Naquele 4 de maio de 1935, na rua Saraza entre Lautaro e Pedro Bonorino, em Buenos Aires, nascia o filho do imigrante italiano Horacio com a hispano-argentina Leonilda Elena Dobarro. José Francisco Sanfilippo veio ao mundo em perímetro situado em pleno Bajo Flores, bairro onde futuramente ergueu-se o estádio do San Lorenzo. Próximo do clube desde o início da vida, se converteria no maior artilheiro dele, com 204 gols em 265 jogos, e do maior clássico de bairro no mundo, contra o Huracán (16 gols). Pela Argentina, fez 21 em só 29 jogos. No breve passo pelo Boca, fez os três gols auriazuis naquelas finais da Libertadores contra o Santos de Pelé. El Nene foi, em seu tempo, o maior atacante do país. É o quinto maior artilheiro do Argentinão, com 227 gols, e seria tranquilamente o maior se não somasse sete anos jogando no exterior, entre 1964-65 e 1967-71 – os gols do recordista Arsenio Erico foram 295. No profissionalismo, suas quatro artilharias só foram superadas por Maradona.
Teve a sorte de contar não só com a compreensão mas com o total incentivo paterno na carreira. O pai era fanático pelos cuervos e foi de tanto gritar do outro lado do alambrado instruções a seu nene nos treinos juvenis que o atacante ganhou para sempre esse apelido. Tão marcante quanto isso foi seu temperamento, ainda forte. Não tem modéstia alguma, sempre gabando-se: “Messi faz muitas coisas que eu fazia, posso te dizer que é até melhor que eu” foi umas das frases ditas em longa entrevista publicada mês passado na El Gráfico, principal revista esportiva argentina. Mas Sanfilippo estava longe de ser um fanfarrão, sendo um atleta dos mais aplicados em busca da perfeição.
A entrevista também lhe indagou se atacantes nascem goleadores ou se eles se tornam um: “as duas coisas, por isso digo que todo jogador deve aperfeiçoar-se. (…) Se só ficar com as virtudes e os elogios e não corriges os defeitos, é um problema. (…) Os tinha e corrigi todos. Não pegava bem de canhota nem cabeceava e terminei aprendendo. (…) Fico louco que errem o gol, que chutem desviado. É terrível. Porque se agarra o goleiro, pode ser uma virtude do goleiro, mas chutar para fora não pode ser”. Em outro momento, disse que “como futebolista, fui um fe-nô-me-no. E vou te explicar por quê: não deixei nada liberado ao azar. (…) Também gostava de ir ao gol em alguns treinos para ver do outro lado o que pensava o goleador. (…) Dizia sempre a Antonio Roma e Amadeo Carrizo: ‘nós temos uma grande vantagem sobre vocês, porque quando entro na área sei onde vou chutar e vocês têm que adivinhar’”.
Sanfilippo não brincava nisso: praticava em casa no Sanfigol, traves de dimensões inferiores que construíra para melhorar a pontaria. Era abstêmio do álcool. Algo deu certo: ele se tornou o primeiro profissional a lograr quatro artilharias seguidas no campeonato argentino. Isso ocorreu entre 1958 e 1961 e só Maradona igualou o feito – mas precisando de dois campeonatos anuais, sendo o goleador máximo do Metropolitano e do Nacional em 1979 e em 1980, o que, somado à artilharia de Dieguito no Metropolitano de 1978, fez de El Diez o único a acumular cinco vezes o posto de goleador e assim superar El Nene, contra quem os principais rivais naturalmente sofriam… dos 16 gols que sofreu, o Huracán levou em sete clássicos seguidos e teve seu pior retrospecto exatamente nos anos Sanfilippo: de 20 clássicos nos anos 50, ganhou apenas três e ficou nove anos, de 1953 a 1962, sem ganhar na própria casa. Ironicamente, dois sobrinhos do goleador cresceram torcedores huracanenses. “Mas o sobrenome deles é Gil”, ressaltou.
Mas ele valoriza o rival: “o sexto grande é o Huracán. Os grandes sempre foram seis”, afirmou categórico em 2000 em eleição do Olé para apontar o “sexto grande”, posto que tradicionalmente é do Huracán mas que sua longa decadência vem enfraquecendo entre os mais jovens – detalhamos mais neste outro Especial. O San Lorenzo também tem supremacia nos duelos contra o Boca, algo único na Argentina (é o time que mais o venceu como visitante, por exemplo). E isso foi alcançado justamente na época de Nene, pois até o início dos anos 50 os auriazuis levavam vantagem. Em 1960, após uma década com doze triunfos azulgranas em 20 jogos, o retrospecto já apontava 29 vitórias contra 28 xeneizes. Com 15 gols, Sanfilippo é o maior artilheiro desta outra rivalidade também.
