Ame-o ou deixe-o, Carlos Salvador Bilardo mudou o futebol argentino e conseguiu algo só alcançado pelo bicampeão Vittorio Pozzo e por Franz Beckenbauer: chegar a duas finais seguidas de Copa do Mundo, embora, por ironia, não tenha fotos com o troféu. Vale resgatar um pouco da trajetória de El Narigón hoje, quando completa 80 anos (ainda que seja comum a divulgação de 1938 como seu ano de nascimento, não 1939) esse obsessivo resultadista, tamanho que declarou preferir o triunfo sobre a Itália em 1990 à vitória político-esportiva sobre a Inglaterra em 1986 pois contra a Azzurra o resultado valeu vaga na final… completa 80 anos – ainda que haja meios que divulguem que o ex-volante e ex-treinador tenha na realidade nascido em 1938 e não em 1939.
Na infância um torcedor do San Lorenzo, tendo como ídolo máximo o mesmo jogador que era o preferido do futuro Papa Francisco (René Pontoni, que passaria pela Portuguesa), Bilardo ingressou no time aos cinco anos. chegando a ser dos mesmos elencos juvenis do maior artilheiro do clube, José Sanfilippo – um dos trocentos inimigos que faria na própria Argentina (“fui 70 mil vezes melhor jogador que você, Bilardo, que foi reserva do reserva”, extravasaria o ex-atacante já em 1993, quando sentiu-se ofendido pelo Narigón quando este o diminuiu para amparar o goleiro Sergio Goycochea após o famoso 5-0 da Colômbia). Pôde superar curiosas fraturas reiteradas na clavícula sofridas na base, estreando no time principal pela Copa Suécia, em 1958. Era um torneio interminável iniciado enquanto o campeonato estava paralisado em função da Copa do Mundo e só concluído em 1960. O vencedor foi o Atlanta, em sua maior conquista futebolística. Curiosamente, Bilardo estreou marcando exatamente os dois gols do triunfo de 2-1 sobre os futuros campeões. Outra curiosidade é que um dos adversários era o veterano Osvaldo Zubeldía.
O aviso de que jogaria veio às 1 da manhã do dia, quando Bilardo, já estudante de medicina, estudava o coração de uma rã já descerebrada – a profissão de médico do então volante seria igualmente determinante para o futebol do país. Ainda considerado atleta amador, o volante teve sua primeira decepção no futebol em 1959, ao ser cortado por lesão do selecionado que venceria os Pan-Americanos de Chicago – mas pôde figurar na seleção chamada às Olimpíadas de Roma, no ano seguinte. Em 1960, Bilardo também integrou um San Lorenzo que tivera bons prognósticos de chegar à final da primeira Libertadores da América (em 1960, os cartolas azulgranas, não vendo valor na nascente competição, aceitaram vender ao Peñarol o próprio mando de campo na semifinal).
Porém, apesar de todos esses indicativos de que poderia ser um bom jogador, ele não se firmou no Ciclón. Já em 1961 era repassado ao nanico Deportivo Español, time fundado em 1956 sob rápida ascensão: Los Gallegos venceram a quarta divisão em 1958 e a terceira em 1960, reforçando-se com Bilardo para a primeira temporada na segundona. Não foi com Bilardo que o Español chegaria à elite ainda, mas os novatos souberam fazer boas campanhas na Primera B, como o terceiro lugar em 1962 e em 1964, o que credenciou o volante a despertar interesse de dois times da elite, ambos de porte pequeno: o Argentinos Jrs e o Estudiantes, então um clube que vinha frequentemente brigando contra o rebaixamento e tinha como único troféu a conquista de 1913. Aí pesou a profissão paralela, já na ginecologia:
“Pensava em jogar mais um ano e com essa grana abrir o consultório no bairro. Os dois clubes iam últimos na tabela. Então pensei: ‘se jogo no Argentinos e é rebaixado, perco toda a clientela’. E fui a La Plata. Mudou minha vida”. O ano de 1965 também rendeu ao Pincha a vinda do citado Osvaldo Zubeldía, técnico iniciante que vinha de ótimas temporadas no Atlanta, que nunca antes ou depois conseguira tanta regularidade de boas campanhas, se intrometendo entre os cinco primeiros. O efeito Zubeldía foi rápido: os alvirrubros saíram dos últimos lugares para finalizarem na quinta colocação ainda em 1965. Na campanha, o reforço deu-se até o gosto de marcar, em um de seus raros gols, em 3-1 no clássico com o Gimnasia.
