Em 20 de novembro de 1982, o San Lorenzo fez seu último jogo na segunda divisão. Nenhum azulgrana ligou ter sido derrotado por 1-0 para o Banfield: o acesso do primeiro gigante argentino rebaixado (um ano antes) se consumara na antepenúltima rodada. Aos 24 minutos do segundo tempo, a partida acabou devido à invasão festiva de campo. Mas o técnico erguido pela torcida cuerva não foi José Yudica, que trabalhara no acesso. Foi o técnico adversário: Héctor Rodolfo Veira. Um carisma em pessoa a ponto de ser oficialmente eleito o maior ídolo do clube, por ocasião do centenário em 2008, mesmo tendo ganho como jogador só um título (e como reserva) e ter jogado e se declarado torcedor do rival Huracán. Também treinou o River vencedor pela primeira vez da Libertadores e do Mundial e ainda teve um semestre interessante no Boca. Hora de relembrar El Bambino.
Nascido em 29 de maio de 1946, ganhou o apelido em turnê com o San Lorenzo pela Itália, em 1961; lembraria o astro do Milan, Gianni Rivera, conhecido da mesma forma. A estreia competitiva, porém, só se daria em 1963. Estava no clube desde os doze anos. Até se profissionalizar aos 17, foi entregador de gelo (foi por uma geladeira que os pais do craque concordaram que ele fosse ao Sanloré), carpinteiro, encadernador, atendente de farmácia e outros bicos para complementar a renda de sua família, residente no operário bairro de Parque de los Patricios. Reduto justamente do rival Huracán.
No passado, quando virou a casaca, um rancoroso Veira se declarou sempre ter sido huracanense – confira o vídeo aqui. Mudou de versão em 2013, em entrevista à revista El Gráfico. Essa própria entrevista, aliás, é outro demonstrativo de sua popularidade. Foi para a edição do 94º aniversário da revista, que meses antes promovera votação entre leitores para escolher quem seria o entrevistado. Veira ganhou, dentre outros, sobre outros dois grandes ídolos do clube do bairro de Boedo: o uruguaio Sebastián “Loco” Abreu e o maior artilheiro sanlorencista, José Sanfilippo. O título da nota? A declaração “muitas vezes ia do motel ao treino”…
Sobre a maior rivalidade de bairro do mundo, Veira disse na entrevista que “os garotos do bar da [esquina] Chiclana e Deán Funes nos juntávamos para ver o Huracán e o San Lorenzo quando jogavam de mandante, um domingo cada um, porque não havia grana para viajar. Na infância não estávamos tão definidos. (…) Antes, era diferente. Eu metia o gol do San Lorenzo no clássico e à noite ia jogar bilhar na sede do Huracán (…). Na mesma noite da partida! E não acontecia nada”.
“A canhota mais deliciosa que existiu em Boedo”, como definido no perfil de Veira no Diccionario Azulgrana (apenas o ídolo máximo mereceu quatro páginas nesse livro), foi o líder de Los Carasucias, como ficou conhecido o jovem quinteto ofensivo promovido no início dos anos 60 no San Lorenzo: Narciso Doval, Fernando Areán (posteriormente auxiliar técnico do Bambino), Veira, Victorio Casa e Roberto Telch. Eram uma espécie de Meninos da Vila local, um pouco mais irresponsáveis. Faziam diabruras, encantavam, mas não chegavam aos títulos. O meia-esquerda Veira os personificou.
O Bambino não fumava nem bebia, mas, boêmio, dormia pouco. Em 1998, um dos expoentes do Boca, Diego Latorre, foi embora disparando que o clube era “um cabaré”. Veira, então técnico auriazul, soltou: “Latorre fala de cabaré, mas o que ele conhece é na verdade uma quermesse”. A vida noturna (ele jura ter sido o responsável por importar os primeiros discos dos Beatles tocados na Argentina), contudo, atrofiara uma carreira promissora, de quem aos 18 anos se tornou o mais jovem artilheiro do campeonato argentino até então (quem o superou? Maradona), em 1964, com 17 gols em 22 partidas.
Veira havia se profissionalizado no ano anterior. Em 1963, marcou só dois gols, no 2-2 com o Banfield já pela 24ª rodada – a estreia profissional de Bambi havia sido na rodada anterior, no 3-0 no Vélez – e na polêmica rodada final: abriu 1-0 sobre o Independiente, que lutava pelo título, mas foi lesionado pelo duro marcador Rubén Navarro. Contra uma arbitragem tendenciosa ao Rojo, os sanlorencistas em dado momento pararam de jogar e foram goleados por 9-1, com direito a um gol contra intencional para fechar o placar. Falamos aqui. A vingança pessoal veio naquele brilhante 1964, quando fez cinco gols no time de Avellaneda, todos os da vitória por 3-1 no primeiro turno – segundo ele, seu dia mais feliz como jogador – e os do empate em 2-2 no returno. Também marcou pela primeira vez no clássico com o Huracán, em um 3-0.
