Se desde os anos 70 a Copa América é normalmente concluída em mata-matas, no passado o torneio era mais enxuto e se desenrolava em pontos corridos de turno único. Era assim a edição da virada de 1936 para 1937, o que não impediu uma autêntica final, em jogo-extra travado pelas duas seleções que terminaram na liderança – logo elas, que não se enfrentavam havia doze anos. Foi a partir daquele momento que a rivalidade com o Brasil começava a ganhar espaço em relação à com o Uruguai (ainda chamada na época de Clásico de los Clásicos pela revista El Gráfico, por exemplo) para os hermanos. O torneio, por sinal, serviu para redimir algumas frustrações. Já a final iniciou-se em 1 de fevereiro e só encerrou-se na madrugada para o dia 2, ou há exatos 80 anos.
Dentre os campeões, gente frustrada das Copa de 1930 e 1934 e do fenomenal Estudiantes de 1931. Dos de 1930, Roberto Cherro defendia a Argentina desde 1924 e conseguiu notável média de 0,75 gols por jogo por ela. Foi o maior artilheiro do Boca no século XX. Mas El Cabecita de Oro, acometido de uma crise nervosa, abriu mão de jogar nas partidas seguintes. Foi assim que a vaga ficou com o futuro artilheiro do mundial, Guillermo Stábile. Cherro reeditou na seleção a fantástica dupla com Francisco Varallo, que por sua vez foi o segundo maior artilheiro do Boca no século passado – e o maior na era profissional. Varallo também estava na Copa 1930.
Com o tempo, ele ficou conhecido como último sobrevivente da final (faleceu aos cem anos, em 2010). Sempre lamentou um chute seu ter parado na trave quando os hermanos ainda venciam. O detalhe é que El Cañoncito jogou a final lesionado. Na época, ele ainda era do Gimnasia LP, que meses antes havia sido campeão argentino (pela única vez). Um dirigente do clube pressionara pela escalação de seu jogador, em detrimento do concorrente Alejandro Scopelli – atleta do rival Estudiantes. Scopelli, por causa da lesão de Varallo, havia atuado na impiedosa semifinal de 6-1 nos EUA.
Pois bem: Scopelli também estava em 1937, já como jogador do Racing, onde conseguira incríveis 44 gols em 60 jogos. Em 1931, integrara o ataque Los Profesores do Estudiantes. Mesmo meia, fez 33 gols, só um a menos que o artilheiro do campeonato, Alberto Zozaya, também do Estudiantes e outro da Copa América de 1937. Outro alvirrubro de 1931 era Enrique Guaita, que também estava no Racing em 1937 após acompanhar Scopelli na Roma e na seleção italiana (pela qual vencera a Copa de 1934). O time de La Plata fez 103 gols em 1931, contra “só” 85 do campeão Boca (de Cherro e Varallo). Falamos aqui daquele superataque e aqui daquele campeonato.
A seleção de 1937 tinha também o ponta Carlos Peucelle, que marcara gol na final de 1930, quando ainda era atleta do extinto Sportivo Buenos Aires. Um ano depois, foi ao River em transferência que rendeu ao clube o apelido de Millonarios. Fama reforçada outro ano mais tarde, quando foi adquirido Bernabé Ferreyra, do Tigre. Ferreyra foi outro frustrado de 1930, mas por não ter ido à Copa. foi limado após ir mal no último amistoso preparatório – o detalhe é que no mesmo dia havia doado sangue à irmã. Uma pena. Em 1931, El Mortero de Rufino foi o quinto na artilharia por uma equipe antepenúltima colocada. Na nova casa, faria incríveis 187 gols em 185 jogos, projetando o River nacionalmente. Havia também os frustrados da Copa seguinte (como ele também).
Em 1934, os melhores jogadores do país ficaram de fora, não liberados pelos principais clubes, rompidos desde 1931 com a associação reconhecida pela FIFA. Dentre esses desfalques, o citado Alberto Zozaya; o multi-homem Antonio Sastre, hábil em qualquer posição e que já brilhava no Independiente e futuramente grande ídolo do São Paulo; e o volante José María Minella, líder do belo Gimnasia quase campeão de 1933. Ele já estava no River, campeão argentino de 1936 (o que não impediu a ausência de luxo de José Manuel Moreno, maior jogador argentino da primeira metade do século XX e já estreante na seleção). Outro campeão de 1936, na liga rosarina, foi o pequeno Central Córdoba, que a vencia só pela segunda vez. Taça que marcou a aposentadoria de Gabino Sosa, ídolo do clube e da seleção nos anos 20. E que rendeu a convocação de um jovem chamado Vicente de la Mata.