Mais maturados, os comandados de Zubeldía emergiram enfim em 1967, quando o campeonato argentino conheceu pela primeira vez desde 1930 um campeão fora dos “cinco grandes”. Nas semifinais, as atenções voltaram-se ao clássico entre Racing e Independiente, mas a final antecipada foi Platense (dirigido pela lenda Ángel Labruna) e Estudiantes, que protagonizaram uma das maiores reviravoltas do futebol argentino. O oponente chegou abrir 3-1 no início do segundo tempo e ter um jogador a mais por lesão do pincharrata Barale em tempos em que não se permitia substituições. Porém, em espaço de quinze minutos, os platenses viraram o jogo, com substancial contribuição de Bilardo, tanto esportivamente como na malícia. Ele primeiramente usou um petardo de canhota para empatar aos 14 minutos. Dois minutos depois, provocou o goleiro Hurst e conseguiu o que queria: um chute na bunda que, devidamente enfeitado, rendeu um valioso pênalti, convertido no gol da virada. “Lembro que depois de virar esse jogo disse a Poletti [goleiro alvirrubro]: ‘estou feito, não quero mais nada do futebol'”. Não imaginava ainda os voos pela Libertadores…
Adiante campeão com um 3-0 em um time misto do Racing mais focado na final da Libertadores dali a poucos dias, o Estudiantes não tardou a deixar de ser visto como um simpático nanico a uma equipe pouco apreciada pelo chamado antifútbol. A despeito da brava dupla de volantes que Bilardo formava com Carlos Pachamé (em plena campanha do título, eles chegaram inclusive a trocar agressões em um primeiro duelo com o Racing, ainda pela fase inicial, rendendo na expulsão do colega e futuro companheiro de comissão técnica…), o antifútbol designava mais o uso do regulamento embaixo do braço planejado por Zubeldía: muita jogada de bola parada, cera quando necessário e uma novidade, o uso e abuso em forçar o impedimento adversário. O sinônimo de antifútbol como violência viria com a vergonhosa noite de agressões contra o Milan pelo Mundial de 1969.
Nada pachequista e crítica ferrenha do Estudiantes de resultadismo e pouco espetáculo, a revista El Gráfico reconheceu aquele momento como “a página mais negra do futebol argentino”. Curiosamente, justamente ali Bilardo foi um dos jogadores expressamente poupados de críticas, direcionadas a Poletti e Aguirre Suárez. Mas, embora inocentado no momento mais grave, Bilardo era visto como o trabalhador sujo do Estudiantes de Zubeldía, ainda que o treinador só ordenasse artimanhas no limite das regras – sendo comum que muitos defensores do técnico atribuam à iniciativa única do Narigón a ultrapassagem desses limites. Enrique Wolff, sobre quem falamos mês passado, foi o capitão da seleção de 1974 convertido em renomado âncora da ESPN argentina, com seu programa Simplemente Fútbol gabando-se de ter entrevistado todas as personalidades possíveis do esporte, com a omissão intencional de Bilardo: “o enfrentei como jogador e para ganhar ele fazia coisas que não perdoo”.
Raúl Madero, outro daquele Estudiantes a conciliar o futebol com a medicina (profissão que exerceria na seleção de 1986, sendo outro colega de clube convertido em colega de comissão técnica), foi mais explícito: “Zubeldía nunca nos pedia isso. O único que tomava vantagem nesse aspecto era Bilardo. Um dia, Zubeldía nos reuniu para felicitar-nos. ‘Estamos tendo êxitos extraordinários nas jogadas de bola parada’, nos elogiou. E salta Bilardo: ‘e a mim não diz nada, eu que toquei todas as genitais dos rivais que formam as barreiras?'”.
