75 anos de Ángel Bargas, primeiro jogador que a Argentina usou do futebol europeu
Hoje quase um pré-requisito para se estar no radar da seleção argentina, antes jogar na Europa – e mesmo no Brasil e em tempos valorizados da liga uruguaia – não só mais atrapalhava do que ajudava: havia mesmo uma proibição da Albiceleste chamar quem atuasse no exterior. Isso começou a mudar em 1972, quando Rodolfo Fischer disputou a Taça Independência após transferir-se ao Botafogo. Pouco depois, foi a vez do primeiro “europeu”, que hoje faz 75 anos: o defensor Ángel Hugo Bargas, símbolo da fase áurea do Chacarita e que brilhou na França a ponto de cavar até transferência de dois irmãos menos hábeis àquele país.
Bargas chegou na infância a conviver com Héctor Veira nas peladas pelo bairro de Parque de los Patricios, mas não começou nem no time da zona (o Huracán) e nem no vizinho San Lorenzo – onde Veira chegaria a ídolo máximo: com 15 anos, em 1961, Bargas juntou-se aos juvenis do Racing, cujo time adulto se sagraria campeão argentino daquele ano.
O rápido envelhecimento daquela espinha-dorsal que havia sido campeã também em 1958 somado aos desmandos econômicos que historicamente marcaram o time de Avellaneda levaram a campanhas medíocres nos anos seguintes. Bargas estreou no time principal em 1965, em meio a uma caminhada especialmente deplorável da Academia, que rondava os últimos lugares. A reação da diretoria foi recorrer a um bombeiro: Juan José Pizzuti, antigo artilheiro do time campeão em 1958 e 1961.
Deu tão certo que o Racing saltou para um 6º lugar ao fim da temporada e emendou a partir daquele torneio um recorde profissional de 39 jogos (quebrado apenas pelos 40 do Boca de Carlos Bianchi, em 1999) seguidamente invictos, que embalaram o título de 1966 – cujo elenco logo faturaria em 1967 a Libertadores e o Mundial.
Bargas, porém, esteve longe de vivenciar todo esse processo: Pizzuti lhe baixou o polegar ainda em 1965 e o clube fez uma troca com o Chacarita por Néstor Rambert (tio de Sebastián Rambert, ídolo do Independiente nos anos 90, e futuro primeiro treinador de Sergio Agüero no time vizinho). Em 1970, já consagrado, ele admitiu sobre a vinda ao Chaca que “apesar dos 20 anos que tinha então, cheguei ao clube desesperançoso, sem coração, crendo que o futebol havia acabado para mim. E agora parece que passaram mil anos!”.
Os tricolores estavam habituados aos últimos lugares; até foram beneficiados pela ausência de rebaixamento em 1965 e em 1966, quando foram lanternas. Em 1967, enquanto o Racing dava ao futebol argentino uma primeira conquista mundial, Bargas e seu novo clube passaram a enfim brigar oficialmente para não cair: se salvaram por dois pontos, em um torneio-repescagem que reuniu os seis últimos do Torneio Metropolitano com os quatro primeiros da segunda divisão – os seis primeiros daquele decagonal (o Chaca ficaria em 5º) se classificariam à elite de 1968.
Bargas estava longe de ser um oásis naquele quadro: “nessa época eu era um desastre porque tinha o Racing, unicamente o Racing, metido na mente”. Em 1968, o time de San Martín novamente ficou na rabeira da tabela, mas livrou-se de novo torneio-repescagem. O ano de 1969 veio e de cara o time levou um 7-1 do Lanús… mas emergiu. Com o mesmo grupo fracassado dos outros anos e mesmo recorrendo a três treinadores diferentes, o Chacarita faturou em alto estilo o Metropolitano.
Detalhamos aqui aquela conquista histórica, onde os funebreros eliminaram nas semifinais precisamente o Racing com um agônico gol no finalzinho para então surrarem por 4-1 o River na decisão. Na época, porém, as vagas na Libertadores se limitavam ao campeão e ao vice do Torneio Nacional. Pois bem: o Chacarita não manteve o ímpeto no Nacional de 1969 (foi apenas 7º), mas recobrou força na edição de 1970. Foi líder em seu grupo, mas na semifinal acabou prevalecendo a hierarquia maior do Boca.