Sanfilippo chegou ao Sanloré justo em 1950 e teve sua primeira chance no time adulto em 1952. Foi em amistoso com o Vélez, batido por 6-0 com cinco do juvenil. Em três outros amistosos, no interior do país, marcou cinco vezes e isso ocasionou a queda do técnico José Pérez: empolgado, ele queria usar o garoto em jogos competitivos do time adulto, mas os dirigentes acharam que Sanfilippo queimaria etapas e se negaram. Pérez então renunciou. Foi só no fim de 1953, na antepenúltima rodada, que a estreia profissional ocorreu, já sob René Pontoni como técnico. Os dois primeiros gols vieram na partida seguinte, um 4-0 no Banfield. Ainda assim, começou 1954 no time B, mas os gols o recolocaram entre os profissionais, reestreando com um dos gols no 4-1 no Chacarita.
A partida seguinte foi a estreia internacional, frente o Rott-Weiss Essen, que seria o campeão alemão na temporada (tinha Helmut Rahn, herói na final da Copa contra a Hungria). Faltando pouco para o fim, Sanfilippo garantiu a vitória por 2-1. Seguro de si, forçou um contrato profissional com o presidente sanlorencista: “senão, tenho que ir trabalhar. E se trabalho não posso fazer os gols que você grita nos domingos”. Mas a campanha no Argentinão não era boa e Pontoni deixou o cargo, despendurando as chuteiras para jogar no quadro reserva. Que, para muitos, com ele (ídolo de infância do Papa Francisco, conforme explicamos aqui) e Sanfilippo, tinha um ataque melhor que o principal: “tinha cinco operações no joelho mas uma qualidade para te deixar a bola morta para que chutes, um craque”.
A afirmação enfim veio em 1955, mesmo tendo de dividir o tempo com o serviço militar obrigatório. Foi o artilheiro do elenco sanlorencista com 15 gols e não saiu mais. No mesmo ano, foi medalha de ouro nos Pan-Americanos. Em 1956, foi o destaque solitário de uma campanha pobre (a 7 pontos dos rebaixados) e estreou pela seleção principal: 2-1, com gol dele, sobre o Brasil, na primeira vitória argentina dentro do Maracanã sobre o rival. Em janeiro de 1957, anotou duas vezes em um 3-1 amistoso no Vasco e semanas depois, como reserva, integrou os Carasucias de Lima, a seleção campeã da Copa América de 1957; na campanha, marcou nos 4-0 sobre o Uruguai e ainda naquele ano fez três em um 8-1 no Gimnasia LP, maior goleada da história do San Lorenzo em jogos oficiais. Em 1958, foi à Copa do Mundo, mas não jogou no desastre da Suécia. Não teria uma boa relação com o técnico Guillermo Stábile e até foto sua com olho roxo circulou. De fato, não voltou a atuar na seleção enquanto Stábile a treinou.
“Tudo era um caos. Para começar, os times que armava Stábile eram de acordo com o que diziam os jornalistas. (…) Nós não conhecíamos nem a cor da camisa dos rivais. Nem se fale de como jogavam. Foi uma grande bagunça, com muitas brigas entre os jogadores e o técnico. Por isso a Tchecoslováquia nos meteu 6 gols”, afirmou naquela entrevista. Apesar do fracasso na Copa, Sanfilippo iniciou em 1958 sua época mais brilhante. Foi artilheiro do Argentinão pela primeira vez, 28 gols em 28 jogos. Em 1959, enfim veio o título, quebrando jejum de treze anos no clube no embalo de seus 31 gols em 30 jogos. O primeiro jogo após a taça foi fora de casa contra o Huracán, que levou de 4-1 com três do carrasco. “Vivi os melhores momentos em 1959, quando ganhamos o campeonato. Depois de cada vitória, uns 200 torcedores me acompanhavam a pé até minha casa: queriam festejar e cuidar do seu goleador”.