Em longa entrevista à El Gráfico em 2011, Bilardo rechaçou que usasse alfinetes ou atirasse terras nos olhos adversários (a entrevista, inclusive, termina com ele igualmente rechaçando responsabilidade no episódio da água batizada dada a Branco em 1990), “táticas” que ele atribuía aos idos dos anos 30, mas colegas e adversários concordavam que ele entendia de olhos: Madero lembrou que o Narigón “fez ‘tuc’ em Nobby Stiles e lhe tirou as lentes de contato e depois as pisou, na final contra o Manchester”, no Mundial de 1968. Dez anos depois, quando já técnico Bilardo enfrentou Boca na final da Libertadores, o auriazul Heber Mastrángelo atribuiu a ordens dele um ato: “em um escanteio, vem de trás o Pecoso Castro e me esfrega nos olhos uma substância. Joguei toda a partida quase sem ver nada. Me puseram gelo, me doía, ardia… tempo mais tarde encontrei Bilardo e me confessou que era Vick Vaporub”. Mesmo os críticos, porém, reconhecem que, canalhices de Bilardo à parte, aquele Estudiantes tinha grandes jogadores e o próprio Narigón sabia ser minimamente útil com a bola.
Vieram a Libertadores de 1968, sobre a Academia do Palmeiras, seguida pelo Mundial onde o próprio Manchester United é quem mais foi hostil na história; a Libertadores de 1969, seguida então pelo vexame diante do Milan a tornar lugar-comum que os êxitos dos pincharratas se atribuíam apenas à violência; o tri da Libertadores em 1970, em campanha limpa reconhecida pela El Gráfico, a apontar que o bom futebol regenerara a imagem platense na época, seguido por um Mundial escapado nos detalhes para o Feyenoord (que perdia de 2-0 na Argentina, empatou e venceu na Holanda); Zubeldía, já ciente de um fim de ciclo, promovia uma triste limpa em muitos dos fiéis comandados. Bilardo estava entre eles. Sem clima, o próprio Zubeldía retirou-se depois. O enfoque excessivo do time nas campanhas continentais começava a ter consequências no campeonato argentino, onde o rebaixamento já havia sido enfrentado em 1970.
Em 1971, o time até chegou à quarta final seguida de Libertadores, mas, com o craque Juan Ramón Verón vendido ao vice-campeão europeu, a queda na liga argentina parecia mais perto. El Narigón, após rápido período como assistente de Zubeldía no Huracán, então voltou ao Estudiantes, escolhido pelos próprios velhos colegas para ser o novo treinador. Pôde evitar a vergonhosa degola. Após uma experiência de bombeiro, Bilardo iniciou de fato a carreira de treinador em 1973, na casa de sempre. Foram três anos seguidos comandando um Estudiantes se reacostumando ao porte médio, galgando do sétimo lugar ao vice-campeonato no Nacional de 1975 e ao terceiro no Metropolitano de 1976. El Narigón então foi recrutado pelo lucrativo narcofútbol colombiano, ingressando no Deportivo Cali. Os alviverdes fizeram o artilheiro da Libertadores de 1977 e então chegaram à final da de 1978 contra o Boca, repetindo a artilharia (do mesmo jogador, o também argentino Néstor Scotta, ex-Grêmio).
Segundo Bilardo, a derrota deveu-se em boa parte à própria cartolagem colombiana, que aceitou o pleito adversário em postergar a decisão; o Narigón queria aproveitar que os auriazuis vinham destroçados psicologicamente de um vice para o pequeno Quilmes no Metropolitano, mas precisou aceitar que os reoxigenados xeneizes lhe vencessem por 4-0. Apesar da goleada, a primeira chegada colombiana a uma final de Libertadores rendeu convite para voltar ao seu San Lorenzo. Bilardo confessaria orgulho em ser o último técnico azulgrana a trabalhar no velho estádio Gasómetro, vendido em 1979. Fora isso, o retorno foi infernal exatamente pelas mesmas dívidas que fariam o clube desfazer-se de seu campo:
“Na sexta-feira davam os cheques, na segunda-feira não havia fundos e havia reuniões todos os dias. Quando se revoltaram, botaram os companheiros na bilheteria que depois repartiam a grana nos vestiários. Me lembro de que no dia em que cheguei ao clube, queria fazer futebol. Janeiro no Gasómetro era tudo terra. Pedi ao campeiro, que conhecia da minha época, que regasse a grama. Pedi três vezes e nada. ‘O que acontece?’, perguntei. ‘Não tenho mangueira’, me disse”. Ainda em 1979, o Narigón voltou à Colômbia, onde o cartaz ainda em alta lhe alçou a técnico da seleção nacional, sem evitar a última colocação no grupo-triangular com Peru e Uruguai nas eliminatórias à Copa de 1982. Restava-lhe recomeçar no Estudiantes, trabalho que enfim seria seu trampolim para a seleção argentina.
