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90 anos da mudança do River à “zona rica”

Imagem do primeiro estádio do River na fina zona norte portenha, no bairro de Palermo – hoje, em área do da Recoleta

Para os mais leigos, o River Plate tem origem elitista, daí sua rivalidade com o Boca Juniors, ligado aos operários. A origem riverplatense e da rivalidade, contudo, não é bem essa. O River nasceu tão humilde e boquense como o rival. Hoje, completam-se 90 anos de sua estreia na fina zona norte de Buenos Aires (ainda não nos arredores de Núñez, mas em Palermo), onde construiu desde então sua nova identidade – o que, de fato, reforçou as rixas com os auriazuis. Ressalte-se: reforçou. Pois elas já existiam.

Na época dessa mudança, Boca e River ainda eram apenas clubes emergentes, de porte médio em Buenos Aires, quiçá no país. Seus dérbis nem chamados de Superclásicos eram, e sim de Clásico Boquense. Eram apenas um entre tantos outros clássicos que marcam a Capital Federal, originados pela vizinhança em um mesmo bairro ou em bairros próximos.

Assim como o rival, que leva no nome o humilde bairro de La Boca, o River também foi fundado nele. O bairro foi nomeado em referência à foz (ou “boca”) do Riachuelo, que ali deságua no Rio da Prata – em inglês, The River Plate, embora a tradução atual mais correta fosse a rima Silver River.

La Boca foi um dos bairros que mais recebeu a imigração italiana na cidade, com grande contingente de genoveses, por trás de ambos os clubes: a palavra “genovês” em lígure, zeneise, originaria o termo xeneize, apelido do Boca Juniors, enquanto as cores da bandeira da capital da Ligúria seriam usadas pelo River: vermelho e branco, parecendo a da Inglaterra.

Time do River que obteve o acesso à elite, em 1908. Apesar dos “engomados”, o time ainda era da humilde La Boca. A imagem ao lado mostra a proximidade dos estádios à época dos rivais nos anos 10. Inaugurada só em 1940, a Bombonera está em Brandsen, rua abaixo do antigo campo do River

A fundação riverplatense, oficialmente, ocorreu em 1901 – há quem aponte como em 1904, oriunda da fusão entre os times de Santa Rosa e La Rosales. Seu primeiro campo, de qualquer forma, foi na parte leste da região boquense de Dársena Sur. Em 1906, o time precisou mudar-se para Avellaneda, cidade vizinha ao bairro (o Boca chegou a ter de fazer o mesmo na época), mais precisamente para Sarandí. Uma temporada depois, o River retornou à Dársena Sur, desta vez do lado oeste.

Ainda como clube de La Boca, a equipe conseguiu chegar à primeira divisão, sendo o primeiro dos chamados “cinco grandes do futebol argentino” (rótulo empregado a ele, Boca, Racing, Independiente, e San Lorenzo a partir dos anos 30) a ingressar na elite, onde estreou em 1909. Na Dársena Sur, o clube era um páreo duro até 1914, quando foi desalojado por ordem dos portos locais e precisou alugar o campo do Ferro Carril Oeste, no bairro central de Caballito.

Em 1915, enfim, pôde-se retornar a La Boca, com a inauguração de um estádio no coração do bairro, circundado pelas ruas Pinzón, Caboto, Aristóbulo del Valle e Pedro de Mendoza. Ainda no bairro original, a equipe foi campeã pela primeira vez da elite, em 1920. Em 1921, foi vice. Em 1922, sob a presidência de José Bacigaluppi, enfim recebeu personalidade jurídica, do próprio presidente da nação. Foi sustentando que “o River não é um clube para um bairro, e sim para uma cidade” que Bacigaluppi defendeu uma nova mudança, em reunião da direção.

“River nasceu em La Boca e não pode ir daí” e “Sair de La Boca? Para onde?” foram algumas reações naturais, aos quais o mandatário respondeu que viu “uns terrenos amplíssimos na (avenida) Alvear com (a rua) Tagle. Se nos apuramos, conversamos com a gente das ferrovias (Ferrocarril Pacífico, o proprietário) e tiramos um bom preço, podemos alugar…”.

Foto de 90 anos atrás, na inauguração do estádio de Palermo, contra o Peñarol, e a fachada

A mudança não foi unânime na direção (embora aprovada diante da imponência de Bagicaluppi), tampouco para a nova vizinhança, que temia a perda de beleza para passeios no local por conta da construção de um estádio. Um projeto assinado por Bernardo Messina, um dos sócios-fundadores do clube, integrante dos primeiros elencos do River e na época exercendo a arquitetura, previa rica ornamentação, com destaque para colunas na entrada. Convenceu assim a municipalidade a autoriza-lo. Porém, a construção não foi tão fiel assim e Messina perderia a licença de sua profissão.

“Sabíamos muito bem que o incluído nos planos estava longe de nossas possibilidades, mas o clube tinha que viver. Devia prosseguir sua marcha até a grandeza. Por isso, fiz o que fiz. Sei que não fiz bem, mas não havia outra alternativa. A burocracia era impossível de superar. Ainda guardo esses planos como testemunho do amor a um clube, porque profissionalmente jamais haveria embarcado na realização de projeto semelhante”, declarou Messina.

Assim, e firmando aluguel de 500 pesos mensais por cinco anos prorrogáveis por outros cinco, o River girou 180º e chegou à zona norte – La Boca fica ao sul. No bairro de Palermo, circundado pela Avenida Alvear (hoje, Avenida del Libertador) e pelas ruas Tagle e Austria, a construção começou em meados de 1922 e ergueu duas tribunas: a “oficial” mirava o norte e continha 38 degraus, e a oposta, a “popular”, continha dez a menos, ambos com 120 metros de largura. Posteriormente, tribunas seriam erguidas também nos lados leste e oeste.

Clube com quem o River já tinha amizade, o Peñarol foi adversário para o amistoso da inauguração daquela que seria a casa riverplatense até 1938, quando o River distanciou-se ainda mais ao norte, fincando-se no bairro de Belgrano, próximo ao de Núñez, erguendo o Monumental (também inaugurado contra o Peñarol). Crescendo em meio à elite portenha, o clube enfim deu um salto nos anos 30, quebrando recordes de transferências de jogadores no nascente profissionalismo. Assim, recebeu o característico apelido de Los Millonarios e, enfim, passou a pilhar títulos em série.

El Gráfico de 1934 reunindo na capa Cándido García e Pedro Calomino, figuras de River e Boca nos anos 10. Pode-se ver o uso de “Clásico Boquense” ao invés de “Superclásico”. Ao lado, imagem da mesma década com os dândis Renato Cesarini e José Manuel Moreno, estrelas do River “millonario”

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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