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80 anos de Néstor Combin, o quase mártir do Mundial de Clubes

Néstor Combin, antes de chegar hoje aos 80 anos, já havia sido relembrado de modo especial recentemente: no primeiro semestre de 2019, Olivier Giroud igualou-se a ele e a Just Fontaine como franceses que marcaram dez gols em uma só edição de um torneio europeu. No segundo, fez-se 50 anos do seu protagonismo para o bem e para o mal no primeiro título mundial do Milan. Também um dos primeiros ídolos de tempos modestos do Lyon, esse argentino de nascença tivera peito em trocar a Juventus pelo Torino quando a rivalidade de Turim, longe da discrepância atual entre Juve e Toro, ainda reunia tantos títulos italianos quanto a de Milão – e pôde até ser um raro campeão como bianconero e granata. Seu ímpeto pela Itália já havia lhe rendido o apelido de Il Selvaggio, “O Selvagem”, que soaria como ironia na partida pela qual ficou mais lembrado: aquele vergonhoso Mundial Interclubes de 1969, que não merece resumir a carreira de quem também foi La Foudre, “O Raio”, integrante da França na Copa do Mundo de 1966.

Combin, sobrenome possivelmente proveniente da montanha Grand Combin, situada na parte francófona dos alpes suíços, nasceu como um neto de franceses já com miscigenação lhe dando fenótipo mais indígena do que caucasiano; sua cidade natal de Las Rosas é um povoado de não mais de 15 mil habitantes que, situado no interior da província de Santa Fe, também pariu Leo Ponzio, ícone do River de Gallardo enquanto que o único clube argentino mais sério de Combin foi o Colón – não o Sabalero da capital Santa Fe, e sim um da cidade de San Lorenzo, nas proximidades, e restrito às várzeas municipais. Em 1969, em entrevista à televisão argentina enquanto aguardava sua liberação para voltar à Europa após aquele Mundial Interclubes, um desfigurado Combin admitiu, em preservado sotaque argentino, que simplesmente tivera uma enorme “sorte” (veja a partir dos 1m28 do vídeo abaixo) ao ser descoberto, naquele cenário escondido, por um emissário estrangeiro que em duas semanas providenciou-lhe testes na França.

Com 18 anos, ele partiu para as divisões inferiores do Lyon, sendo integrado ao time principal na temporada 1959-60. O argentino estreou em 31 de janeiro de 1960, logo marcando gol. Eram outros tempos: longe do protagonismo na Ligue 1 dos anos 2000, o Lyon lutou contra a queda, em 16º de vinte times. O futebol parisiense estava no pódio, mas por intermédio do Racing, havendo ainda outra equipe da capital na elite, o Stade Français, dez anos antes do Paris Saint-Germain ser fundado e gradualmente monopolizar os fãs do foot na Cidade Luz (enquanto esses dois clubes passariam a focar-se no rúgbi). Combin, do seu lado, não se aclimatou exatamente de imediato; os homens-gols lioneses ainda foram o camaronês Eugène Njo Léa e Robert Salen, respectivamente com nove e oito buts no campeonato.

A luta contra o descenso ainda foi a tônica na temporada 1960-61, em 15º. Mas Combin, acompanhado agora de um compatriota em Ángel Rambert (ex-Lanús e pai de Sebastián Rambert, herói do Independiente duas vezes campeão em 1994), já registrava quinze gols em um bom tridente com Njo Léa (quatorze) e o próprio Rambert (dez) – incluindo um empate no penúltimo minuto no clássico dos Rhone-Alpes, com o Saint-Étienne. A temporada marcou ainda a maturidade de Jean Djorkaeff (por sua vez pai de Youri, campeão com a França em 1998) e a estreia de outro ídolo em Gerland, o adolescente Fleury Di Nallo, que substituiria Njo Léa no tridente ofensivo com os argentinos: na temporada 1961-62, o novato marcou dezoito vezes, com treze gols para Combin e dez para Rambert. Ainda não foi o bastante para uma nova 16ª colocação, mas estava germinado o elenco lembrado com carinho pelas duas temporadas seguintes.

