65 anos de Jorge Valdano, o “Filósofo” da Copa 1986
As três finais seguidas de Copa do Mundo entre 1994 e 2002, em contraste com seguidas decepções da Argentina, e os triunfos com cada dose de epopeia sobre a Albiceleste na Copa América de 2004 e na Copa das Confederações de 2005 pareceram reforçar um certo bairrismo na imprensa brasileira naqueles tempos. A Copa de 1986 teria sido erguida por um Maradona Futebol Clube. Mas, no embalo da Copa de 2006, ao menos a Placar soube reconhecer, em edição especial onde escolhia os cem maiores jogadores do torneio, que havia no mínimo mais um talento no bi argentino. Não era Passarella, ausente de todos os jogos embora convocado, e sim Jorge Alberto Valdano Castellano, o outro nome argentino incluído na eleição. Até seu apelido de El Filósofo era destacado no perfil. Mas ele merece mais lembranças no dia em que faz 65 anos.
Valdano precisou de virar desde cedo, pois aos quatro anos perdeu o pai. “Tive muita necessidade dele aos 16, uma época em que jogava sem referências, não no futebol e sim na vida”, declararia à El Gráfico em 2001. Houve tempo apenas para herdar dele a paixão pelo Racing, embora a residência no interior da província de Santa Fe complicasse uma interação maior: “a primeira vez que o vi ao vivo foi dentro de campo, jogando, porque vivia a 400 quilômetros de Buenos Aires e era um luxo que não podia me dar”, explicou na mesma entrevista. “Se algo recordo de um modo particular da minha infância é o gol de Cárdenas [que rendeu o título mundial à Academia, em 1967), o vi em meu povoado, na casa de um vizinho: tinha que ter muita boa vontade para ver essa bola entrar, na realidade soava o rádio e nós gritávamos diante da televisão”.
Sem o pai, a grande referência futebolística foi outro craque nativo da mesma cidade de Las Parejas, o maestro riverplatense Ermindo Onega, a quem buscava assistir na várzea a cada retorno deste ao lugar natal. Mas Valdano não sairia da província de Santa Fe para se formar no futebol: na principal cidade da província, Rosario, o Newell’s começava a revolucionar sua categoria de base ao incorporar o olho clínico de seu antigo jogador Jorge Griffa. Valdano foi um dos primeiros descobertos pelo projeto, juntamente a outros dois futuros campeões mundiais pela seleção – Ricardo Giusti, colega em 1986, e Américo Gallego, vencedor já em 1978. O primeiro a estrear no time adulto seria justamente aquele atacante que, mesmo grandalhão e potente (diferente do modelo consagrado na chamada “escola rosarina”), sabia ser ágil.
A estreia se deu exatamente na rodada final da fase de grupos do Torneio Nacional de 1973, contra o All Boys. Valdano conseguiu uma estreia promissora, pois saiu do banco nos 20 minutos finais e conseguiu arranjar nesse tempo já um primeiro gol, aos 42 do segundo tempo, encerrando os 4-0. Superou um nervosismo já natural reforçado pela preleção técnica: “falou tão rápido, tão rápido, que me produziu uma angústia muito grande. Pensei: se a primeira divisão é isso, eu não conseguirei interpretar os treinadores. Me deixou preocupado por bastante tempo”. O campeão daquele torneio seria justamente o rival Rosario Central, que somava sua segunda conquista argentina contra nenhuma da Lepra – a primeira, em 1971, fora lograda no embalo de um triunfo canalla em pleno clássico nas semifinais. O troco rojinegro viria com juros já no Torneio Metropolitano de 1974, com a equipe do Parque Independencia sagrando-se campeão pela primeira vez em outro clássico histórico, em pleno Gigante de Arroyito.
Valdano não foi exatamente um rosto da histórica conquista, seguindo como opção de banco para um ataque sólido formado pelo ex-gremista Alfredo Obberti com os pontas Juan Ramón Rocha e Mario Zanabria, outro dos primeiros craques em que o garoto buscava se espelhar. Na campanha, o novato esteve em apenas três partidas, ainda que como pontual titular em todas: 1-0 na Bombonera sobre o Boca, na 12ª rodada; 3-2, com gol dele (um cabeceio para virar provisoriamente o placar para 2-1) aos 7 minutos do segundo tempo, sobre o Newell’s; e 1-0 fora de casa sobre o Chacarita. No segundo semestre, os leprosos pareciam seguir no páreo; no Torneio Nacional, promoveram a estreia de Gallego e qualificaram-se ao octogonal final, embora decepcionassem nessa fase. Valdano, por sua vez, já atuava 17 vezes. Deixou três gols, incluindo o único de duelo contra um Independiente recém-tri seguido na Libertadores.
