EspeciaisEstudiantesSeleção

Há 35 anos, o primeiro capitão da Argentina em Copas do Mundo passava à imortalidade: Manuel “Nolo” Ferreira, glória do Estudiantes

Em 30 de julho de 1930, Argentina e Uruguai travaram a primeira final das Copas do Mundo. Quase que 53 anos depois, em 29 de julho de 1983, o capitão derrotado sucumbiu a um câncer na distante Barcelona. A doença talvez já não lhe permitisse lucidez para acompanhar a efeméride. Talvez também não possibilitasse saber do campeão da Libertadores de 1983, definido no dia 28 em favor do Grêmio – que chegou lá após superar no dia 8 a “batalha de La Plata” contra o time em que jogava o sujeito. Trata-se de Manuel Ferreira, o Nolo, diminutivo do apelido Manolo. Primeiro jogador do Estudiantes a estampar a capa da revista El Gráfico, Ferreira foi um classudo capitão e meia-esquerda imortal nas canchas argentinas.

Ferreira veio ao mundo em 12 de maio de 1905, bem no interior da província de Buenos Aires, na cidade de Trenque Lauquen. Foi ainda por lá que iniciou-se no futebol, no clube local Argentino. Em 1921, com ainda 16 anos, subiu no time principal do Decano. A equipe alviazul era restrita às competições municipais, uma vez que todas as divisões do campeonato argentino, apesar do nome, se restringiam aos times da Grande Buenos Aires e La Plata. Foi justamente a visita de um clube platense, já em 1924, que mudou o destino de Ferreira. Logo recebeu oferta para ingressar no Estudiantes.

O Pincha foi quinto no campeonato de 1925, mas a dois pontos do terceiro. E coube ao reforço, naquele mesmo ano, se tornar o primeiro jogador do time a ser retratado na capa da revista El Gráfico, historicamente a mais prestigiada do futebol argentino (circulou de 1919 a 2018). Os alvirrubros ficariam abaixo do décimo lugar nos dois torneios seguintes, o que não impediu que aquele cerebral meia-atacante, hábil na conclusão e na armação, estreasse na seleção argentina assim que terminou o impasse vivido entre 1919 e 1926. Entre estes anos, houve um cisma no futebol argentino. A associação reconhecida pela FIFA regulava outro campeonato, cujos times principais eram Boca e Huracán. O Estudiantes estava na outra liga, junto de Independiente, Racing e San Lorenzo.

Os “Profesores”: Lauri, Scopelli, Zozaya, Ferreira e Guaita. E Ferreira em Amsterdã, onde brilhou nas Olimpíadas de 1928, e na velhice

A estreia de Ferreira pela Albiceleste foi nada menos contra o Real Madrid, em 7 de julho de 1927, em 0-0 no estádio do Sportivo Barracas. Na revanche, dia 10, vitória argentina por 3-2, novamente com o Nolo em campo. No dia 14, a estreia “oficial”, isto é, contra outar seleção: 1-0 no Uruguai, dentro de Montevidéu, pelo troféu binacional Copa Newton. Em outubro, competiu na Copa América. Atuou no 7-1 sobre a Bolívia, no 3-2 sobre o Uruguai e no 5-1 sobre o anfitrião Peru, partida em que marcou dois gols em um título histórico para a seleção: foi a primeira Copa América que ela ganhou fora de casa. O troféu também classificou os hermanos pela primeira vez às Olimpíadas, então a principal competição mundial do futebol.

Ferreira brilhou nos Jogos de Amsterdã, marcando seis gols nas cinco partidas em que atuou: dois nos 11-2 sobre os Estados Unidos, um no 6-3 sobre a Bélgica, dois no 6-0 sobre o Egito e um no 1-1 na final contra o Uruguai, empatando aos 5 minutos do segundo tempo. Na época, não havia pênaltis e uma nova final foi marcada. Dessa vez, a Celeste levou a melhor. O artilheiro da competição era argentino, o atacante Domingo Tarasconi. Mas o motor da Albiceleste na Holanda era outro: foi Ferreira o apelidado de Piloto Olímpico. Naquele ano, ele ainda integrou a Argentina em partidas não-oficiais contra Atlético de Madrid (2-0, no velho Metropolitano) e Barcelona (0-0, no antigo estádio do River na Recoleta).

