Os chamativos vice-campeonatos que tanto marcaram o Héctor Raúl Cúper treinador podem afastar a metáfora do “toque de Midas”. Mas se a literalidade não pôde se aplicar em duas finais de Liga dos Campeões, na Serie A ou na Copa Africana de Nações, até os detratores reconhecem: o argentino sempre soube elevar (e muito) o patamar de times menores ou de gigantes adormecidos. Ontem completou 65 anos um mestre que já teve seus títulos sim senhor. História que merece destacar especialmente as partes menos conhecidas, no futebol argentino, o mesmo que há 23 anos está desfalcado desse personagem.
Nascido no interior santafesino em Chabás, seu sobrenome incomum é uma corruptela à ortografia castelhana da pronúncia do sobrenome inglês Cooper, herdado de antepassados irlandeses. Ao menos é um esclarecimento feito pelo The Guardian em 2017 ainda ausente na publicação, em 2010, do livro Quién es Quién en la Selección Argentina – que, por outro lado, deixou essa sucinta descrição sobre o ex-zagueiro: “era um defensor de muita firmeza, não veemente, mas seguro, capaz no jogo aéreo, sobretudo em sua própria área. Mas sua principal virtude era a ordem tática que tinha: um verdadeiro treinador dentro do campo de jogo, o que se aprofundou com o passar dos anos. Por isso não estranhou-se que, uma vez aposentado, se dedicasse à direção técnica”.
Eis, enfim, os capítulos de Cúper no futebol argentino:
No auge do Ferro Carril Oeste
Cúper foi profissionalizado pelo Ferro Carril Oeste, estreando no time adulto em 7 de março de 1976 para o primeiro dos 463 jogos oficiais que o livro Ferro 100 Años atribuiu-lhe. A equipe, como estava rotineiro, brigou para não cair no Metropolitano. E, ainda que tenha melhorado sensivelmente no Torneio Nacional (em 3º na chave), não escapou da degola em 1977, onde só foi vencer a partir da 12ª rodada. Cúper, ainda assim, interessou ao Independiente Rivadavia para a disputa do Torneio Nacional daquele ano, reforçando pontualmente o clube de Mendoza – que fez bonito, diga-se, dividindo a pontuação de 2º lugar no Grupo A com o gigante San Lorenzo, embora a vaga única nos mata-matas só coubesse ao líder Newell’s. Foi pelos mendoncinos, inclusive, que o zagueiro sentiu o gosto do gol pelas primeiras duas vezes, vazando Gimnasia LP e o próprio Newell’s.
A estadia verdolaga na Primera B durou somente um ano. Mas embora a estatística aponte somente três derrotas na segundona de 1978, a campanha foi mais emocionante na prática. Em uma das derrotas, na 23ª rodada (para o Nueva Chicago), os cartolas preferiram demitir o técnico Ricardo Trigili. Carmelo Faraone assumiu para conduzir a caçada ao líder Almirante Brown para os onze jogos restantes e fez-se o milagre; cinco vitórias e dois empates colocaram o FCO a dois pontos dos aurinegros a quatro rodadas do fim, quando então venceram fora de casa o confronto direto. Novas vitórias seguidas, contra Almagro e Los Andes, asseguraram então o título ainda na penúltima rodada. Cúper, presente em 27 jogos e até três gols marcados, já estava firmado entre os titulares.
O Ferro reapareceu na elite no Metropolitano de 1979 com uma campanha segura (seis vitórias, sete empates, cinco derrotas) contra nova queda antes de novo 3º lugar no Torneio Nacional. A tônica foi similar para 1980, com o 11º no Metro sendo sucedido por outro 3º lugar no Nacional. O treinador Mario Griguol chegou e, como uma raposa resultadista como autêntico discípulo de um mestre que vitaminava equipes pequenas feito Victorio Spinetto, soube elevar o patamar daquele elenco. Em 1981, o clube, que nunca havia chegado a um vice-campeonato sequer na primeira divisão, foi vice dos dois torneios anuais – e para o Boca de Maradona (e por um mísero ponto) e para o River de Kempes, nada mais. Corrida embalada por um recorde ainda vigente no campeonato argentino de jogos sem tomar gols, mais de mil minutos em que o goleiro Carlos Barisio personificou uma fama de todo o sólido setor defensivo verdolaga, antes do gostinho de eliminar nas semifinais do Nacional o rival Vélez nos Clásicos del Oeste mais expressivos.
