“As pessoas se deram conta da injustiça, porque o inglês é um sujeito legal e no dia seguinte não me quiseram cobrar um táxi, nem tampouco nas lojas Harrods. Entrava num lugar público e dava autógrafos. (…) Em 1978, um técnico argentino dirigia o Sheffiled e por sugestão me ofereceram ser o representante deles na América. Viajei para lá e quando entrei na sala onde estavam as pessoas do clube, não pararam de me aplaudir. Não entedia nada. Ao fim, terminei levando Sabella, que arrebentou. Fui um idiota por não aprender inglês, senão teria ficado vários anos trabalhando aí, mas o idioma era um obstáculo irremediável”.
A declaração acima foi dada pelo hoje octagenário Antonio Ubaldo Rattín em 2013 à Revista El Gráfico e surpreende quem imaginaria qualquer rancor do capitão da Argentina aos ingleses, em função da polêmica expulsão na Copa do Mundo de 1966. Daqueles volantes caudilhos, com voz de mando auxiliada pela altura imponente, também era bom no jogo aéreo nos dois lados do campo, fazendo alguns golzinhos. Só vestiu duas camisas: a do Boca, por quinze anos, e a da seleção. Hora de relembrar um pouco dessa trajetória, com depoimentos extraídos da mencionada entrevista.
Rattín nasceu na cidade de Tigre, “capital argentina dos esportes náuticos” (o clube de futebol Tigre há muito tempo saiu da cidade, tendo sede no município de Victoria). A paixão pelo Boca veio naturalmente, por transmissões coletivas de rádio nos arredores, sem qualquer influência de uma família pouco ligada a futebol – o pai jamais assistiu-o no estádio, a mãe não mais de três vezes. E foi exatamente em uma prova de remo que Rattín ganhou seu primeiro presente atrelado ao Boca, um pôster enquadrado dos anos 40 (“vocês não sabem como remava quando garoto! Era minha paixão. Me encantava remar. E na vida ninguém me presenteou nada. Estudei até o sexto grau e sou eletricista”).
Embora a Tigre seja uma cidade associada às classes altas, a família Rattín era humilde, tendo construído a própria casa, sem luz, gás ou banheiro inodoro – que só foi instalado quando o volante já havia se profissionalizado, após um dirigente do clube ter visitado a família e precisado se aliviar (“quando subi no carro, me disse: ‘Rata, me passe o orçamento do banheiro’. Mas me deu a conta. Nesse ano inteiro, em 1957, joguei pelo banheiro completo da minha casa”). O pai exigiu que o filho completasse os graus primários e nunca demonstrou satisfação por ele escolher o futebol, em tempos menos remunerados do esporte: “hoje é tudo ao contrário do que meu velho me pedia. Agora é só o pai ver que o filho pega bem na bola que o tira do estudo e o mete no futebol para se salvar com o garoto”.
A estreia pelo time profissional veio nada menos que em um Superclásico na Bombonera, em 1956, apesar da uma luxação na mão. A paixão pelo Boca não impedia que admirasse muitos jogadores do River (e de lamentar o rebaixamento em 2011: “River e Boca são as locomotivas do futebol argentino, os outros são vagões que vem atrás. Nos precisamos mutuamente”), e seu maior ídolo era o volante caudilho rival: Néstor Rossi, com quem fez questão de pedir uma foto previamente à partida. Sempre se orgulhou de não sentir riscos em caminhar pelo Monumental, por jamais ter proferido zombarias contra os millonarios.
Mas no gramado, foi duro desde o primeiro dia: ordenado a marcar o mito Ángel Labruna, fez com tanta dedicação que o veterano pediria “calma, garoto, que esse não vai ser o único jogo que farás na carreira”. O Boca ganhou por 2-1, mas o rival terminaria campeão. Por outro lado, Rattín logo garantiu vaga de titular. Mas precisou ser paciente: os auriazuis passariam por campanhas irregulares, com a primeira disputa séria pelo título só vindo em 1960 (deu Independiente). O que não impediu que El Rata estreasse pela Argentina ainda em novembro de 1959. De novo, paciência: foi na primeira derrota dos hermanos para a seleção chilena, em um 4-2 em Santiago, amistoso preparatório para a segunda Copa América realizada naquele ano. Que incluiu a derrota mais elástica para o Uruguai, um 5-0 que foi o terceiro jogo de Rattín pela Argentina…
O título, o primeiro do Boca em oito anos, enfim veio em 1962, de maneira muito especial. Na penúltima rodada, Boca e River estavam empatados e fariam em La Bombonera o duelo que praticamente definiria o título. O Superclásico histórico ficou marcado por pênaltis cobrados por brasileiros de cada lado: Paulinho Valentim pôs o Boca na frente e nos instantes finais Delém teve a oportunidade do empate, mas seu chute foi defendido por Antonio Roma – que se adiantou bastante, é verdade. O árbitro Carlos Nai Fono, apesar dos protestos, não mandou a cobrança ser repetida. Falamos aqui. Já Rattín disse o seguinte:
“Sim, se adiantou, mas atenção que todos sabíamos a que lado ia chutar, porque tínhamos El Canario Pérez de espião, que Delém chutava o pênalti para a direita. Isso sabia até (Carmelo) Simeone, que era o designado a ir ao gol se Roma se lesionasse, porque nessa época não havia substituições. Então se Roma não pulasse para esse lado, o matávamos. Agora, de adiantar-se não falamos nada, isso ocorreu a ele. Quando íamos caminhando para o meio do campo, Nai Fono, o juiz, me disse: ‘Rata, eles estão loucos que querem chuta-lo de novo, penal defendido é penal mal batido!’. Tiramos dois pontos de vantagem e no domingo seguinte goleamos o Estudiantes e fomos campeões. Foi meu primeiro título no Boca. Uma alegria incomparável”.