A boa fase prosseguiu no campeonato argentino de 1928, finalizado já em meados do ano seguinte. O Estudiantes ficou em terceiro, a cinco pontos do campeão Huracán de Guillermo Stábile. Em tempos ainda de amadorismo oficial, era possível a um jogador atuar por dois clubes que jogassem por associações distintas. Assim, o Nolo dividia-se entre o Estudiantes no campeonato argentino e o Argentino de Trenque Lauquen nas competições locais. O site dos alviazuis contém esse depoimento de Norberto Lamaison, seu ex-colega de Argentino (cujo estádio viria a se chamar Nolo Ferreira):

No Argentino de Trenque Lauquen e no River, os outros clubes que defendeu no país

“Ferreira vinha jogar em Trenque Lauquen cada vez que o chamávamos para um jogo importante. Atuava no Estudiantes, viajava treze ou catorze horas de trem e no outro dia colocava a camisa do Argentino. Era um fenômeno em todos os sentidos, porque dessa forma ele demonstrava o carinho que tinha por sua cidade, seus conterrâneos e seu clube. Uma vez, trouxe Alejandro Scopelli e então saiu eu da equipe para que jogassem com nossas cores esse outro jogador notável. Ferreira fazia tudo isso como um favor especial ao Argentino e creio que nem os gastos (de passagens) cobrava. Ferreira era uma espécie de Maradona, para que agora tenham uma ideia de como jogava futebol. Quando vinha a Trenque Lauquen, se enchiam as canchas e nesse dia não havia melhor programa para muita gente do que ir ver esse jogador extraordinário que triunfava no futebol grande, que era capitão da seleção argentina e que jogava para o clube de seus amores com uma facilidade e um carinho impressionante”.

Em 1929, a Argentina sediou a Copa América e manteve a escrita de sempre vencê-la quando a sediava (algo só interrompido na edição 1987). Ferreira marcou um dos gols do título, no 2-0 na revanche com os uruguaios pela prata olímpica. Mas foi sua exibição contra o Paraguai, abatido por 4-1 com dois gols do Nolo, que virou conto de Eduardo Galeano no seminal Futebol ao Sol e à Sombra:

“Foi em 1929. A seleção argentina enfrentava o Paraguai. Nolo Ferreira trazia a bola desde longe. Vinha abrindo o caminho, empilhando gente, até que se encontrou de cara contra toda a defesa, que formava um muro. Então Nolo se deteve. E ali, parado, se pôs a passear a bola de um pé ao outro, de um ao outro empinado, sem que ela tocasse o solo. E os adversários balançavam a cabeça de esquerda a direita e de direita a esquerda, todos ao mesmo tempo, hipnotizados, clavada a vista no pêndulo da bola. Durou séculos aquele vaivém, até que o Nolo encontrou a brecha e de imediato disparou: a bola atravessou a muralha e sacudiu a rede. Os agentes da polícia montada desceram dos cavalos para felicita-lo. Na cancha havia 20 mil pessoas, mas todos os argentinos juram que estiveram ali”.

Com a bola nas Olimpíadas de 1928: técnico Lago Millán, Médici, Bidoglio, Bosio, Monti, Paternoster, Juan Evaristo e massagista Sola; Carricaberry, Tarasconi, Ferreira, Gainzarain e Orsi

Foi nessa época que Ferreira assumiu a capitania da seleção, que nas Olimpíadas havia sido do volante Luis Monti. Manteve a braçadeira para a primeira Copa do Mundo, jogando todas as partidas com exceção de uma: o 6-3 sobre o México, ainda na primeira fase. O motivo entrou para o folclore dos tempos românticos do futebol: Ferreira tinha prova da faculdade de direito e não hesitou em tomar um barco de Montevidéu rumo a Buenos Aires para fazê-la; contaria mais tarde que os professores, empolgados com a Copa, lhe facilitaram o exame, perguntando-lhe sobre aduanas, algo que Ferreira havia vivenciado suficientemente na travessia.