O 5º lugar na temporada 1962-63 foi a mais alta colocação do ainda modesto Lyon até então. Novamente artilheiro do elenco, Combin contribuiu com dezesseis gols, Di Nallo com dez e outros cinco foram feitos por Rambert, que em abril de 1962 estreara pela própria seleção francesa. Combin ainda esperaria mais tempo para virar um Bleu; sua estreia tardaria por fatores mais legais do que técnicos: embora já houvesse tirado a cidadania (a ponto de vir prestando o serviço militar no exército francês), reforçada ao casar-se com uma greco-francesa, ela de nada valia para as regras que a FIFA delimitou em meio à Copa do Mundo no Chile, em junho. Ali a entidade barrou que quem já defendesse um país trocasse de seleção, encerrando assim ao fim daquela Copa as carreiras de Di Stéfano e Puskás pelo escrete espanhol e as dos argentinos Omar Sívori e Humberto Maschio pela Azzurra. Em tempos em que se proibia convocações de quem jogasse no exterior, Rambert jamais havia defendido a Argentina, mas perdeu continuidade com a França. Emigrado ainda adolescente, Combín estivera ainda mais distante de ter chances na Albiceleste, mas a FIFA só permitiria naturalizados que fossem filhos de cidadãos do país adotado.

Exatamente em 1963, as forças armadas argentinas enviaram-lhe uma carta, que o jogador não se atentou em responder – pois um tratado entre os dois países vigente desde 1927 isentava do serviço (obrigatório, na época) os cidadãos de um que o houvessem cumprido no outro. Sem ter prestado a informação pertinente, Combin, sem saber, foi enquadrado em crime de deserção a partir de uma decisão da seção rosarina da justiça federal argentina. Ele focava-se, e muito, era no Lyon: além da boa colocação no campeonato de 1962-63, o clube ainda foi vice da Copa da França. Como o Monaco venceu os dois torneios, abriu-se uma vaga para os lioneses disputarem a Recopa Europeia (torneio que, até ser extinto em 1999, reunia os vencedores das Copas nacionais) na temporada seguinte, a marcar a estreia do clube em um torneio continental.

Ao centro, com a bola do primeiro título relevante do Lyon. O último agachado é o também argentino Rambert

Mesmo precisando pela primeira vez conciliar frentes domésticas com europeias, o Lyon faria uma grande temporada em 1963-64. A 5ª colocação na edição anterior da elite francesa, que já era a melhor do clube, evoluiu para uma 4ª no rastro de 23 gols de Combin. E o time não fez feio na Recopa, chegando às semifinais com o argentino registrando seus recordistas dez gols em apenas sete jogos – incluindo ambos em 2-0 sobre o Hamburgo de Uwe Seeler e outro em Lisboa (encobrindo de fora da área o rebote do goleiro) contra o futuro campeão Sporting. Fase coroada com um amistoso contra o poderoso Real Madrid, surrado por 4-0 ao fim do primeiro tempo de um jogo encerrado em 5-1 com dois gols do argentino.

Essas notícias chegavam ao Brasil também, onde Jornal dos Sports traçou ainda em 1964 um amplo perfil da revelação, em nota de título “sucessor de Fontaine é argentino, craque e goleador do Lyon”: “Néstor Combin, um argentino nascido em Las Rosas, a 29 de dezembro de 1940, que ingressou no futebol francês como um anônimo em busca de sorte, hoje é manchete nos jornais, uma esperança da França para a Taça do Mundo do ano de 1966, o verdadeiro sucessor de Just Fontaine; embora, para a FIFA, ele seja um estrangeiro, impossibilitado de jogar pela seleção nacional do país, em cujo exército está servindo. Toda a imprensa gaulesa é favorável à sua incorporação ao selecionado, porque é, sem dúvida alguma, o melhor atacante dos gramados da França. Fala-se dele como um francês autêntico, embora nascido na Argentina, e dele se falará mais ainda no Congresso de Tóquio, quando os franceses pedirão à FIFA uma revisão da lei dos oriundos, baseados em que os ascendentes de Combin são franceses, sua carreira de jogador é autenticamente francesa e ele nunca foi internacional em qualquer parte do mundo”.