No ano seguinte, ele ampliou os gols, 34 em 30 jogos, com três em outro 8-1 sobre platenses, desta vez contra o Estudiantes. O Sanloré só ficou em 6º mas a mágoa maior foi na Libertadores – onde a caminhada começou curiosamente contra o Bahia, onde o carrasco seria ídolo. Após eliminar o elenco tricolor treinado pelo argentino Carlos Volante, o Ciclón já estava na semifinal. Os dirigentes, porém, desprezaram o nascente torneio e venderam o mando de campo no terceiro embate contra o Peñarol: “queria me matar e mata-los! (…) Fez um dirigente chamando Pecoraro, que não entendia nada de futebol. Era violinista!”. Também em 1960, Sanfilippo fez os dois gols nos 2-0 sobre a Espanha de Alfredo Di Stéfano. Em 1961, mesmo faltando em oito rodadas, fez 26 gols em 22 partidas, sua quarta artilharia seguida no Argentinão.
As ausências se deveram às turras com o técnico Juan Carlos Lorenzo. “Antes de um jogo com o Lanús me mandou marcar o Nene Guidi. ‘Bom, lhe digo uma coisa: você está louco. Enquanto todo o Lanús há dois meses não dorme para ver como caralho vão marcar Sanfilippo, vou me preocupar em marcar Guidi?’ No fim é claro que não o marquei, ganhamos de 4-2 e meti três gols”. Lorenzo saiu do San Lorenzo, mas passou a treinar a seleção. Apesar da má relação, não ousou abdicar de Sanfilippo na Copa de 1962. A Argentina voltou a cair na primeira fase, com o Nene marcando o único tento hermano na eliminação frente os ingleses, encerrando uma trajetória de 29 jogos e ótimos 21 gols pela Albiceleste, em números oficiais; considerando jogos contra clubes e combinados, houve mais 12 jogos e 6 gols.
O ano de 1962 também teve outra ruptura, com o clube do coração: os dirigentes lhe haviam prometido 400 mil pesos em caso de uma quinta artilharia seguida. A duas rodadas do fim, El Nene estava na frente, mas foi suspenso delas após criticar abertamente a desorganização do clube, que já levava sete rodadas sem técnico. Sanfilippo acabou ultrapassado por Luis Artime, outro goleador notável, e interpretou que a verdadeira intenção dos dirigentes era se livrarem de cumprir a promessa. Antes, contra o Boca, marcou seu mais célebre gol. Prometera ao goleiro Antonio Roma que lhe vazaria com o calcanhar e assim o fez, magistralmente, lhe encobrindo logo no primeiro minuto. Como um Zlatan Ibrahimović.
O lance virou conto de Eduardo Galeano em Futebol ao Sol e à Sombra, quando Sanfilippo revisitou a área do antigo estádio Gasómetro, hoje uma unidade do hipermercado Carrefour: “‘A bola caiu atrás dos zagueiros centrais, atropelei mas ela foi um pouco para lá, ali onde está o arroz, viu só?’ E ele me mostra a estante de baixo, e repente corre como um coelho, apesar do terno azul e dos sapatos lustrosos. ‘Deixei-a quicar, e PLUM!’ Dispara com a esquerda. Nos viramos, todos, para olhar na direção da caixa, onde há trinta e tantos anos estava o gol, e parece a todos nós que a bola entra por cima, justamente onde estão as pilhas para rádio e as lâminas de barbear. Sanfillippo levanta os braços para festejar. Os fregueses e as caixas quase arrebentam as mãos de tanto aplaudir. Quase comecei a chorar. O Nene Sanfillippo tinha feito de novo aquele gol de 1962 contra o Boca, só para que eu pudesse vê-lo”.
Passou ao próprio Boca, onde também se despediu com confusão: no início de 1964, na Copa Jorge Newbery, socou o assistente técnico Aristóbulo Deambrossi ao notar que não entraria em campo. Foi contratado pelo Nacional de Montevidéu. Mas, apesar de breve, deixou sua marca como auriazul: fez os três gols boquenses nas finais da Libertadores 1963 (da qual foi artilheiro) contra o Santos de Pelé, sempre gabando-se que, individualmente, a grande figura das finais não foi o Rei e sim El Nene. O Boca foi o primeiro argentino a priorizar o torneio continental e acabou ficando fora da disputa do título caseiro. O River estava em jejum havia seis anos e a seca acabaria virando dezoito: lutava pela taça e liderava até a penúltima rodada, quando foi ultrapassado pelo logo campeão Independiente após perder o Superclásico em pleno Monumental. O gol foi de Sanfilippo, cujo ex-clube sofreria sem ele na última rodada a pior derrota de sua história, o 9-1 para o campeão Independiente.