Na ausência de Ferreira, jogou pela única vez Atilio Demaría na Copa. Eis uma prova da qualidade do titular: o reserva depois brilharia na Internazionale, sendo um dos maiores artilheiros do clássico com o Milan, e seria campeão pela Itália na Copa seguinte – dividindo com o citado Luis Monti a marca de pertencer a duas seleções diferentes que foram finalistas de Copas (como Monti foi titular nas duas e Demaría reserva, este terminou menos lembrado). A derrota por 4-2 na decisão terminou por ser o capítulo final de Ferreira na Albiceleste. Uma pena: seu auge como jogador estava por vir. Em meio a mais um cisma no futebol argentino.

Em 1930, o Estudiantes chegou ao vice-campeonato. Para 1931, então, o Pincha e outros dos principais clubes romperam com a associação reconhecida pela FIFA para competirem em uma liga mais exclusiva e sustentável financeiramente. Mais do que contra o amadorismo, pois o profissionalismo já era exercido à vista grossa, era um protesto contra a imposição de repartir igualitariamente as receitas de rendas de partidas contra clubes pouco populares. A liga abertamente profissional foi um sucesso de público e mídia, mas enquanto não foi reconhecida pela associação, seus jogadores foram privados de defender a seleção. Somente em 1935 as duas ligas fundiram-se. Por isso, a Argentina foi representada na Copa de 1934 por atletas amadores, aquém da real capacidade que o país tinha.

Como capitão, iniciando a entrada argentina na Copa do Mundo, com direito a paletó: registro da estreia em 1930

Para aquele torneio inaugural, o Estudiantes foi a grande sensação. Passou dos cem gols, acumulando vinte gols a mais que o próprio campeão, o Boca. Fez o artilheiro do campeonato, o centroavante Alberto Zozaya, e o vice-artilheiro, o citado Alejandro Scopelli (reserva na Copa de 1930), que jogava na meia-direita. Ferreira era o meia-esquerda em um quinteto ofensivo completado pelos pontas Miguel Ángel Lauri e Enrique Guaita, que defenderiam tanto a Argentina como seleções europeias: Lauri jogaria pela França como atleta do Sochaux campeão francês pela última vez, ao passo que Guaita foi campeão mundial pela Itália em 1934 e em seguida o primeiro estrangeiro artilheiro da moderna Serie A, pela Roma, onde manteve a parceria com Scopelli.

Aquele quinteto foi apelidado de Los Profesores, conseguindo diversas marcas pioneiras: o primeiro time a marcar 7 gols em um jogo, sobre o Chacarita, na 3ª rodada (Ferreira fez um); o primeiro a marcar 8, no Lanús, na 14ª, com dois do Nolo (a superioridade foi tamanha que o juiz finalizou o jogo aos 23 do segundo tempo: os grenás fizeram dos pinchas os primeiros a vencerem por W.O. também); o primeiro a marcar nove, sobre o Ferro, na 23ª. Todos vencidos sem marcar um único gol. O time teve ainda outras goleadas além das mencionadas: 5-2 fora de casa no Ferro, 5-2 no Independiente (ambos com gols de Ferreira), 4-0 fora de casa no Platense, 5-1 no Argentinos Jrs, 6-1 no Atlanta, 4-2 fora de casa no Quilmes, 6-3 no Racing (com novo gol do capitão), 4-1 no Huracán e no próprio Boca na antepenúltima rodada…

Essa própria partida contra o Boca poderia valer o título: se os auriazuis vencessem, seriam campeões por antecipação. Na rodada seguinte, asseguraram a taça não por terem vencido o Talleres de Escalada, mas porque, surpreendentemente, aquele ataque avassalador perdeu por 2-1 para o lanterna Atlanta a quem já havia goleado. Foi o grande senão daquele Estudiantes, que contrastava as goleadas com algumas derrapadas. No clássico com o Gimnasia, por exemplo, Ferreira até marcou, mas em derrota em casa por 3-2. Também perdeu para o fraco Tigre (antepenúltimo), em casa para o River e foi goleado por 5-1 pelo Chacarita no returno. Acabou seis pontos atrás do Boca e ultrapassado também pelo San Lorenzo, que o venceu na última rodada.