O perfil seguia: “na França, que luta por sua naturalização, tornou-se um ídolo em pouco tempo. Saiu do completo anonimato para as páginas dos diários. (…) Néstor Combin está no futebol francês há cinco anos e pode ser considerado o mais peregrino dos jogadores argentinos. Desconhecido como era, passou a ser o melhor atacante da França e, em cada domingo, anota um par de gols, justificando sua eficiência que coloca o Lyon no segundo posto da classificação do Campeonato e nas quartas-de-final da Taça da França. É com justas razões que a imprensa reclama sua presença na seleção nacional, porque, até agora, desde que Fontaine deixou de ser o maestro e goleador dos campos gauleses, nenhum outro jogador conseguiu fazer esquecê-lo. Nenhum conseguir impor-se (…). Todos gostariam de vê-lo com a camisa azul do selecionado, marcando os gols que marca no Lyon e na seleção militar”. E então detalhava-se os obstáculos:

No destaque, Combin (com a bola) e Rambert juntos também na seleção francesa

“Mas Combin, que é francês para os franceses, é argentino para a FIFA e, nessas circunstâncias, está impedido de atuar pela equipe de França. Contra todas as esperanças dos torcedores, estão as leis da FIFA, que provocam irritação, que fazem os franceses pensar numa reformulação da lei dos oriundos (…). A FIFA se ampara nas decisões do Congresso, aprovadas durante a Taça do Mundo de 1962, no Chile. Segundo aquelas decisões, ‘para ser incorporado à seleção do país em que vive, o jogador deve ter nascido nesse país ou pelo menos os seus ascendentes imediatos’. Esse não é o caso de Combin, pois somente seus avós nasceram na França. (…) Em Tóquio, a Federação Francesa alegará que os antepassados de Combin são franceses e que as normas devem ser flexíveis (…). Combin não é só goleador, pois dispõe de outros recursos: é da escola platina, tem o ímpeto do jogador latino, concepções excelentes e marca gols e ajuda a marca-los. É ainda um jogador que apoia os companheiros, principalmente Ángel Rambert, outro franco-argentino que se destaca no futebol da França. Com 1,80m, 76 Kg, é o jogador mais completo e mais caro no mercado francês”.

A diplomacia deu certo. Em 8 de abril de 1964, Combin já pôde estrear por uma seleção sub-23 da França – de cara, marcou os dois gols bleus em clássico com a Inglaterra em Ruão. Era ano de Eurocopa e as eliminatórias, todas em mata-mata, ainda não haviam acabado. Os gauleses já haviam deixado para trás a própria Inglaterra e também a Bulgária, faltando passar pela ainda forte Hungria para classificarem-se ao torneio. O argentino fez sua estreia pela seleção adulta ainda naquele abril, no jogo de ida contra os húngaros, no dia 25. Não foi feliz: mesmo em Paris, os magiares ganharam de 3-1. Entre um jogo e outro, ele pôde se consagrar na final da Copa da França, em 10 de maio, contra o Bordeaux. A exibição do argentino também repercutiu no Jornal dos Sports: “foi sua grande figura e herói da partida. (…) Abriu a contagem aos 11 minutos, após receber um centro, controlar a bola no ar, deslocar dois defensores e finalizar. Aos 28 minutos, depois de excelente ataque, o argentino concluiu ostensivamente, com um chute à meia-altura”.

Os 2-0 permitiram que o presidente Charles de Gaulle entregasse nas tribunas do estádio de Colombes o primeiro troféu expressivo da história do Lyon. Em 23 de maio, ele, também beneficiado pelo relaxamento da FIFA, fez sua segunda partida pela França, atuando ao lado de Combin na visita aos húngaros. E Combin até ensaiou reação ao abrir logo aos 2 minutos o placar em Budapeste, mas os donos da casa viraram para 2-1 e se classificaram à Euro. O torneio que o atacante pôde disputar foi o mundial de militares, na Turquia. As forças francesas seriam a equipe campeã e ainda em Istambul foi acertada a venda da joia à Juventus, segundo outros registros do Jornal dos Sports, que detalhou ainda os valores: 140 mil dólares, apenas 12 mil dólares abaixo da contratação do astro espanhol Luis Suárez pela Internazionale em 1961 (então um recorde mundial, a quebrar os 93 mil que a mesma Juve investira pelo citado Sívori, em 1957).