Bargas, àquela altura, já recebia os seguintes elogios da revista El Gráfico: “é o protótipo de jogador que se proíbe terminantemente a si mesmo os voleios, os chutões, as rifadas. Sempre acaricia a bola: com a cabeça, com o peito, com o peito do pé, com a sola. As jogadas elegantes, os cabeceios inteligentes que fabrica Don Ángel Hugo Bargas, escultor de monumentos futebolísticos na linha de quatro do Chacarita, já deveriam ter-lhe concedido as chaves da seleção nacional”. A ironia é que o treinador da seleção já era justamente Juan José Pizzuti…
O defensor também era especulado em times maiores e até poderia ter figurado no clube campeão da Libertadores de 1970: “poderia ser o Estudiantes. Já me havia pedido [o treinador Osvaldo] Zubeldía a princípio deste ano, e o passe não se deu nada mais porque o Chacarita pediu 30 milhões. Então ao Estudiantes pareceu muito”.
Apelidado de El Mariscal, ele ainda assim já se via fora do Chacarita: “por mais que a alguém goste imensamente de jogar e até chegue a encontrar certa diversão no profissionalismo, não pode evitar que seus pensamentos se dirijam até o futuro. Por exemplo: sou o segundo de seis irmãos e tenho certa obrigação de pensar em todos eles; então não me compro um carro que usaria exclusivamente eu e compro no lugar um apartamento para todos. Mais ainda: quero comprar uma casa a meus pais e tenho que logra-lo de algum modo. Quando conseguir, algo de mim haverá melhorado, e isso vai se refletir dentro do campo. Unicamente por tal coisa, gostaria de ser transferido”.
O clube de San Martín, porém, ainda pôde desfrutar de seu craque por mais dois anos. E fechou o pódio do Metropolitano de 1971, a quatro pontos do campeão Independiente. Nesse embalo, Bargas, ainda como tricolor, enfim estreou na seleção; foi em 21 de julho, em um 2-2 contra o Chile pelo troféu binacional Copa Carlos Dittborn. Em agosto, o Chaca então aprontou na Europa, no tradicional Troféu Joan Gamper: eliminou nas semifinais ninguém menos que o Bayern Munique, por 2-0, e caiu honrosamente por 1-0 na decisão contra o anfitrião Barcelona.
Foi o canto do cisne da fase áurea da história funebrera. A equipe, que naquela época chegava mesmo a ser vista como potencial candidata a sexto grande do futebol argentino, fez campanhas mornas no Nacional de 1971 (9º), no Metropolitano de 1972 (8º) e no Nacional de 1972 (10º), antes de acostumar-se cada vez mais com a mediocridade de quem viraria participante habitual até mesmo da terceira divisão a partir dos anos 80.
Antes do declínio tricolor ficar tão acentuado, Bargas ainda foi eleito o melhor jogador argentino de 1972. Ele foi o representante argentino em capa da revista El Gráfico dividida com Eusébio, pelo duelo contra Portugal naquela Taça Independência que teve Rodolfo Fischer. E terminou o ano inclusive sondado pela dupla Boca e River, rendendo uma capa com as duas camisas na última edição de 1972 da revista El Gráfico. Mas o destino foi mesmo a Europa na pausa de inverno da temporada 1972-73, em meio a uma nova excursão que o Chacarita fazia por lá. Outros tempos: Bargas precisou ser convencido a aceitar, temendo que tamanha a distância prejudicasse o sustento familiar.
Seu xará Ángel Marcos, capitão e ponta do Chacarita de 1969, já estava desde 1971 no Nantes e indicou o compadre, conforme o beque detalhou já nos anos 2000: “cheguei por recomendação de Marcos, que já jogava lá. Marcos se converteu rapidamente em figura e o pessoal na França o admirava muito. Além disso, nem bem chegamos ao Nantes e a sorte esteve ao nosso lado, porque na temporada 1972-73 fomos campeões. É dizer, com poucos anos de diferença, Marcos e eu fomos companheiros e campeões na Argentina e na França”.
As dezesseis partidas oficiais que Bargas fez pela Argentina como tricolor ainda fazem dele o jogador que a Albiceleste mais vezes aproveitou do Chaca. Já a primeira partida como jogador do Nantes se deu em 14 de fevereiro de 1973, em vitória argentina por 3-2 em plena Munique sobre a Alemanha Ocidental, recém-campeã da Eurocopa e logo futura campeã mundial. O Chacarita não apenas impulsionou o primeiro “europeu” na seleção como também o segundo – caso do goleiro Daniel Carnevali, transferido ao Las Palmas espanhol e aproveitado nessa condição a partir de julho de 1973.
