rapazes jogavam desde o princípio com empenho”, algo que não ocorreria contra times menores.

De fato, a campanha de 1928 do Talleres rendeu um 3-1 no San Lorenzo, um 1-0 fora de casa sobre o Boca e um 0-0 com o Racing, além de um 2-1, um 0-0 e um 3-1 respectivamente nos clássicos vizinhos contra Lanús, Banfield e Argentino de Banfield, mas também derrotas de 3-0 para o Estudiantil Porteño ou de 1-0 em casa para o decadente San Isidro. Em paralelo, pela seleção Bosio esteve em 1929 na derrota honrosa de 1-0 para o Chelsea; nos triunfos de 1-0 e 4-1 sobre o campeão italiano de 1928, o Torino; no 3-1 e no 0-0 sobre o campeão italiano de 1929, o Bologna; bem como na Copa América sediada na Argentina, a render uma revanche contra o Uruguai, abatido por 2-0 no jogo do título.

O melhor de Bosio viria a seguir. O Talleres ficou em 6º no grupo de 18 times pelo torneio de 1929 e em 5º de 36 times no campeonato de 1930 – quando terminou a cinco pontos do vice-campeão. A Maravilha Elástica seguiu titular na seleção rumo à Copa de 1930, auxiliado inclusive pela não convocação do concorrente Octavio Díaz, envolvido em greve no futebol rosarino (que privou a seleção de outros jogadores de lá). Esteve nas três partidas da primeira fase, nos triunfos de 1-0 sobre a França, 6-3 sobre o México e 3-1 sobre o Chile. Contra os mexicanos, tornou-se o primeiro goleiro a defender um pênalti na história das Copas do Mundo, o cobrado por Manuel Rosas. Nas outras duas partidas, porém, a seleção usou Juan Bottaso. Não guardava mágoa: “é arrojado, seguro em suas intervenções. Sou seu admirador mais franco”.

Essa foto normalmente é atribuída à final de 1930, mas é da Copa América de 1929. Bosio (de amarelo) não jogou a final do Mundial

Para 1931, os principais clubes do país romperam com a associação reconhecida pela FIFA para criar um campeonato enxuto, abertamente profissional, elegendo contra quem valia financeiramente a pena jogar. O Talleres foi um desses dezoito rebeldes. A justificativa de Bosio continuava válida: o clube venceu por 4-0 o San Lorenzo em pleno Gasómetro (e por 3-1 em casa), empatou fora de casa em 1-1 com o River, venceu por 3-0 o Independiente, por 3-2 o rival Lanús… mas não foi além do 15º lugar entre aqueles dezoito.

Apesar da colocação ruim, em janeiro de 1932, mês em que recebeu oferta de 8 mil pesos do Rosario Central, falava em seguir no Talleres “até que me expulsem”. O cenário não mudou em 1932, com seu time ficando em 16º. Na outra ponta da tabela, o River terminou pela primeira vez campeão profissional, no embalo da artilharia de Bernabé Ferreyra. Bernabé foi nada menos que, por vinte anos, a contratação mais cara do futebol mundial, e o último antes de Neymar a custar acima do dobro do recorde anterior. No ano anterior, a contratação de Carlos Peucelle (autor de um dos gols da final da Copa de 1930) já havia feito o River ser apelidado de Millonario.

A sanha do River por reforços midiáticos continuou para 1933. Contratou o capitão da seleção de 1930, Manuel Ferreira. E, a despeito de já contar com um ídolo caseiro em Sebastián Sirni, goleiro titular da conquista de 1932, o clube também foi atrás do goleiro daquela Copa, o qual se destacava pelo 16º colocado. O Millo manteve o ímpeto na maior parte do torneio de 1933, terminando a quatro pontos do campeão San Lorenzo, ainda que tenha chego à última rodada já sem chances. A alegria foi vencer, com um a menos desde o início, o Boca no jogo final. O rival era líder e terminou ultrapassado pelo Sanloré.

Ao fim daquele 1933, Bosio defendeu a Argentina após três anos. Foi no primeiro triunfo da seleção sobre o Uruguai dentro do estádio Centenário, no 1-0 de 14 de dezembro. O resultado não livrava o goleiro de uma pressão interna no River: sua alta contratação o deixou constantemente nervoso nos primeiro jogos. Para piorar, o prata-da-casa Sirni se revelava um talismã sempre que era acionado. Bosio chamava-o de “4S”, em alusão ao nome completo do concorrente: a sigla significaria Sebastián Santos “Sorte” Sirni.

Terceiro agachado na Argentina antes do segundo jogo dela na Copa de 1930, contra o México: o técnico Olázar, Peucelle, Orlandini, Zumelzú, Paternoster, Spadaro e Della Torre (que jogaria no America-RJ!); Varallo, Stábile, Bosio, Demaría e Chividini

Em paralelo, a Argentina enviou à Copa de 1934 somente atletas amadores, pois os principais clubes do país continuavam rompidos, em liga ainda pirata – o jogo de 1933 no Centenário fora na época jogado pelo combinado da liga profissional e depois equiparado a partida de seleção com a reunificação das associações, já em 1935. Este, por sua vez, foi o ano em que ele defendeu a Argentina pelas últimas quatro vezes, já após o insucesso dela na Copa América daquele ano. O campeão foi o Uruguai, que, com Bosio de volta, ficou no 1-1 em Montevidéu pela Copa Héctor Gómez e perdeu de 3-0 em Avellaneda pela Copa Juan Mignaburu.

A Maravilha também esteve no 1-0 e no 1-1 da seleção contra o combinado Espanyol/Atlético de Madrid, em julho de 1935. O River, por sua vez, mantinha a política de buscar estrelas, como José María Minella (nome do estádio de sua Mar del Plata natal na Copa de 1978), mas não manteve liga até 1936, quando reconquistou o campeonato argentino. Bosio esteve na volta olímpica final, mas foi usado em somente seis partidas. Em abril de 1937, seu retorno ao Talleres já era especulado e logo se confirmaria. Foram os dois últimos campeonatos de elite disputados pelos alvirrubros, que são, dos dezoito fundadores do profissionalismo argentino, a equipe que há mais tempo está distante da primeira divisão.

Em 1938, o rebaixamento foi instituído no torneio e o Talleres não sobreviveu. Bosio não pôde fazer muito: passou a maior parte do torneio suspenso pela diretoria após pedir para não jogar na quarta rodada contra o Boca, alegando que o tempo chuvoso lhe complicaria um lesão. Jogou seu irmão Julio Bosio, que levou de 7-1. Ante o temor cada vez maior de rebaixamento, o goleiro foi perdoado na reta final, mas era tarde. Jogou somente sete partidas da campanha e deu por encerrada a carreira. Seguiu trabalhando ocasionalmente no Talleres como treinador. Viveu a tempo de presenciar a Argentina enfim campeã mundial, em junho de 1978, até seu coração de 73 anos parar de bater no dia 31 de agosto daquele ano, na Banfield em que vivia.

Um urra do River: Bernabé Ferreyra, Teófilo Juárez, Carlos Moyano, Carlos Santamaría (encoberto), Bosio, Alberto Cuello, Carlos Peucelle (encoberto) e Aarón Werfifker

https://twitter.com/ClubTalleresOk/status/1035565620866310144

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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