Combin é um raríssimo campeão pelos rivais Juventus (na foto, a colônia hispânica com Sívori e Del Sol) e Torino: venceu por ambos a Copa da Itália, conquista simbolizada por esse círculo tricolor na camisa grená de 1968-69

O negócio também envolveu ainda o repasse da renda de quatro amistosos, repercutindo no Brasil também porque os bianconeri precisaram desfazer-se do recém-contratado Nenê para saldar a transferência; o brasileiro seria exilado no Cagliari e até saberia ficar grato a médio prazo, integrando o elenco campeão italiano de 1970 pelo time da Sardenha. Em Turim, a barreira do idioma seria mitigada pela presença de Sívori, do espanhol Luis del Sol e do treinador, o paraguaio Heriberto Herrera. Mas tamanha aposta em Combin não se cumpriu. Seu primeiro gol tardou até a 7ª rodada, quando fez o único do duelo fora de casa com o Genoa. Podia tanto vazar também o Milan, em um 2-2 na 12ª rodada, como enfrentar relativa seca com as redes. Mas parte de seus modestos sete gols na Serie A de 1964-65 (a Vecchia Signora ficou apenas em 5º) também se deveu a meses parados por uma fratura, em derrota de 1-0 para o Cagliari em 31 de janeiro. A forma como o argentino lidou com o lance o redimiu a ponto de receber uma medalha de mérito do clube no mês seguinte. E merecer até crônica de Nelson Rodrigues (“Os Heróis Não Morreram”) no Jornal dos Sports:

“Amigos, nós sabemos que a vida está cheia de pulhas. (…) No futebol, também é assim. (…) Eu sei que, para muitos, o futebol profissional matou o sentimento, varreu o amor. Os saudosistas alegam que a abnegação, a coragem, o heroísmo e o sacrifício eram próprios e inalienáveis do futebol amador. (…) Mas pergunto – o futebol modernal não terá também os seus heróis? Estou vendo agora, na primeira página de O Globo, uma radiofoto altamente ilustrativa. Trata-se do centroavante argentino Néstor Combin, que, em jogo recente, fraturou a perna. Como é óbvio, ele deveria ter saído de campo, imediatamente. Mas o seu desfalque poderia torcer a sorte da partida. Então, Néstor não teve dúvidas. Com o osso partido, continuou jogando até o último segundo. Deu botinadas, levou botinadas. Era tal seu élan [‘impulso’, em francês], tão grande a sua disposição, que ninguém percebeu nada. Nunca ele correra tanto. Dir-se-ia que a dor – espantosa dor – servia de inexcedível afrodisíaco para o craque. Quando soou o apito final, viu-se o seguinte: – Néstor virou na grama como um cântaro entornado. Aí é que perceberam tudo. Quase morto saiu de maca. Então pergunto: – pode-se desejar um sacrifício mais absoluto? Pode-se desejar um ato de fidelidade mais perfeito? Amigos, o futebol profissional ainda tem as suas figuras homéricas”.

Combin conseguiu recuperar-se a tempo de pegar a reta final da temporada (registrou gols em vitórias sobre Lazio e Vicenza pela liga) a ainda ser o vice-artilheiro do elenco que pôde vencer ao menos a Copa da Itália – embora sem a presença dele na decisão com a rival Inter. Para suprir o desfalque do argentino, o clube providenciara no decorrer daquela temporada a chegada do brasileiro Chinesinho, que agradou. Em tempos pré Lei Bosman e de passaporte comunitário, a cidadania francesa não impedia que Combin ocupasse vaga de estrangeiro, limitada a dois por partida. Segundo os especialistas da Calciopédia, o técnico Herrera não se convenceu da plena recuperação do francês, negociado então com o Varese. A fratura também tirou-o da seleção francesa por quase um ano, entre sua terceira partida pelos Bleus (2-0 em amistoso contra Luxemburgo em 4 de outubro de 1964) e a seguinte, uma visita à Noruega em 15 de setembro de 1965 – já pelo segundo turno das eliminatórias à Copa do Mundo. Foi dele o único gol em Oslo.

Aguardado como sucessor de Fontaine, Combin foi atrapalhado pela FIFA. Mas quando pôde responder em uma Copa, fracassou

Dez dias antes, ele parecia estrear bem no Varese, com gol marcado ainda que em derrota de 5-2 para uma Inter bicampeã europeia. Mas ficou naquilo, praticamente. Combin simplesmente não marcava mais e já em outubro a irritação do novo clube (estreante na elite) com o reforço se manifestava: o jornal paulistano A Tribuna ao menos noticiou que sua devolução à Juventus era cogitada enquanto que na França, onde o renome de Combin seguia intacto (ele seguiu nos Bleus para um jogo em outubro e outro em novembro nas eliminatórias: 1-0 na Iugoslávia e 4-1, com gol dele, no jogo da classificação contra Luxemburgo, respectivamente), Bordeaux e Olympique de Marselha o sondavam. Com efeito, ele só marcou outro gol na Serie A de 1965-66, no 2-2 com o Brescia já em 9 de janeiro. O Correio da Manhã informou até de uma suspensão por tempo indeterminado que a equipe, então na lanterna, aplicou-lhe por rendimento insatisfatório, encerrada apenas em março. O time terminou mesmo em último e rebaixado. 