O Nantes não apenas seria o campeão francês de 1972-73 como também vice da Copa da França – e Bargas, eleito o melhor estrangeiro da temporada. A Argentina, em paralelo, se preparava por semanas a fio para obrigatoriamente vencer a Bolívia na altitude de La Paz pelas eliminatórias, com a chamada “seleção fantasma”.
O conjunto estava entrosado com jogadores caseiros, mas o treinador Omar Sívori não deixou de enxertar Bargas no time, que soube vencer La Verde. Em tempos pré-empresariais da FIFA, a AFA temia perder a condição de sede da Copa de 1978 caso não se classificasse para 1974 e não queria dar margens ao azar, pois uma derrota nas alturas para os bolivianos já havia pesado para não se classificarem à de 1970; as eliminatórias sul-americanas ainda eram travadas em triangulares, e adiante a classificação portenha foi carimbada contra o Paraguai.
O curioso é que Sívori, como jogador, fora um entre tantos craques que a seleção abrira mão em Copas do Mundo por estarem fora do país – ignorado em 1958 enquanto brilhava na Juventus, ele iria à Copa de 1962 naturalizado pela Itália junto com Humberto Maschio, outro esquecido no Mundial da Suécia (assim como Rogelio Domínguez, Héctor Rial e Alfredo Di Stéfano, todos do Real Madrid multicampeão europeu, ou Ernesto Grillo, do Milan vice campeão da Liga dos Campeões de 1957-58). Já em 1930 essa política havia custado a participação de Raimundo Orsi (Juventus) e Julio Libonatti (do primeiro Torino campeão italiano) no Mundial do Uruguai.
Como treinador, Sívori deu o troco: a falta de organização da AFA já era manifesta na época e ele pediu o boné tão logo obteve a classificação, desinteressado em seguir no cargo para o Mundial da Alemanha. Bargas também declarou-se desiludido: “fui à seleção com um sonho enorme, mas em 15 dias tinha umas ganas bárbaras de ir embora”, declararia sobre as eliminatórias. Na Copa, assumiu que não atuou bem: “não joguei no meu posto, mas acreditava que podia ser útil à equipe. Agora penso que vou ser mais útil se me tirarem”, declararia na fase de grupos.
Bargas, de fato, atuou inicialmente apenas na estreia, em derrota de 3-2 para a Polônia. Com a humilhação de 4-0 para os holandeses no primeiro jogo da segunda fase de grupos, El Mariscal voltou para os dois compromissos seguintes, sem evitar novas decepções: derrota de 2-1 no clássico contra o Brasil e um 1-1 contra a Alemanha Oriental.
Ele não voltaria à Albiceleste após a Copa, mas seguiu no Nantes até 1979, abrigando mais argentinos no Vale do Loire: Hugo Curioni e Oscar Müller em 1974 e Víctor Trossero em 1978. Os canários voltaram a vencer a Ligue 1 na temporada 1976-77 e ganharam na de 1978-79 a sua primeira Copa da França.
Em paralelo, dois irmãos do lateral apareciam em gigantes argentinos: Héctor Norberto Bargas foi um dos juvenis que representaram o River no jogo do redentor título de 1975, encerrando o pior jejum millonario (dezoito anos). Naquele ano, Eduardo Oscar Bargas ainda figurava no Sportivo Italiano, mas em 1978 passou ao Independiente e ainda defenderia o rival Racing (em 1981) e o Boca (em 1982). Mas apesar desses irmãos vivenciarem quatro dos cinco gigantes argentinos, não lograram maior êxito em nenhum.
Ángel Bargas, por sua vez, seguia carreira na França nos rivais Metz (1979-81) e Racing Strasbourg (1981-84) e então por Le Mans (1984-85) e Bastia (1985-87), até pendurar as chuteiras no Rennes (1987-88). Embora não lograsse os mesmos êxitos de tempos de Nantes, conseguiu cartaz para aqueles dois irmãos nas divisões inferiores francesas: Eduardo e Héctor defenderiam ambos o Le Puy nos anos 80. Eduardo também esteve no Angouleme e Héctor, no Louhans-Cuiseaux e no Chatellerault. O irmão mais ilustre, como não poderia deixar de ser, foi eleito pelo Futebol Portenho para o time dos sonhos do Chacarita, em 2016, no aniversário de 110 anos de história funebrera.
Pingback: 55 anos de 66 - o título argentino que iniciou a conquista mundial do Racing
Pingback: França, mais que o primeiro adversário da Argentina na história das Copas
Pingback: 25 anos da última transferência direta entre Boca e River: Sebastián Rambert