Presságio do inédito título que não escapou na competição seguinte, com o bairro de Caballito, mesmo desfalcado do ídolo brasileiro Rodrigues Neto, festejando em 1982 o Torneio Nacional, que passara ao primeiro semestre. E de modo invicto, algo só logrado por duas vezes em cinquenta anos de profissionalismo no futebol argentino. Ficou a fama de um jogo chato de assistir, embora muito se deva ao inconformismo da torcida dos cinco grandes contra aquele elenco onde tanto Cúper como sua dupla Juan Rocchia armavam jogo desde a zaga ao invés de se resumirem a chutões ou à cera – e reforçavam o perigo ofensivo na bola parada, aproveitando a boa impulsão para converterem alguns golzinhos de cabeça ou contribuírem como pivôs aos atacantes “de ofício”.
Em contrapartida, a marcação começava pelos próprios atacantes, com Cúper sendo apontado como o jogador da linha que menos precisava correr em campo: ele dava as ordens de posicionamento aos colegas mais avançados e ficava como uma barreira final antes do goleiro. Os tais “chatos do Ferro” respondiam com um 4-0 no clássico com o Vélez (com gol de Cúper), um 4-0 no Independiente e oito gols somados, incluindo um cabezazo de Cúper, no forte Talleres da época (4-0 em casa e 4-4 em Córdoba, pelas semifinais). O zagueiro esteve em todas as 22 partidas da campanha, registrando ainda aqueles dois gols.
Em 1983, Cúper viveu a curiosa situação de ser o artilheiro do seu elenco em algum torneio, registrando quatro gols no Nacional – o time caiu já no primeiro mata-mata e também morreu na fase de grupos de sua primeira Libertadores (tempos em que só o líder avançava, posição que ficou com o Estudiantes), mas disputou a taça do Metropolitano até a rodada final, distando a dois pontos do campeão Independiente. Nesse embalo foi que ele fez seus únicos jogos pela seleção argentina: a passagem pela Albiceleste se resumiria a doze dias de janeiro de 1984, na Copa Nehru, duelando na indiana Calcutá contra Romênia (1-0), a seleção da casa (1-0), Polônia (1-1, quando quatro jogadores do Ferro atuaram juntos pela Argentina, recorde histórico), China (derrota de 1-0) e Hungria (3-0). Ficou nisso. A zebraça contra os chineses parece ter pesado e o zagueiro não foi mais usado por Carlos Bilardo.
Mas o consolo viria imediatamente. Em 1984, o time de Caballito, mesmo desfalcado dessa vez do aposentado Gerónimo Saccardi (talvez o ídolo máximo de sua história), voltou a erguer o Nacional, superando inclusive por nove anos o número de títulos do rival Vélez. Esfarelou as críticas ao “jogo chato” ao impor dentro do Monumental um 3-0 sobre o River – nos primeiros 35 minutos, em recital regido pelo craque Alberto Márcico. Mesmo com contrato vencido sem um acerto de renovação, e sem integrar a pré-temporada por conta da seleção, Cúper liderou o número de partidas da campanha (14, com um gol) e por bem pouco não foi bicampeão no mesmo ano: o Ferro disputou o Metropolitano até a rodada final com o Argentinos Jrs. Os colorados seriam o asa-negra também na Libertadores de 1985, assegurando em jogo-extra a única vaga na segunda fase após a dupla argentina dividir a liderança, prevalecendo sobre Vasco e Fluminense.
Em paralelo, o Ferro ainda fez papel digno no Torneio Nacional de 1985, onde só perdeu duas vezes, e no campeonato “europeu” implantado pela AFA com a temporada 1985-86: foi 6º lugar, posição repetida na temporada 1986-87. Em ambas, o time também avançou até as semifinais da liguilla pre-Libertadores. Mas a saída de Griguol para o River fez-se sentir no campeonato de 1987-88, com os verdolagas despencando para 14º e piorando no de 1988-89, embora fossem em paralelo premiados até pela UNESCO diante do sucesso poliesportivo. Mas no futebol já viravam os antepenúltimos, com Cúper permanecendo somente na metade inicial da péssima campanha. Ainda em 27 de janeiro de 1989, ele estreava pelo Huracán, reforçando-o junto com Oscar Garré, o único representante verdolaga na seleção de 1986.