A classificação francesa criou uma primeira possibilidade concreta de enfrentamento oficial contra a terra natal. E ele foi indagado na Itália como se portaria nessa hipótese. É o que repercutiu no diário carioca O Jornal, que ainda na véspera do natal de 1965 reproduziu a seguinte resposta: “no futebol não jogam nações, mas associações desportivas. Se a França me designar para enfrentar a Argentina, jogarei tranquilamente. E com limpo espírito desportivo, também tratarei de jogar tudo o que possa contra os argentinos, que não são meus inimigos, mas meus adversários ocasionais desse dia. Proceder de outra forma, não aceitando a indicação ou jogando mal de propósito, é que seria indigno”. Mas a má fase no Varese o tirou do posto de intocável; Combin não foi usado em nenhum dos três amistosos oficiais pré-Copa, ainda que terminasse confirmado entre os convocados. Ironicamente, ele é até hoje o único convocado a uma Copa do Mundo como jogador do Varese. O atacante justificou-se: “é um time pequeno que me via como o salvador, mas era inimaginável fazer algo com este nível”.

Uma lesão impediu que Rambert fosse junto ao Mundial, mas a FIFA terminou autorizando que a França reconvocasse outro argentino, Héctor de Bourgoing, ausente desde maio de 1962 em virtude daquelas regras estabelecidas no Chile, pois De Bourgoing havia defendido previamente a Argentina. A contradição em manter ao mesmo tempo essa proibição deflagrada ao fim da Copa de 1962 aos hermanos Sívori e Humberto Maschio exatamente por já terem jogado antes pela Albiceleste (foram colegas do próprio De Bourgoing na Copa América de 1957) não deixou de ser notada pelo Jornal dos Sports, bem como a revolta italiana. Já no Reino Unido, Combin marcou em julho três gols em um jogo-treino contra o Vale do Leitham e outros dois em 8-1 no combinado escocês de Galashiels. Assim, foi usado como titular na estreia, contra o México, visto como a seleção mais fraca de uma dura chave com a rival e anfitriã Inglaterra e o Uruguai. Combin não foi usado nesses jogos e praticamente se despediu dos Bleus, eliminados na lanterna do grupo.

A poética foto com Gigi Meroni no último jogo da vida do amigo: celebravam uma tripleta do argentino, à direita em uma homenagem em Turim no início da década passada

Ainda assim, havia quem continuasse a apostar nele. Foi o caso do Torino, que ainda falava grosso, reunindo seis títulos italianos contra doze da Juventus, dez da Inter e oito do Milan. Não foi um sucesso instantâneo, inchando seus números na Serie A de 1966-67 com uma tripleta já na penúltima rodada, contra o Brescia; foram só sete gols e um 7º lugar enquanto a Juventus era campeã. Mas aquele jogo acabaria sendo um marco; agora entrosado com a promessa local Gigi Meroni, visto como um George Best italiano, Combin conseguiu nova tripleta já na 4ª rodada da temporada de 1967-68, em 4-2 na Sampdoria. Mas aquele foi também o último jogo da promissora dupla: uma súbita tragédia matou Meroni naquele mesmo 15 de outubro, quando o craque foi atropelado. A partida seguinte seria justamente o clássico de Turim. Em um Derby della Mole dos mais recordados, o argentino sobressaiu-se com nova tripleta seguida, em 4-0 dos grenás (!) sobre a Juventus (!!) como visitante (!!!), desempenho dedicado de imediato à memória do amigo.