O Estudiantes não era campeão desde o ponto fora da curva que havia sido o ciclo sob Zubeldía. Bilardo começou a armar um novo Pincha vencedor ao rumar ao interior inglês com modestos mil dólares solicitados ao presidente alvirrubro e outros mil dólares próprios – uma soma irrisória, mesmo já naquela época. Mas com ela e muita lábia conseguiu trazer o habilidoso Alejandro Sabella, então no Leeds United. Sabella contaria: “os caras estavam apressados porque imagine, era domingo, que para eles é sagrado e queriam passear com suas mulheres! Eu era o tradutor. Carlos levou uns recortes de diários sobre a crise econômica que havia na Argentina e que o Estudiantes estava fazendo um grande esforço. E os convenceu”. O pré-contrato já havia sido acertado a sós com o jogador, não sem uma briga entre os dois, pois El Narigón não se inibira em soltar um “olhe, Sabella, me dê mil pesos que não tenho uma moeda”. Desse modo anedótico começaria a relação de Sabella com o Estudiantes, campeão imediato do Metropolitano de 1982.
O time armado por Bilardo não só quebrou o jejum como ainda faturaria o bi seguido, mas já sem o treinador, que também já não era o comandante pincharrata na célebre “Batalha de La Plata” na Libertadores de 1983: o fim da seca alvirrubra credenciou Bilardo à seleção, que historicamente unia seu lado combativo a um desejo de espetáculo, algo aflorado nos anos sob César Menotti. El Narigón não tardou em impor a filosofia adquirida sob Zubeldía, originando a inimizade com o antecessor que contamos aqui e aqui. Aboliu os pontas para reforçar a zaga e a volância. A opinião de Menotti não era isolada: “Muitas vezes, me digo: ‘como aguentei?’. Uma vez, me xingava todo o estádio do River, impressionante, em um amistoso com o Paraguai. Nessa noite meu pai me esperou e me disse: ‘por favor, Carlos, não treines mais’. Lhe respondi: ‘não, vou ganha-los, vou ganha-los'”. Outro ponto então contestado era passar a braçadeira de Daniel Passarella a Maradona, cuja arte ainda era exibida aquém do esperado na Europa.
Os jogadores, mesmo os estreantes na seleção, também tinham reservas. Jorge Olguín, campeão mundial em 1978 comandado por Bilardo no San Lorenzo de 1979, se dedicava a convencer Menotti que Bilardo e não Zubeldía era o malandro, e recusou chamadas telefônicas do Narigón, deixando de ir à Copa de 1986 embora liderasse o Argentinos Jrs campeão da América em 1985. “Era um cara que se preocupava mais com o rival do que pelo próprio time, sua obsessão era defender, te fazia ver mil vídeos, mas para ver como jogava o rival e não para corrigir você”, resumiria o líbero.
Ricardo Giusti, por sua vez estreante na Albiceleste com o Narigón, foi mais humorado depois de tantos anos: “Carlos me ligava meia-noite, para ele os horários não existiam. ‘Que estás fazendo, Giusti?’, me perguntava. ‘Dormindo, Carlos, o que estaria fazendo?’. Me pedia que visse determinada partida, me perguntava no outro dia no treino. Ligava a Burruchaga às 3 da manhã da França. E queria que falássemos, eu estava morto de sono. Ou ligava para falar com minha mulher para ver como estava, o que comi. Ou qualquer tarde me dizia: ‘venha para a AFA’, e nos metia três horas de vídeos. Havia que aguenta-lo, não era fácil. E não é como agora, que tens uma compilação de jogadas ofensivas. Não, antes tinhas que ver os 90 minutos”.