Rattín, que contou ainda outra história do folclórico Nai Fono (“uma vez, em um Boca x Central, inventou uma falta para eles. ‘Não vá à barreira, Rata, venha a meu lado que quero ver esse Flaco que me contaram que chuta um fenômeno’, me disse. El Flaco chutou e acertou o travessão. Era Menotti. Depois puxei Nai Fono: ‘e se era gol, Don Carlos, que faria?’. E o louco sorriu: ‘o anulava e pronto, sempre se pode anular um gol'”), também saboreou glórias nos anos seguintes. Em 1963, o Boca virou o primeiro time argentino na final da Libertadores. Em 1964 e 1965, foi bicampeão argentino novamente após superar a concorrência do River em Superclásicos nas retas finais.
“Em minha época, fui muito bem nos clássicos: ganhei doze, empatei dez e perdi seis, mas também peguei o tabu do San Lorenzo, que nos tinha de fregueses. Lhes dávamos cada baile, mas eles ganhavam”. Nessa época, o capitão formal era o brasileiro Orlando Peçanha. Com quem a relação não era boa: “estivemos quase dois anos sem nos falar. Não me dava nunca a bola, então me cansei, nos xingamos num treino e nos agarramos a socos no vestiário. Ninguém se meteu. Não nos falamos por dois anos, mas em campo nos matávamos um pelo outro. Quando foi embora do Boca, veio me cumprimentar e nos demos um abraço”. O brasileiro saiu em 1965. Rattín assumiu a braçadeira dele no Boca. Na seleção, sucedeu José Ramos Delgado.
Sobre a capitania, deu sua visão: “não entendo que os goleiros sejam capitães. Não. O capitão deve falar com o árbitro, tê-lo perto. Nessa época, (o árbitro) me dizia: ‘diga a (Carmelo) Simeone que se acalme, porque vou expulsa-lo’. Eu lhe respondia que dissesse ele, que era o árbitro. E ele me dizia: ‘a você ele obedece, a mim não. Se não falares, vão ficar com dez’. Então me aproximava de Simeone e lhe pedia que parasse de dar patadas. Esses diálogos não podem faltar no campo”. Na Albiceleste, esteve nas Copas de 1962 e 1966. Entre elas, teve seu grande momento em 1964: o bicampeão Brasil comemorou os 50 anos de sua seleção promovendo um quadrangular com Portugal, Inglaterra e Argentina, a Copa das Nações.
Foi a conquista internacional mais expressiva dos hermanos até a Copa de 1978, apesar da bagunça na preparação: “nos conhecemos no avião, fomos sem prepardor físico e no primeiro treino, Pepe Minella nos disse que cada um fizesse o que quisesse. Ganhamos os três jogos e não nos meteram gols: 2-0 em Portugal, 3-0 no Brasil e 1-0 na Inglaterra”. No surpreendente 3-0 no Brasil no Pacaembu, Rattín teve sua revanche contra Pelé pela perda da Libertadores de 1963. O santista perdera a cabeça contra o marcador original, José Chino Mesiano, que teve nariz fraturado: “o juiz não viu, El Chino teve que sair, então nesse momento me aproximei do banco e disse a Minella: ‘Don Pepe, faça entrar Telch (que comia sanduíche na hora…), que de El Negro cuido eu'”.
“Em seguida vem um escanteio e Pelé me disse: ‘Rattín, com bola sim, mas sem bola não, certo?’. E lhe respondi: ‘fique tranquilo, sem bola nada, mas com bola te arrebento!’. E El Negro não a tocou no resto do jogo. Nem sequer quis chutar o pênalti que lhes deram e que Carrizo terminou pegando de Gerson. Na entrega dos prêmios, durante o jantar, tiveram de nos dar umas canetas porque os relógios de ouro já tinham gravados de antemão os nomes dos brasileiros”. A rivalidade com Pelé ficava em campo (“se El Negro está aqui, passo para sauda-lo”): na entrevista, Rattín o pôs acima de Maradona e Messi. A camisa de Pelé exposta no museu do Boca foi trocada com o volante, que também desenvolveu relação com outro rival, Bobby Charlton (“mas não é como com Pelé”, ressaltou). Apesar do depoimento que abre a matéria, o capitão da seleção ainda acredita em roubo contra os argentinos em 1966:
“Essa Copa estava preparada para que os ingleses ganhassem, veja que depois não voltaram nunca mais a jogar uma final de Copa ou Eurocopa. E na final contra a Alemanha lhes deram um gol fantasma. Aquela seleção argentina foi a melhor que integrei, melhor que a que ganhou a Copa das Nações. Uma pena que terminamos segundos no grupo por saldo de gol, porque se terminássemos primeiros, jogávamos contra o Uruguai nas quartas. Com o sorteio dos árbitros, já começávamos a ver. Foi muito ardiloso: o nosso delegado e o do Uruguai foram convidados às 7 da tarde para o sorteio, mas chegaram e já o haviam feito às 6. E justo se deu que Argentina-Inglaterra fosse a um alemão e Alemanha-Uruguai a um inglês, que causalidade! Estava tudo cozinhado”.