Naquela temporada, Combin terminaria como vice-artilheiro da Serie A, vazando no caminho a dupla Milan campeão e Inter (ambos em derrotas de 3-2), o vice-campeão Napoli de Sívori (2-2 fora de casa), Roma (2-0 fora de casa). Se o Torino outra vez estacionou em 7º, pôde sorrir na Copa da Itália, especialmente por ter sido o primeiro troféu grená desde a tragédia de Superga. E em edição sem o asterisco do imponderável, pois foi travada do início ao fim em fases de grupos até restar um quadrangular final com Milan, Inter e um Bologna forte na década. Título encaminhado com gols do argentino nas duas rodadas finais, no 4-0 sobre o Bologna e no 2-0 em Milão sobre a Inter. A recuperação do atacante – foi no Torino que recebeu aquele apelido de Il Selvaggio – o fez voltar brevemente à seleção francesa, novamente a um mata-mata de classificar-se à Eurocopa. O 1-1 em Marselha contra a Iugoslávia em 6 de abril foi a única partida que ele terminou fazendo pelos Bleus após a Copa de 1966; os balcânicos terminaram classificados na volta.

Na temporada 1968-69, o Toro novamente chegou ao quadrangular final da Copa da Itália, pôde avançar até as quartas-de-final da Recopa Europeia, caindo para o futuro campeão Slovan Bratislava, e subiu na Serie A para um 6º lugar. Artilheiro do elenco grená, incluindo outro gol no dérbi com a Juventus, o argentino interessou ao campeão da Liga dos Campeões. E a transferência ao Milan foi tão sonora que rendeu propostas no congresso italiano para criação de uma tributação a ser revertida para nações em desenvolvimento. Na pré-temporada, destacou-se em um quadrangular amistoso em Nova York, a envolver a Internazionale, o Sparta Praga e o Panathinaikos. O reforço foi eleito o craque do minitorneio, destacou o Jornal dos Sports. A temporada em setembro e já em outubro foi preciso dividir a atenção com o Mundial Interclubes – que muito interessava ao Milan conquistar, após a tumultuada perda da primeira tentativa, em 1963, vendo na sequência a vizinha Inter faturar um bicampeonato sobre o Independiente.

No Milan, o sorriso mais lembrado foi o com nariz e mandíbula desfigurados pela taça do primeiro Mundial do clube

Combin fechou o placar no 3-0 em San Siro sobre o Estudiantes, encaminhando a conquista inédita: era a primeira edição em que o saldo de gols pesaria como critério de desempate, abolindo a regra do jogo-extra. O oponente Raúl Madero, depois médico da Argentina na Copa de 1986, tentaria culpa-lo pelo que viria depois, destacando que Combin distribuiu provocações referentes a seu salário. O resto é a história conhecida: na Bombonera, os italianos abriram o placar e, ainda jogando bola, o Estudiantes arrancou uma virada-relâmpago no fim do primeiro tempo. Mas, conforme o segundo tempo passava sem que o placar se alterasse, três alvirrubros em especial não seguraram o inconformismo: o goleiro Alberto Poletti, o zagueiro Ramón Aguirre Suárez e o volante Eduardo Luján Manera usaram e abusaram da caixa de ferramentas preferencialmente contra o francês, desfigurado ao fim de um jogo rotulado na época pela própria revista argentina El Gráfico como “a página mais negra do futebol argentino“.

De nada adiantou que no próprio Estudiantes o restante procurasse conter os colegas: a imagem de Combin empapado em sangue rodou tanto que tornou até lugar comum atribuir o título do adversário sobre o Manchester United em 1968 como fruto de hostilidades que na realidade foram protagonizadas pelos próprios britânicos. E o absurdo contra Combin não se resumiu ao jogo. Como se não bastasse a selvageria sofrida, ainda terminou preso por deserção militar na saída de campo – segundo o Diário da Noite, ao menos na enfermaria militar ele pôde ser bem tratado “por parte dos oficiais, suboficiais e soldados que o atenderam”. A mídia argentina, sem pachequismo, tampouco perdoou a trapalhada, diante daquele tratado entre os dois países: não deixou de destacar que, ainda que a prisão fosse legítima, o fato de não ter sido aplicada assim que o jogador desembarcou em Buenos Aires dava mais ares de ter sido mera represália de algum militar de baixa patente revoltado com a perda do título.