Julio Olarticoechea chegou a renunciar à seleção em 1984, sendo uma das novidades surpreendentes de Bilardo para 1986. Mas, surpreendentemente, não sem relutância de El Vasco.
Eis as didáticas palavras do ex-volante: “vem um domingo Pachamé ao campo do Boca depois de um jogo e me diz: ‘Carlos quer falar de novo contigo’. Lhe respondi que estava indo para Saladillo com a família, Pacha saiu um momento, voltou e me disse: ‘te espera do pedágio da autopista’. Pronto: fui buscar minha família em Wilde, subi a autopista e aí no pedágio estava Bilardo com seu Ford Fairlane velho. Me fez sinais, descemos umas quadras adiantes e vejo que se põe a olhar o chão, até que encontrou um pedaço de ladrilho e começou a desenhar um campinho na parede e me explicar como queria que jogasse. Minha família esperava no carro. Me chamou para a terça, mas não lhe respondi nem sim nem não. Meus amigos de Saladillo me disseram que não fosse um mané e terminei indo. Você sabe o que era treinar com Bilardo? E em turno duplo! Era uma coisa insuportável. Minha mulher o via como o diabo: as segundas-feiras que tínhamos folga nos chamava para ver vídeos e vídeos. Então, quando se aproximava a Copa, me perguntava: vou aguentar três meses com Bilardo? O melhor dele é a obsessão e o pior é a obsessão. De fato, renunciei à seleção apesar de ter muita paciência, mas para mim era demais. Mas me deixou muitos ensinamentos na tática, foi um adiantado no tema dos vídeos”.
Bilardo, que em 2001 já agradecia por poder passar sua coleção de VHS para CDs, também era daqueles treinadores supersticiosos, como contaria José Luis Brown, ex-comandado dele no Estudiantes que terminou titular em 1986 no lugar de Passarella para, mesmo inábil, abrir o placar da final da Copa em seu único gol pela seleção: “passei mais tempo com Bilardo do que com meu pai. Na véspera da estreia, fomos a um shopping e comemos uns hambúrgueres espetaculares, escondidos. Éramos vários. Como ganhamos, o que fizemos antes de enfrentar a Itália? Repetir. Uma vez nos viu o Dr. Madero, Bilardo lhe dizia ‘venha lá, Raúl, está tudo bem’. Se sentou conosco e cumprimos a superstição. Madero nos disse de tudo, que éramos uns irresponsáveis…”. Já sobre Tata Brown, o agora médico Raúl Madero lembraria como Bilardo reagiu à recomendação de substitui-lo na decisão após deslocar o ombro: “Tata, morra aí dentro, hein”. Já o resultadismo fez Bilardo não ter pudor em usar os refinados meias Ricardo Bochini, maior lenda do Independiente e ídolo de Maradona, e Marcelo Trobbiani apenas nos minutos finais da semifinal e da final, para gastar tempo. “Sempre fiz o que melhor acreditava para o time”.
Sabendo em prol de Maradona transformar grandes craques em “meros” operários e extrair o melhor de quem era no máximo operário, Bilardo calou os críticos com o título e respaldou-se para seguir até 1990, mesmo padecendo nas duas Copas América até lá, incluindo a primeira em que a Argentina deixou de ganhar como sede. Mesmo casamentos recebiam uma visão bilardista do mundo: no de Maradona, em 1989, ordenou que o pupilo Brown se colocasse ao lado do zagueiro italiano Ciro Ferrara (colega de Diego no Napoli) para comparar as alturas de ambos, já antevendo alguma jogada de escanteio em possível encontro dos dois países na Copa 1990. Goycochea também casou-se naquele ano e esteve longe de ganhar folga: “não há problemas, Goyco. Se case ao meio-dia que às quatro te espero no campo auxiliar do Vélez”.