Em 1965, ele enfim estreou pela seleção, no 4-1 sobre a Bolívia pelas eliminatórias. Mas foi também o ano em que começou a apresentar precoces problemas físicos; uma lesão inoportuna no joelho e a alta concorrência no setor também lhe limitaram a raríssimas aparições pela Albiceleste, deixando de ir à Copa de 1966; se recuperara tarde demais para embarcar à Inglaterra, pois terminara a temporada como vice-artilheiro da liga argentina (18 gols).
Oficialmente, El Bambino acabou atuando só uma outra vez pela Argentina, também contra os bolivianos, já pela Copa América de 1967 (1-0). Ainda esteve em campo em dois amistosos não-oficiais na virada de 1966 para 1967, contra o Nacional – o clube uruguaio venceu por 2-0, em 29 de dezembro – e a seleção provincial de Mendoza, em 6 de janeiro, marcando nos 2-1 o seu único gol por seu país, ao abrir o placar.
Embora reserva na Copa América, seus lampejos bastavam para render proposta do Real Madrid – o Independiente, aliás, parecia ser seu carrasco predileto, vazando-o seguidamente em 1965, 1966 (dois em vitória por 2-1 fora de casa) e 1968. Seguia deixando os deles também no clássico de bairro, amargando o Huracán três vezes só em 1966 (no 2-1 e dois em um 4-1). Sua maior exibição, contudo, foi contra o Boca, em 1967: com menos de meia hora de partida, fez todos os do 4-0.
Veira estava paralelamente servindo ao exército na época e, mais responsável, chegou a assumir a braçadeira de capitão azulgrana; foi desse período sua foto utilizada na imagem que abre essa matéria, a capa em que ele foi o personagem principal na edição especial em que a revista El Gráfico elegeu os cem maiores ídolos sanlorencistas em 2011. Já para aquela mesma El Gráfico naquele 1967, ele desabafava nas palavras (“sou veterano com 21 anos?” foi o título de uma reportagem sobre si) e no campo: foi vice-artilheiro do elenco no Metropolitano e artilheiro no Nacional.
Mas a ida ao gigante espanhol não se concretizou, mas sob o prisma de outros tempos: “a torcida está no clube pedindo que não vás, não podes ir”, sentenciou seu pai. Mas o corpo mal cuidado já parecia mesmo cansado quando Los Carasucias enfim foram campeões, no Metropolitano de 1968, virando Los Matadores – o primeiro elenco campeão profissional de forma invicta na Argentina. Veira jogou só quatro vezes na campanha (retratada aqui), sem marcar. Ainda deu lampejos naquele ano: fez quatro gols em seis jogos no Nacional de 1968. Depois, foi vice-artilheiro azulgrana no Metropolitano de 1969. Inclusive, começou 1969 marcando gol no lendário Lev Yashin, em derrota de 3-1 para o Dínamo Moscou em torneio amistoso no Chile… e o terminou fraturando uma perna.
Acabou negociando com o Huracán e ficou no rival de 1970 a 1971, com desempenho bom em um time de resultados irregulares que chegou até a brigar para não cair em 1970: 47 jogos, 22 gols, dois deles em um 9-0 no Colón, partida que ainda é a maior goleada profissional do Huracán. Apesar da gigantesca ligação com o San Lorenzo, foi incluso nos cem maiores ídolos huracanenses no livro que o Clarín fez para o centenário do Globo, também em 2008. Convencera Narciso Doval, companheiro de Carasucias, a também virar a casaca, em 1971, quando El Loco foi emprestado pelo Flamengo ao clube de Parque de los Patricios.
Mas a dupla não causou o mesmo furor do lado rival; Doval faria apenas dois golzinhos como quemero enquanto Veira, ainda naquele 1971, foi jogar pelo Santos Laguna no futebol mexicano, onde sua anedota mais famosa foi ter sido figurante em um dos faroestes de John Wayne. Em 1973, teve uma rápida volta ao San Lorenzo, no Nacional. O time chegou ao quadrangular final, mas só com dois gols do ídolo. Ironia: em 1972 e em 1974, o ex-clube foi campeão sem ele, assim como em 1973 a taça ficaria justamente com o Huracán – após 45 anos.