Já no Nacional, o argentino foi bivice da Libertadores, sendo justamente o grande desfalque das finais de 1964 contra o Independiente. O truculento defensor oponente Rubén Navarro afirmou que seria quase impossível vencer o Nacional com Sanfilippo em campo. Se ausentou por lesão que quase amputou-lhe (de verdade) uma perna, em amistoso com o Vasco. Enquanto pôde defender o Nacional, foi muito bem, com 25 gols em 21 jogos; a fratura lhe afastou por um ano. Retomou a carreira no Banfield, já em 1966, ano em que o Bangu, treinado pelo argentino Alfredo González, foi campeão carioca. Aportou em 1968 no Moça Bonita, que ainda tinha um time prestigiado, mas não rendeu.
“Sanfilippo chegou para o Bangu como uma espécie de salvador da pátria, mas infelizmente não foi feliz em suas apresentações e criou-se, então, uma série de problemas. Alguns companheiros, cujo nome não revelarei, ficaram contra o jogador e disso resultou um clima de mal-estar”, disse na época o goleiro Ubirajara. Mas ele seguiu no Brasil: ao contrário de Leandro Romagnoli, o veterano ídolo sanlorencista passou ao Bahia, onde foi campeão em 1970 e 1971 marcando em três Ba-Vis seguidos, embora ressaltasse naquela entrevista mais um outro episódio contra Pelé: “tínhamos que enfrentar o Santos, ao Pelé faltava um gol para chegar no milésimo, e entrou o presidente do nosso clube no vestiário nos dizendo que seria uma honra ficarmos com o time em que Pelé fez o gol mil. Em seguida, entrou Carlos Alberto a dizer-nos que se Pelé metesse o gol, nós sairíamos do campo para deixa-lo festejar com sua gente. Uma loucura. Nem demos bola”.
O argentino, outrora carrasco na Libertadores de 1960, ficou ídolo na Fonte Nova. Mas também sairia de lá sob polêmica: esperava ser o técnico do Tricolor, mas isto não ocorreu, tardando até 2015 para que a diretoria lhe prestasse um tributo, entregando através do argentino Maxi Biancucchi camisas a familiares do antigo ídolo. Regressado à Argentina, El Nene passara a defender o time dos veteranos do San Lorenzo. Aos 37 anos, seguia com bom físico e lhe fizeram a oferta de voltar a defender os profissionais do clube do coração. Dez anos depois da conturbada saída, reestreou em 1972, ano histórico em que o Sanloré tornou-se o primeiro a vencer os dois campeonatos argentinos do ano, Metropolitano (onde fez meio gol por jogo: 8 em 16) e Nacional, estabelecidos em 1967: leia aqui.
O técnico de 1972, aliás, era o mesmo Juan Carlos Lorenzo, já em paz com Sanfilippo. Ele teria parado como campeão, mas o inquieto Nene deixou para trás uma carreira de técnico frustrada (seu Vélez em 1976 foi ameaçado de rebaixamento) e ainda retomou as chuteiras em 1978 na quarta divisão pelo San Miguel, equipe treinada por seu ex-colega Oscar Rossi – autor do primeiro gol do San Lorenzo naquele embate contra o Bahia em 1960. Na Argentina, os mais jovens têm do Nene a imagem de um comentarista algo sensacionalista desde que não poupou Sergio Goycochea de críticas após a derrota de 5-0 da seleção em casa para a Colômbia em 1993. Nada para quem tem peito de elogiar o Huracán, de repetir naquela entrevista que Pelé foi melhor que Maradona, de desdenhar da qualidade técnica do carismático Martín Palermo após este ter-lhe igualado os 227 gols e de tanto deixar claro naquela entrevista: “se fui um fenômeno, por que vou dizer que fui outra coisa?”. Nós não ousamos discordar muito e, obviamente, o escalamos no time azulgrana dos sonhos na ocasião dos 110 anos do clube, em 2018.
(Epílogo: Sanfilippo é arrogante, mas não come vidro. Na mesma entrevista, aceitou que “até que o Messi é melhor do que eu, esse garoto passou de todos os limites”. E confessou usar uma pílula azul havia supostamente dois anos…).
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Ola. A vitória da Argentina sobre o "Brasil" no Maracanã em 1956 na verdade foi sobre a Seleção Carioca de Futebol. Pesquisei em jornal da época. Abraço.