Aí veio a derrota na estreia de 1990, a render o seguinte ultimato do treinador: “aqui tem duas opções: vamos em um avião, damos um pára-quedas ao piloto e nós nos chocamos contra qualquer coisa ou chegamos à final. Porque hoje nos assistiram 1,5 bilhão de pessoas e essa quantidade tem que voltar a nos ver”. Bilardo tinha inclusive uma pendência pessoal com a Copa: em 1986, esquecera-se de fotografar-se com a taça. “Disse: ‘a próxima Copa vamos ganhar também. Em 1990, quando via Beckenbauer com a taça, tinha umas ganas de dizer-lhe: ‘me a dê para tirar uma foto'”. Após o vice, irritado por seu assistente Carlos Pachamé não ter sido indicado para sucedê-lo, rompeu com a AFA por quase vinte anos, até ser integrado na comissão do técnico Maradona em 2008 – mas sem maior peso nos trabalhos e convocações.
Maradona retribuía uma fidelidade que Bilardo seguira após 1990, pois os dois primeiros trabalhos do treinador após o vice foram em times do pupilo: no Sevilla da temporada 1992-93, onde chegaram a ter séria desavença, até se reconciliarem no Boca em 1996. “Minha filha me diz que dou mais bola para Maradona do que para ela”, assumiu o Narigón. Era ela o treinador xeneize no 4-0 no River que vencera três semanas antes a Libertadores, na recordada noite de beijo entre Dieguito e Caniggia. Aquela goleada aproximou o Boca do título, faltando três rodadas. Mas o clube derrapou e perdeu chances ainda na penúltima rodada, ironicamente contra o Estudiantes e ironicamente em dia em que Juan Sebastián Verón marcou nos alvirrubros e Martín Palermo marcou nos auriazuis. Bilardo permaneceu para o torneio seguinte e ordenou uma debandada geral de velhas estrelas, a ponto do presidente Mauricio Macri creditar ao Narigón parte do sucesso que Carlos Bianchi conseguiria no terreno preparado em 1996.
“Sofri isso como jogador. Um dia, sentou Zubeldía e disse: ‘Poletti, Bilardo e Conigliaro, fora’. Pum. Não dá mais, acabou. E éramos tricampeões da América. No Boca havia jogadores que não davam mais e tinham que ir. Assim são as coisas, fazer o quê?”. Embora tenha promovido a estreia de Juan Román Riquelme naquele segundo semestre de 1996, Bilardo mais perdeu do que ganhou no Apertura, incluindo em seu único duelo contra Menotti (então no Independiente), e saiu. Desde então, só voltou a treinar as seleções de Guatemala (1998) e Líbia (1999-2000) e seu Estudiantes em nova passagem entre 2003-04, mais lembrada pelo dia em que camuflou Gatorade em uma taça de champanhe que bebia enquanto era goleado pelo River.
O regresso ao Pincha não foi vitorioso, mas serviu ainda para polir alguns dos jogadores que estariam ali no ciclo vitorioso iniciado em 2006. Bilardo tem no clube seu oásis em um país onde ainda detém críticos ferrenhos inclusive em veículos de imprensa, que não se furtaram em divulgar fotos ano passado de um mal estado de saúde. Mesmo Maradona rompeu com o mestre ao sentir-se traído com a demissão pós-Copa em 2010. Raúl Madero também já passou quinze anos sem falar com o antigo companheiro.
As aspas dessa nota foram retiradas de diversas entrevistas dos envolvidos à revista El Gráfico, que entrevistou o próprio Bilardo em 2001. Na ocasião, indagado se era perigoso a seleção ir à Copa de 2002 como candidatíssima, foi profético: “não gosto, porque todos vão querer te ganhar. Tem que baixar os decibéis”. Sem ter exercido em prol do futebol a ginecologia onde se especializara ou mesmo clínica médica geral, El Narigón também não é nada saudosista, fator comum tão comum a jogadores do passado e fãs de outros tempos, respondendo que preferia a Argentina de 1986 ao Brasil de 1970 e à Holanda de 1974: “sem dúvidas. É um futebol mais rápido. É o mesmo quando me dizem ‘Pelé, Maradona ou Di Stéfano?’, ou quando me perguntam ‘um médico de antes ou um de agora?’. Um de agora, velho, se o de agora é o que me salva e o de antes não teria capacidade de fazê-lo”.
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