Decadente, passou pelo Banfield em 1974 (chegou a marcar quatro gols no All Boys), teve estadia relâmpago no Sevilla (não se entendeu com o técnico Ernst Happel) e negociou com o Palmeiras em 1976. Após dois amistosos dele como palmeirense na pré-temporada, o presidente alvinegro Vicente Matheus atravessou a negociação ainda não concluída do arquirrival e trouxe o argentino ao Corinthians, que só naquela década passara a importar estrangeiros (todos os corintianos forasteiros anteriores haviam crescido no Brasil). Naquela entrevista à El Gráfico, Veira definiu o campeonato paulista como “bravo” e que a cada duas semanas visitava Doval no Rio de Janeiro; resmungou que teria se adaptado melhor se jogasse no futebol carioca.
Seu maior momento no Timão foi entrar faltando dez minutos contra o Operário-MS (então MT). Deu uma assistência para o terceiro gol em vitória por 3-1, vital para a classificação por um ponto sobre o próprio Operário – pelo regulamento, a vitória valia dois pontos, mas valeria três se fosse por pelo menos dois gols de diferença. Veira, porém, não se firmou, e viu do banco o Corinthians ser vice nacional. Saiu em 1977, um pouco antes do redentor Estadual daquele ano.
Rodou por Guatemala, Bolívia e Chile até voltar ao San Lorenzo em 1980, dessa vez na comissão técnica. A estreia como treinador veio ali, substituindo interinamente o adoentado Carmelo Faraone. Foi efetivado em Boedo em 1983, não só por aquela curiosa anedota contra o Banfield mas porque quase promovera o Taladro à elite junto (os alviverdes caíram nas semifinais da repescagem). Viria a ser, de longe, o técnico com mais partidas no clube de Boedo: 385, contra as 221 do segundo, José Barreiro.
O San Lorenzo não tinha casa própria desde 1979 e até então era o único grande rebaixado, mas sob o velho ídolo um pouco do prestígio foi revivido: quase emendou o título da segundona com o da elite, um raríssimo bicampeonato que foi evitado pela falta de um ponto a menos que o Independiente. No torneio seguinte, levou o Ciclón às semifinais do Nacional de 1984. Cartaz que seduziu os cartolas do River, que contrataram Veira. O Millo não ganhava nada desde 1981 e havia sido humilhado na final nacional de 1984, levando em casa de 3-0 do Ferro Carril Oeste.
Após algumas cabeçadas (4º lugar no Metropolitano de 1984, eliminação no penúltimo degrau do Nacional de 1985), o time enfim foi campeão, na temporada 1985-86. E de forma arrasadora, a cinco rodadas do fim. Mesmo vendendo Enzo Francescoli, a equipe de Veira venceria adiante a Libertadores e o Mundial. Em alto estilo, tornando-se o primeiro clube argentino a conseguir a tríplice coroa em um mesmo ano, o River vencia essas torneios internacionais pela primeira vez, com contratações certeiras de Veira: Juan Funes (que, com distensão, não queria jogar mas foi convencido pelo treinador como elemento psicológico importante, pois havia triunfado no futebol colombiano do oponente América de Cali: falamos aqui) fez os gols da conquista sul-americana e Antonio Alzamendi, o do mundial.
O estilo de Veira era definido pelo próprio como um paradoxal “contra-ataque ofensivo”: “se saio desde abaixo com um contra-ataque e a defesa fica parada atrás, não é útil: deve ir diminuir espaços no meio-campo”, definiu. O estilo era fulminante, pressionando no meio e buscando em poucos toques o ataque. Venceu quase todos os jogos de visitante na Libertadores. Veira, porém, foi mandado embora em 1987. “Estava na Itália, passando a lua de mel que não havia tido antes, e um jornalista me deu a notícia: o River não ia renovar meu contrato. Senti uma dor muito grande: creio que merecia que, ao menos, me houvessem dito os dirigentes pessoalmente”.
O presidente riverplatense Hugo Santilli preferiu trazer Carlos Griguol daquele Ferro Carril Oeste, de estilo menos vistoso mas bastante eficiente e semelhante ao adotado com sucesso pela seleção com Carlos Bilardo. El Bambino voltou ao San Lorenzo em um turbilhão: foi acusado naquele mesmo ano de violentar um menor travesti. Absolvido em primeira instância por falta de provas, levou o Ciclón ao vice-campeonato e, após quinze anos, classificação à Libertadores.