De la Mata fez 19 anos durante a Copa América, idade que na época ainda o fazia “de menor”. O hábil driblador precisou da assinatura do pai para formalizar na véspera daquela final sua ida ao Independiente, onde jogaria em altíssimo nível pelos próximos dez anos. Outro filho da refinada escola rosarina era o ponta Enrique García, um Garrincha canhoto cujo andar igualmente torto lhe rendeu o apelido de Chueco. Ex-Rosario Central, virou ídolo no Racing mesmo sem títulos. Já o rival Independiente, com De la Mata, conquistaria seus primeiros títulos profissionais já em 1938 e em 1939, e em 1948. As conquistas anteriores do Rojo, ainda no amadorismo, eram dos distantes 1922 e 1926, quando a estrela máxima era Manuel Seoane. Seoane havia sido o herói do Brasil x Argentina anterior, que decidiu a Copa América de 1925. Agora, era o técnico da Albiceleste.
O Brasil, aliás, vinha se ausentando de todas as Copas América desde aquela polêmica decisão de 1925, desmistificada neste outro Especial. Nesse ínterim, também não vinha enfrentando a Argentina. Foi o maior hiato de confrontos entre as duas seleções. Como em 1925, Buenos Aires sediaria o torneio. Começaria em 26 de dezembro, mas a chuva adiou a estreia anfitriã e quem abriu as disputas foi o reestreante Brasil (sem jogadores de Flamengo e Fluminense, pela velha politicagem, similar à que fez aquela Argentina de 1937 sequer entrar nas eliminatórias à Copa de 1938) no dia seguinte: 3-2 no Peru. Curiosamente, para pesadelo de alguns, naquele dia o Brasil foi vermelho: usou a camisa do Independiente pois tanto os tupiniquins como os peruanos só tinham consigo camisas predominantemente brancas.
Três dias depois, Varallo fez os dois gols argentinos nos 2-1 no Chile. O ataque mesclava River, Racing e Boca: Peucelle, Varallo, Ferreyra, Scopelli e García começaram jogando e Cherro substituiu Scopelli nos últimos quinze minutos. Uma linha tão boa que Sastre foi deslocado para a lateral-direita, brilhando ainda assim. Brasil e Argentina venceram seus compromissos seguintes: 6-4 dos brasileiros (que usaram o azul e amarelo que o os caracterizaria – mas dessa vez era a camisa do Boca…) sobre o Chile (cuja camisa principal ainda não era vermelha e sim branca, como a do Brasil) e inapelável 6-1 dos argentinos sobre o Paraguai. Ferreyra, que inexplicavelmente nunca rompeu na seleção, ficara no banco. O substituto foi Zozaya, que marcou três. Scopelli fez outros dois e García, o outro.
O Brasil também massacrou o Paraguai (5-0) enquanto a Argentina diminuiu o pé contra o Peru: 1-0, gol de Zozaya. O ataque dos 6-1 fora mantido com exceção de Scopelli: Cherro começou jogando e na última meia hora foi substituído pelo estreante De la Mata. O compromisso seguinte dos líderes foi contra o Uruguai. Campeã da edição anterior, em 1935, a Celeste mal era sombra de quem encantava o mundo. Havia perdido para Paraguai (4-2) e Chile (3-0). Mas os uruguaios fizeram jogo duríssimo primeiro contra os brasileiros, que estiveram duas vezes atrás no placar. Mas viraram para 3-2 e se isolaram temporariamente na liderança. A Argentina esteve irreconhecível na sua vez de pegar o Uruguai. Começou perdendo de 3-0 nos primeiros 60 minutos.
O ataque titular do dia era Peucelle, Varallo, o garoto De la Mata, Scopelli e García. De la Mata não se deu bem e foi sacado por Zozaya no intervalo. Varallo e Zozaya diminuiriam a conta, mas os hermanos terminaram derrotados. Precisavam vencer a rodada final – contra o Brasil – para forçar um jogo-desempate. Em 30 de janeiro, o estádio do San Lorenzo viu o placar mínimo garantir sobrevida aos anfitriões, gol de García. Poderia ser por mais se Varallo e Scopelli não encontrassem o travessão. No ataque, Peucelle dera lugar a Guaita. Varallo completava o quinteto ofensivo. No intervalo, Cherro substituiu Scopelli (mudança mantida para o jogo-extra, onde o goleador do Boca começou jogando). A vitória argentina não foi tranquila: brasileiros cercaram o árbitro uruguaio Aníbal Tejada, que, ultrajado, recusou-se a apitar o jogo-extra, a cargo do também uruguaio Luis Mirábal.