O ditador Juan Carlos Onganía tratou de ordenar diretamente a liberação do jogador, providenciada às 11 da manhã, e determinar em contrapartida a prisão por dois meses de Aguirre Suárez, Luján Manera e Poletti – o Jornal do Brasil, curiosamente, viu um exagero nessa outra medida e a especulou com finalidade de manter as chances da Argentina em sediar a Copa de 1978, estimando que as chances agora eram improváveis. A escala do Milan no aeroporto carioca do Galeão reforçou a repercussão na imprensa brasileira; o Jornal do Brasil até publicou o desabafo do craque, de que “minha mãe ainda vive na Argentina. Casei-me com uma francesa, tenho dois filhos franceses, mas assim que deixar o futebol penso em voltar à Argentina, radicar-me aqui, talvez em Rosario”. A matriarca havia mesmo feito o trajeto rodoviário de 350 Km de Las Rosas a Buenos Aires para assistir impotente os golpes no atacante – que, naquele mesmo vídeo inserido no início, frisara um “de todas maneiras, sigo sendo argentino”. Ainda conseguia ter bom humor, no mesmo vídeo, arrancando um riso de entrevistadora ao descrever que seus dois filhos são belos e “não como eu”.

O canto do cisne de Combin: artilheiro no Red Star de Paris, mesmo com a barriguinha sob marcação de Marius Trésor nesse duelo com o Olympique de Marselha

Procurado em 2005 pelo diário espanhol As, o descontrolado goleiro Poletti (que além da prisão chegou a pegar um gancho perpétuo do futebol, embora depois tenha recebido perdão da AFA a retomado a carreira no Huracán) alegou ter depois procurado telefonar ao atacante: “falamos de futebol, sem rancores”. Fato é que o franco-argentino foi visto como herói no desembarque em Milão e já em novembro ele até marcou o único gol do jogo de ida contra o Feyenoord pelas oitavas-de-final da Liga dos Campeões. Mas os holandeses reverteram com um 2-0 em casa na caminhada rumo ao título do time de Roterdã – que, também tendo problemas contra o jogo duro do Estudiantes no Mundial de 1970 (o zagueiro Joop van Daele, famoso por usar óculos, os teve quebrados), levou a muitos europeus a abrirem de vez mão da visita ao Rio da Prata no decorrer da nova década: o Nacional uruguaio enfrentou o vice europeu em 1971, assim como o Independiente em 1973 e em 1974 e o Boca em 1977. Sobrou até para o Olimpia, em 1979.

O Milan, também já eliminado na Copa da Itália, não conseguiu animar-se a fazer páreo na corrida contra o surpreendente Cagliari na Serie A: os rossoneri ficaram em 4º, com Combin marcando somente dois gols em todo o primeiro semestre de 1970. A paciência dos tifosi com seu quase-mártir gradualmente foi se esgotando naquele ano. Combin chegou mesmo a ser barganhado com a Lazio um troca-troca por Giorgio Chinaglia, em operação que envolveria ainda o repasse de 600 milhões de liras aos celestes, em notícia dada pelo Jornal do Brasil. O negócio não foi fechado. Ele até somou dez gols entre a Serie A e a Copa da Itália, mas o Milan amargou vice nos dois torneios e devolveu Combin ao futebol francês. Em entrevista à imprensa local, não escondeu que seu desejo era ir ao Olympique de Marselha e sua estadia no Metz foi vista como a de um bon vivant já despreocupado com a forma física ideal. Mesmo assim, ele ainda pôde garantir mais de meio gol por jogo em duas temporadas exitosas dos lorenenses contra o rebaixamento.

No Francesão de 1971-72 (16 gols em 27 jogos do argentino), os últimos salvos da degola foram a dupla parisiense PSG e Red Star, ambos três pontos abaixo do Metz. Na de 1972-73 (18 jogos em 34 jogos), o Red Star caiu. Mas sondou o antigo astro, que relembrou ao site do clube de Jules Rimet como foi: “eu sabia que o técnico deles, José Farías, era argentino [ex-Boca e Huracán, Farías radicou-se na capital francesa como ex-jogador do Racing parisiense e do próprio Red Star], assim como eu. Conversamos e ele me perguntou se eu planejava pôr um termo à minha carreira. Eu me aproximava dos 33 anos, lhe respondi que sim. Mas ele insistiu em me ter em seu efetivo. Eu finalmente aceitei”. E Combin fez sucesso no Stade Bauer: com 27 gols, foi o artilheiro da segundona francesa de 1973-74, devolvendo imediatamente os alviverdes à elite – pela última vez até hoje. Curiosamente, o acesso foi junto ao do ainda humilde PSG.

A temporada 1974-75 foi a última do time do subúrbio de Saint-Ouen na elite, a despeito do esforço do veterano, ainda capaz de deixar 15 gols em 31 jogos. Combin ainda estendeu a carreira por Hyères e Variètes em jogos das divisões regionais de acesso, radicando-se no sul francês, na região de Hérault.

 

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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