Estruturalmente, o Sanloré estava em uma pindaíba resistida estoicamente por jogadores e comissão, rendendo o apelido de Los Camboyanos para aquele elenco. Naquela etapa, o goleiro era José Luis Chilavert e foi Veira o primeiro treinador a autorizar o paraguaio a cobrar uma falta (por sinal, contra o Banfield: veja). Mesmo sem Chila, logo vendido à Europa, aquele time chegou às semifinais da Libertadores de 1988, o mais longe alcançado até o título em 2014. “Um motivador bárbaro. Eu estava com 40 graus de febre e ele me dizia que tinha que jogar. Te esquecias de tudo”, declarou o volante Blas Giunta sobre o técnico.
Mas aquele equipe aos poucos se desmanchou e Veira renunciou em 1990. Passou por Vélez (foi quem fez Omar Asad, autor dos gols dos títulos da Libertadores e Mundial em 1994, treinar pela primeira vez entre os profissionais) e Cádiz até ser preso em 4 de outubro 1991 por aquela acusação de estupro. Sempre se declarou inocente e que a vítima estaria instruída pelos pais para extorqui-lo. Oito dias depois da prisão, perdeu o amigo Doval – outro grande companheiro, o pugilista Ringo Bonavena, falecera enquanto o Bambino jogava no Corinthians.
Em setembro de 1992, Veira foi contemplado com liberdade condicional (“sempre soube que era inocente. Quando saí em liberdade, fui caminhar pela rua Florida. E a reação das pessoas me fez saber que não estava equivocado”) e teve as portas novamente abertas no San Lorenzo. Para ele, a reestreia vencendo e calando as vaias do Independiente pressionou-lhe mais que o Mundial com o River. Salvo a segundona de 1982, a taça anterior havia sido em 1974. Gradualmente, uma nova se aproximava: 4º em 1992, vice em 1994 e enfim título em 1995, em uma das retas finais mais emocionantes da Argentina. Foi ali, talvez, que Veira se sedimentou de vez como ídolo-mor azulgrana.
Detalhamos aqui que o San Lorenzo dependia de combinação de resultados para tirar uma taça praticamente ganha pelo Gimnasia LP dos gêmeos Barros Schelotto. O treinador convocou a massa a invadir Rosario e 30 mil obedeceram nas tribunas do Gigante de Arroyito, vendo o gol do título sair nos últimos quinze minutos. A El Gráfico não teve dúvidas para a capa pós-título: o pranto de um emocionado Bambino: “perdi quatro campeonatos por um ponto, e esse o ganhei por um ponto. Alguma vez tinha que dar!”.
Em 1996, o forte elenco cuervo ficou nas quartas-de-final da Libertadores para o campeão River, quase eliminado no fim. Sentindo um fim de ciclo, o técnico renunciou pouco depois. Em alguns meses, foi anunciado no Boca. Fez um grande trabalho no Apertura 1997, quando os xeneizes perderam só uma partida e tiveram a melhor campanha de um vice-campeão de torneios curtos. Mostramos que só sete dos 46 campeões desses torneios de um semestre, vigentes entre 1991 e 2014, conseguiram pontuar mais – no caso, o River, que perdera em casa o Superclásico. Veira, aliás, participou dez vezes do maior clássico argentino. Só perdeu um. O Bambino quase se igualou a Alfredo Di Stéfano como único técnico campeão na dupla principal (e iria além, pois vencera também no San Lorenzo). Sob o comando dele, o Boca contratou a base futuramente campeã sob Carlos Bianchi: Córdoba, Bermúdez, Samuel, Serna, Palermo e os gêmeos Barros Schelotto.
Faltou aproveitar melhor Riquelme, escalado de volante; naquela entrevista à El Gráfico, justificou que sacrificou-o para não tirar Maradona, Palermo, Schelotto e Latorre (ainda havia Caniggia, por sinal promovido por ele no River em 1986) da linha ofensiva. O elenco boquense, porém, ficou à deriva no início de 1998 e Veira saiu. Desde então, ele teve passos pela seleção boliviana em 1999, Lanús, Newell’s, Quilmes e um último regresso ao San Lorenzo, entre 2004-05. Pena que o aniversário tão redondo ficou incompleto ontem: seu San Lorenzo foi goleado na final do campeonato argentino, por sinal, para o arquirrival banfileño, o Lanús. A alegria, de toda forma, jamais superaria a daquele 25 de junho de 1995. Talvez o melhor registro do amor mútuo do Bambino e do Ciclón seja o lance do gol daquele título. São menos de dois minutos – veja-o e tente não se emocionar junto:
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