Foi no primeiro semestre de 1975 que a joia parecia desabrochar: em março, integrou a seleção juvenil campeã do tradicional Torneio Esperanças de Toulon (marcou um só gol, mas que gol: foi o único da final contra a Hungria); no Metropolitano, esteve em 25 jogos e somou seis gols. Quase sempre, em duelos graúdos: essa contagem incluindo o seu único gol no Clásico Rosarino (1-1) e contra três gigantes: no San Lorenzo, deixou um no 2-1 fora de casa no time que havia vencido aquele Torneio Nacional de 1974; contra o futuro campeão River, então, foi um golaço (matou no peito e emendou um voleio contra Fillol em um 4-1 também fora de casa), que ainda serviu para encerrar na 13ª rodada a invencibilidade do líder; e o próprio Racing do coração sofreu um em empate em 2-2.
Em paralelo, Valdano somou três gols na Libertadores, em vitórias por 3-2 sobre a dupla Olimpia (marcando duas vezes) e Cerro Porteño. O Ñuls terminou aquele Metropolitano de 1975 apenas em décimo e, no duríssimo regulamento continental onde só o líder avançava, caiu no jogo-extra pela liderança do grupo justamente contra o Central. Nada que impedisse que César Menotti promovesse em 18 de julho a estreia de Valdano na seleção principal. E que estreia: saindo do banco, ele marcou duas vezes em um triunfo de 3-2 sobre o Uruguai em pleno estádio Centenário, encerrando mais de duas décadas de jejum argentino naquele palco.
Convocado à Copa América, Valdano ainda jogaria pela Albiceleste no dia 30, em amistoso não-oficial contra o Talleres (programado para bancar a compra tallarin de José Daniel Valencia, colega dele na seleção de Toulon e na Copa América) e em 6 de agosto – derrota no Mineirão por 2-1 para o Brasil, pela Copa. Mas só voltaria a reaparecer pela Argentina já em abril de 1982. Na época, ir à Europa mais ajudava do que atrapalhava a manter-se na seleção e as chances viravam nulas se o destino fosse uma segunda divisão. Mesmo assim, o ponta preferiu fechar com o Alavés. Segundo ele, a meta desde então já era chegar ao Real Madrid. Ele detalhou em 1999, em outra nota à El Gráfico, as outras razões que o levaram a fechar um negócio arriscado:
“É preciso entender qual era o momento do futebol argentino, de grande desorganização e pouco rigor. Lembro que era normal, quando íamos de ônibus de Rosario a Buenos Aires para jogar na elite, ir com o rádio ligado para saber se a partida ia ser jogada ou não, e muitas vezes na metade da viagem se anunciava a suspensão do jogo e dávamos meia-volta. Essas coisas me empurraram para ir embora. A única coisa que me podia me manter na Argentina era uma guinada de Menotti, mas nesse momento a seleção não tinha o prestígio de agora. De fato, eu estreei na seleção porque nessa semana havia renunciado os jogadores de Boca e River. Quero dizer que a seleção não era um lugar que prestigiassem, era um lugar onde alguém arriscava o prestígio. Por isso, creio que Menotti foi ao futebol argentino das ideias o que Maradona foi ao futebol argentino com os pés”.
Ainda na mesma nota, ele recapitulou a ascensão meteórica e os percalços seguintes: “estreei a fins de 1973, na última partida, 20 minutos de jogo e um gol. No ano seguinte, o Newell’s foi campeão e eu me alternei, mas sempre com cruzamentos de caminho bem aproveitados: campo do River, partido televisionado, grande gol; juvenil de Toulon, atuação pessoal medíocre, mas 1-0 com gol na final; estreia na seleção principal contra Uruguai no Centenário e 3-2 com dois gols meus depois de entrar nos últimos 15 minutos. Foram impactos publicitários. Mas isso me produziu um mal entendido: eu vim à Espanha pensando que chegar ao Real Madrid ia me custar o mesmo que me havia custado chegar à seleção principal, e me equivoquei. O que na Argentina me havia custado um ano, aqui me custou dez”.