Comemoração do segundo gol argentino na final de 1930. Ferreira é o jogador mais à esquerda. Naquela altura, eles viravam o placar para 2-1. Mas no segundo tempo veio a derrota para 4-2

Em 1932, o Estudiantes estreou com tudo. Aquele ataque avassalador parecia que manteria o ritmo, começando o torneio com uma goleada de 6-1 sobre o Gimnasia, e em tempos em que tal rivalidade era equilibradíssima (o rival, já em janeiro de 1930, havia sido o campeão argentino de 1929, por exemplo). Foi a maior goleada do Clásico Platense no século XX, superado apenas pelos 7-0 dos pincharratas em 2006. Os alvirrubros não viriam a manter o ímpeto, mas só ficaram abaixo precisamente abaixo dos “cinco grandes”: o campeão River, Independiente, Racing, Boca e San Lorenzo ficaram acima dos platenses, nessa ordem.

Aquele River de 1932 foi campeão no profissionalismo no embalo daquela que por vinte anos foi a mais cara contratação do futebol mundial: o atacante Bernabé Ferreyra (sem parentesco com Manuel), contratado pelo dobro do valor do recorde antigo, algo só igualado em 2017 pela compra de Neymar pelo PSG. O clube da Banda Roja já era apelidado de Los Millonarios desde 1931, quando contratara Carlos Peucelle, titular da seleção de 1930, incluindo gol na final. No decorrer do certame de 1933, foi a vez de Manuel Ferreira ser contratado por aquele ascendente River, sinal de prestígio do meia.

O River terminou o torneio de 1933 a quatro pontos do campeão San Lorenzo, mas chegou à última rodada já sem chances. Mas o ímpeto foi mantido pelas circunstâncias: o Millo receberia o velho rival Boca, que seria campeão caso ganhasse. Ferreyra fez dois gols e o “xará” Ferreira, outro, na vitória riverplatense por 3-1, arruinando a festa rival apesar de duas expulsões contra os donos da casa – a primeira delas, de Roberto Basílico, já aos 12 minutos de jogo. A partida já estava em 1-0 e foi três minutos depois da expulsão do colega que o Nolo ampliou para 2-0.

Camisa transpirada por Ferreira no museu do Estudiantes. E familiares homenageados pelo clube em 2013, no Estádio Único de La Plata, projetado pelo filho do craque

Contudo, seu passo no River não se mostrou duradouro. Foram nove gols em novo quarto lugar, em 1934. Em 1935, já estava de volta ao Estudiantes. Estava bichado nos meniscos, ficando de fora da Copa América, prolongando a carreira por apenas mais um ano. Após parar, trabalhou como funcionário público da província de Buenos Aires, como escrivão. Foi ainda docente e jornalista em meios no rádio e meios impressos, inclusive trabalhando para o Clarín e o La Nación nas Copas de 1958 a 1970. Foi rapidamente treinador do Estudiantes em 1955, para ajudar a livra-lo do rebaixamento.

Ferreira pôde ver seu clube angariar expressão internacional no fim dos anos 60, quando o Pincha chegava a ter mais títulos na Libertadores (então três) do que no campeonato argentino (então dois). A distorção foi corrigida no primeiro semestre de 1983: se não pôde acompanhar a reconquista da Libertadores, o Nolo pôde receber em vida uma última homenagem no bicampeonato alvirrubro do Metropolitano de 1982 (encerrado já em 1983) com o Nacional de 1983, levantado em 10 de junho.

Foi visitando o filho em Barcelona que Ferreira, já padecendo de câncer, faleceu há 35 anos, na cidade de Gaudí. O herdeiro de fato exerceu a arquitetura, mas manteve a ligação familiar com o futebol platense: foi um dos projetistas do Estado Único de La Plata.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

11 − quatro =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.