Desatolando o Huracán
O Globito vinha na contramão histórica do Ferro, que era um time pequeno a ascender nos anos 80 enquanto o conjunto do bairro de Parque de los Patricios era um gigante cada vez mais adormecido, rebaixado pela primeira vez em 1986 sem que conseguisse voltar de imediato à elite. Cúper foi pé-quente na estreia como quemero, um 2-0 no Tigre, mas o acesso ainda bateria na trave na temporada 1988-89 da Primera B. Na temporada regular, o Huracán ficou em 5º, caindo diante do Colón no segundo mata-mata pela segunda vaga de acesso. Para a da 1989-90, não houve margens para os mata-matas: La Quema garantiu antecipadamente um título quase sem concorrentes, terminando sete pontos acima do segundo colocado (o Quilmes), quando vitórias ainda valiam dois pontos e não três.
Mesmo já veterano, Cúper era a grande referência do plantel junto ao treinador Carlos Babington e ao artilheiro Antonio Mohamed. E estendeu a carreira por mais duas temporadas, com o Globo inicialmente focado em criar gordura contra o promedio para evitar nova queda e se contentando com campanhas de meio de tabela; a melhor foi um 5º lugar no Apertura 1992, já na temporada final do Cúper jogador. Ele seguiu em Parque Patricios e foi promovido a técnico em 11 de dezembro de 1993, substituindo Enzo Trossero. O Platense sapecou um 5-0 que parecia um presságio dos piores para a nova carreira. Mas dali até o fim daquele Apertura 1993, só finalizado já em março de 1994, os ex-colegas e agora comandados não voltaram a perder. Para ele, a receita era simples: “é preciso marcar os 11 quando se perde a bola, e jogar os 11 quando a recuperamos. Isso sim, sempre em zona. Sou um fanático desse sistema de marcação”.
O Clausura 1994 começou sem que o Huracán de Cúper empolgasse, chegando a ocupar a 15ª colocação antes de uma recuperação espetacular alçar voo ao Globo. Com direito a um 2-1 no clássico com o San Lorenzo, em um mês um elenco operário, sem maiores revelações duradouras, já liderava o certame junto a Independiente, Banfield e Belgrano. O treinador buscava conter empolgações: “devemos manter a cabeça fria. Falar agora de ganhar o campeonato é prematuro”, declarou ao fim da 13ª rodada, antes do torneio se paralisar em função da Copa do Mundo. A pausa não conteve o embalo e o time soube chegar à rodada final como líder isolado, mas calhando de realizar nela o confronto direto fora de casa contra o Independiente, um ponto atrás.
Desde o vice no Metropolitano de 1976, quando Cúper começava a carreira de jogador, dezoito anos antes, os quemeros não disputavam para valer um campeonato. E desde aquele Clausura 1994, só no Clausura de 2009 viria outra campanha no páreo pela taça. Em 1994, o Independiente, que tinha no gol e no cargo de técnico dois torcedores do Huracán (respectivamente Luis Islas e Miguel Brindisi, antigo emblema setentista do clube) não deu chances e surrou por 4-0. “Um dos dois tinha que ganhar e ganhou o melhor”, resignou-se Cúper, em deferência ao timaço oponente que dali a três meses ergueria também a Supercopa.
O anticlímax ante tanta expectativa foi grande demais e o time despencou para 14º no Apertura 1994 e para penúltimo no Clausura 1995 – precisando ainda ver o rival San Lorenzo encerrar ali um jejum similar na primeira divisão (eram 21 anos dos azulgranas contra 22 anos de estiagem huracanense, não resolvida até hoje). Cúper precisou descer degraus e foi a um ambiente sem pressões, ainda que longe da infra-estrutura de boa fama moderna: o Lanús, após passar até pela terceirona nos anos 80, vinha buscando se sedimentar na elite após um início io-iô na década noventista.
Lanús, a Cúperativa, o infinto e aquém
O resto é a história mais conhecida internacionalmente. Pois foi exatamente a partir do trabalho nos grenás que Cúper criou fama para além do futebol argentino. Sem as pressões do Huracán, elevou o patamar de outro elenco operário (onde só o goleirão Carlos Roa ganharia maior reconhecimento): o Granate virou a Cúperativa ao inicialmente chegar ao 3º lugar do Apertura 1995, com a mesma pontuação do vice Racing, e repetir o pódio nos dois torneios argentinos seguintes.
3º colocado no Clausura 1996, o Lanús voltou a ter a mesma pontuação do vice no Apertura seguinte enquanto em paralelo avançava pela América. Bolívar e Guaraní foram abatidos sem maiores sustos antes de as semifinais da Copa Conmebol reservarem duelos caseiros contra o próprio detentor do título, o Rosario Central – cujo Gigante de Arroyito fervera o Atlético Mineiro, surrado por 4-0 na final de 1995. O mesmo palco, contudo, viu festa visitante por 3-1 em 1996. Noite mais categórica da conquista da Copa Conmebol, assegurada em plena Bogotá contra o Santa Fe.