Mas Mirábal não escapou de polêmicas, muito maiores. Mas nem por isso do nível da manchete “Quase Chacinados” do Jornal dos Sports. “Na verdade, perdemos porque eles jogaram melhor”, assumiria décadas depois à Placar o atacante Tim (ainda na Portuguesa Santista!) sobre o tal “jogo da vergonha”. Já o livro Brasil x Argentina – Histórias do Maior Clássico do Futebol (1908-2008), de Newton César de Oliveira Santos, não esconde um jogo ríspido desde o início. Mas igualmente o desmistifica. Segundo o livro, quem começou a confusão foi justamente o Brasil: Cherro recebeu falta de Brito, o que paralisou o jogo em alguns minutos. Zozaya então deu o troco em Jaú. Nova interrupção veio com Varallo recebendo pontapé de Carvalho Leite quando se preparava para chutar, revidando com um soco, estopim para uma confusão generalizada. Ela paralisou o jogo por 42 minutos.
O que mais revoltou os visitantes, contudo, teria sido a ação policial, a mesma enxergada naturalmente aqui no Atlético x Arsenal na Libertadores de 2013. Os visitantes só aceitaram voltar a campo se a polícia se retirasse do gramado. E o livro reconhece que os brasileiros retomaram a briga: “Brandão, em ação violenta, derrubou Zozaya na metade do campo; abola sobrou para Brito, que avançou com ela ao ataque, sendo acompanhado por Roberto e perseguido por Cherro. O atacante argentino derrubou o meia brasileiro, que ficou estendido no chão, imóvel por alguns segundos. Roberto, tomando as dores do companheiro, partiu para cima de Cherro, que reagiu com socos e pontapés – fato que deu início a mais uma briga generalizada”. Seis minutos depois de outro reinício, acabou o primeiro tempo.
O livro registra visita cordial de Guaita, Sastre, Fazio e Celestino Martínez (futuro jogador do Fluminense) no vestiário brasileiro. Mas o árbitro preocupou-se em alertar a todos antes de apitar o segundo tempo que expulsaria quem começasse novo incidente. E os últimos 45 minutos correram sem maiores polêmicas. Os argentinos fizeram três alterações: o alterado Cherro foi trocado pelo experiente Peucelle no intervalo. Bernabé Ferreyra recebeu nova chance aos 20 minutos, no lugar de Zozaya. E, nos últimos seis, Varallo deu lugar à nova chance de De la Mata (vale dizer que seu filho, também chamado Vicente de la Mata, ganhou as primeiras Libertadores do Independiente, nos anos 60, e eles seriam o primeiro caso de pai & filho na seleção).
Às 00h45 na primeira Copa América a contar com jogos noturnos, começou a prorrogação, “intensa, mas limpa”, conforme o livro. O 0-0 seguiu no primeiro tempo. Com os dois times extenuados a ponto de mal concluírem as jogadas, o fôlego de De la Mata fez a diferença. Aos quatro minutos do segundo tempo, abriu o placar, chutando forte uma bola limpa que sobrou em dividida aérea entre Bernabé Ferreyra, Jaú e o goleiro Jurandir (que jogaria na Argentina por Ferro Carril Oeste e Gimnasia LP). Três minutos depois, o garoto, que só voltaria à seleção seis anos depois, matou o jogo. Recebeu de Peucelle e mesmo entre dois adversários desferiu um chute indefensável, gerando algum protesto por suposto impedimento. Mas nada que os impedisse de reconhecer a derrota.
Jaú, Jurandir, Brandão e Afonsinho chegaram até a se uniram à volta olímpica. E o chefe da delegação brasileira, José Maria Castelo Branco, falou em “vitória merecida” dos argentinos. E Jornal do Brasil ressaltou que “todos os jogadores, sem exceção, são acordes em afirmar o bom acolhimento que tiveram por parte do público argentino. Constantemente receberam demonstrações de simpatia e nos jogos que os brasileiros tomaram parte era comum vê-lo aplaudir calorosamente os melhores lances”. Essa cordialidade na intensidade já não existiria nove anos depois. A Argentina voltou a ser campeã, mas De la Mata despedia-se expulso e AFA e CBD romperam por dez anos. Falamos aqui.
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