Rattín também teorizou: “quando pedem a mim que fale dos mundiais, eu pergunto: ‘com satélite ou sem satélite?’. Porque até essa Copa 1966, o país organizador chegava sempre nas últimas instâncias para assegurar o êxito econômico da Copa, que dependia dos ingressos vendidos. Suécia foi finalista em 1958, Chile terceiro em 1962… desde México 70, que foi o primeiro televisionado ao vivo, a FIFA não se interessou mais que o local chegasse a final porque já tinha assegurada a arrecadação por teletransmissão”.
Já sobre o lance, explicou que “(o técnico) Lorenzo me havia dito que se o juiz apitasse mal, pedisse um intérprete, porque eu era o capitão e existia uma parte do regulamento que me amparava. Pedi o intérprete porque o filho da puta do Kreitlein apitava tudo para eles. Não fiz nenhuma falta violenta, não insultei ninguém, só pedi o intérprete para que nos deixasse de embromar, por isso lhe mostrava a faixa de capitão. O cara não me dava bola, até que me expulsou. O jogo esteve parado por uns 30 minutos. Saí, me sentei no tapete, nem sabia que era da rainha, e quando ia ao vestiário, começaram a me atirar chocolates, do lado estava a bandeira inglesa no escanteio e a espremi, então em vez de chocolates, começaram a atirar latas de cerveja”.
A FIFA suspendeu Rattín por muito mais que um jogo. Ainda assim, foi convocado à Copa América de 1967 mesmo com ciência prévia de que só poderia ser usado na última partida, a decisiva contra o Uruguai. Despediu-se da seleção no primeiro jogo das fracassadas eliminatórias à Copa de 1970, na derrota de 3-1 para a Bolívia em La Paz em julho de 1969. A última alegria viria meses depois. Após quatro anos de entressafra, o Boca voltou a ser campeão. E, de novo, vitimando o River. Ambos duelaram na última rodada com o Boca podendo empatar e foi o que aconteceu. Pela primeira e única vez, os auriazuis deram volta olímpica no Monumental após o Superclásico (ou tentaram, porque o clube ligou hidrantes buscando atrapalhar).
Era o Boca treinado ironicamente por Alfredo Di Stéfano. Rattín já não era titular (não esteve nessa partida, por exemplo), mas considera esse elenco melhor que os multicampeões da Libertadores: “para mim, foi melhor que o de Lorenzo e o de Bianchi, mas durou pouco, um só campeonato. Esse não era o Boca de verdade, era outro estilo, refinado”. Parou no início da temporada de 1970, farto de dores no tendão de Aquiles em jogo contra o Banfield, dia que considera o mais triste de carreira: “terminou o primeiro tempo e não queria seguir jogando. Meus colegas não me passavam a bola, haviam perdido a confiança em mim. Foi uma sensação horrível, por isso entrei no vestiário e disse ao (técnico) Silvero: ‘José, me tire que não vou mais’. Entrei no carro e fui para casa, cheguei antes que o jogo acabasse”.
Teve seu jogo despedida em dezembro de 1970, entre Boca e um combinado sul-americano (Pelé participou). Foi chamado para técnico em 1980, sem êxito. Dedicou-se a vender seguros. Em 1995, passou a ser coordenador do Boca após apoiar Mauricio Macri, cravando a certeira contratação de Jorge Griffa para desenvolver os juvenis xeneizes. chegou a ser deputado federal, além de ser presidente da associação de amparo a ex-jogadores em dificuldades do Boca – conseguindo o feito de arrancar da gestão Mauricio Macri uma porcentagem simbólica de 1% dos salários do elenco atual em prol de quem passe necessidades após jogar mais de cem vezes pelo clube no passado (“dois da década de 60, vários dos anos 70 e 80, e dos 90 não pois aí o futebol mudou”).
Por fim: sobre a longevidade ativa, El Rata explicou que “não fumei nunca. Beber, comecei depois dos 40: só vinho e champanhe. E não conheço a noite. A noite serve para descansar e dormir. Talvez me ajudou o remo, um grande esporte. E me exercitar, me exercitei sempre bem. E trabalhar todos os dias me entretém, me mantém vivo”.
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