Levar para La Fortaleza um título continental antes mesmo do primeiro título argentino lanusense (que tardaria até 2007) era o chamariz necessário para um convite europeu, ainda que de um nanico feito o Real Mallorca. Cúper deixou no Lanús a base para que os ex-pupilos, já sob Oscar Garré, chegassem em 1997 a nova final seguida de Copa Conmebol, mas não se furtou de semestre a semestre povoar as Baleares com velhos comandados. Roa, o armador Ariel Ibagaza, o volante Gustavo Siviero e os atacantes Oscar Mena e Ariel López iriam todos para o arquipélago, que já na temporada 1997-98 celebrava sua melhor temporada – um 5º lugar em La Liga, colocação mais alta que os insulares já haviam alcançado, e vice na Copa do Rei para o Barcelona.
Roa pegou pênaltis de Rivaldo e Figo, mas não impediu o dissabor. A dobradinha dos catalães, vencedores também do campeonato, não inviabilizou a realização da Supercopa da Espanha, a marcar um reencontro deles com o Mallorca. Dessa vez, deu Cúper, com vitórias tanto nas ilhas como no Camp Nou. E, herdando do Barça a vaga na Recopa Europeia de 1998-99, aquele elenco recheado de argentinos iria longe. E, após despacharem o Chelsea nas semifinais, só outros argentinos foram capazes de brecar a Cúperativa: os da Lazio, ainda assim campeã somente a dez minutos do fim. Caindo para cima, o treinador terminou a temporada requisitado pelo Valencia.
Na frente dos Ches, Cúper conseguiu na abertura da temporada 1999-2000 um novo título na Supercopa da Espanha contra o Barcelona, em outro plantel marcado pela panelinha argentina. Contra o Real Madrid é que não foi possível ser páreo, mas já em uma inédita decisão da Liga dos Campeões para os Morcegos. Que, sob aquele treinador, seriam capazes de voltar à mesma decisão já na temporada seguinte. O problema foi perdê-la para o Bayern Munique. Nada que impedisse que Cúper acabasse subindo mais um degrau, requisitado pela Internazionale.
Foi em Milão, porém, que a sina de vice pareceu impregnar-se de vez em uma carreira promissora. Em jejum na Serie A desde 1989, a Inter parecia resolver a sina naquela temporada, liderando a maior parte do torneio embora precisasse conviver com a recuperação do astro Ronaldo. Sem confiar que o Fenômeno estivesse já na plenitude, o argentino não arriscou tanto e acabaria levando a pior. Derrotado na rodada final, viu o scudetto ir de bandeja para a arquirrival Juventus enquanto a Roma também ultrapassava os milaneses – e o brasileiro reforçar os questionamentos ao treinador após a estupenda Copa do Mundo e sentir-se moralizado para exigir ao presidente Moratti e saída do desafeto.
Na quebra de braço, o argentino venceu. Mas a temporada pós-Copa foi a última em que ele teve um trabalho de relevo, mesmo com Ronaldo de malas para o Real Madrid. Vice da Serie A, mas agora a distante sete pontos da Juventus, a praia que os nerazzurri morreram na margem já foi a da Liga dos Campeões. O desgosto foi ainda maior em ver o troféu ser decidida pelos rivais Juventus e Milan, que classificou-se no clássico milanês pelas semifinais graças ao regulamento (foram dois empates no San Siro, mas com a igualdade com gols ocorrendo sob mando interista).
Cúper acabou sacado ainda nos primeiros meses da temporada 2003-04, voltando a um Mallorca de portas abertas ao ídolo, mas sem conseguir engrenar no retorno às Baleares e seguindo a carreira por equipes menores, alterando-se entre novos vices (com o Aris na Copa da Grécia) e até um rebaixamento (sendo um dos técnicos do malfadado Parma de 2008-09) antes de recuperar a imagem treinando o Egito – conseguindo tanto devolver os Faraós à Copa do Mundo após quase trinta anos como também amargar um enésimo vice-campeonato, na Copa Africana de Nações de 2017. O último trabalho foi com o Uzbequistão na caminhada para a Copa de 2022, mas uma derrota para a Palestina o tirou do cargo ainda em 2019.
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