Ao todo, Valdano fez 53 jogos oficiais (o último em 27 de julho de 1975, um 0-0 com o Banfield), com 14 gols pelo Newell’s. Não era exatamente um intocável, angariando idolatria gradual mais pelo que soube produzir longe do que no próprio clube – a ponto de ser nomeado sócio honorário e incluído na seção de ídolos tanto no livro do centenário sangre y luto lançado pelo Clarín como na edição especial publicada pela El Gráfico em 2012. História curta que até esteve próxima de ser maior, segundo aquela entrevista de 1999: “quando estava no Alavés, quase volto, mas o orgulho, que é uma espécie de tortura, muitas vezes serve para suportar muito mais do admissível. Se tratava de uma cidade muito dura, onde chove 300 dias ao ano. Eu só tinha 19 anos, era um único estrangeiro no País Basco, se jogava na lama, no chutão e tive que aprender outro jogo na segunda divisão”.
“Além disso, sofri duas fraturas de perônio: uma foi por má sorte e a outra, atroz, o defensor foi me buscar e me rompeu”. Ele também não apreciava ser a figura estelar de uma equipe, que em sua primeira temporada até brigou para não cair à terceirona: o 15º lugar em 1975-76 sujeitou o Alavés a uma repescagem contra o Logroñés, vencida pelo agregado de 4-2. Na seguinte, o time de Vitoria-Gasteiz já ficou a cinco pontos do acesso, em um enganoso 8º lugar. Na de 1977-78, o 11º foi ofuscado pela campanha até as quartas-de-final da Copa do Rei. Eliminou nas oitavas justamente o campeão da segundona, o Real Zaragoza, e caiu apenas diante de Cruijff e o futuro campeão Barcelona por um honroso 2-1 agregado – um encontro que rendeu uma curiosa anedota em que o holandês, peitado pelo argentino, exigiu ser chamado de senhor. Virariam grandes amigos.
Na temporada 1978-79, o Alavés, mesmo 9º, ficou a seis pontos do acesso e voltou a ser parado só nas quartas-de-final da Copa do Rei pelo futuro campeão, o Valencia de Mario Kempes. Se o acesso ao clube não vinha, Valdano enfim saltou para a elite ao terminar contratado pelo Real Zaragoza. O que não mudou tanto foi a realidade modesta, agora para os padrões de La Liga. Os aragoneses não terminavam além do 10º lugar e caíam cedo na Copa do Rei até que uma campanha até as quartas-de-final na temporada 1981-82 bastasse para Menotti redescobrir El Filósofo: se faltava glamour nos gramados em sete anos de Europa, Valdano os aproveitara para enriquecimento cultural a ponto de seu colega de quarto na seleção (Santiago Santamaría, do Newell’s) chiar que ele levava livros até ao banheiro.
A morada na Europa enquanto quase todo o resto dos colegas vinha da Argentina (Daniel Bertoni, da Fiorentina, e Osvaldo Ardiles, do Tottenham, eram as outras exceções) também serviu para Valdano estar ciente do real desenrolar da Guerra das Malvinas enquanto a censura fazia os companheiros pensarem que o país estava vencendo: “foi um problema, porque na Espanha eu desfrutava de uma informação que na Argentina não se tinha, e se a expressava me convertia imediatamente em anti-argentino. Não podia comentar nada, inclusive em algum momento que saiu o tema e eu disse qual era minha postura, faltou pouco para que os companheiros me tirassem a camiseta”, relatou em 1999.
“Há pouco escutei Daniel (Passarella) dizer que se soubesse da verdade, não teria jogado. Eu nesse momento não tinha essa sensação, creio que são duas órbitas distintas: que o jogo serve para escapar da realidade, não para dissimula-la. Nesse momento, nós defendíamos o prestígio do futebol argentino e não o prestígio do país em geral”. Se o entrosamento extracampo pareceu complicar-se, Valdano saiu de vez do time na segunda partida, no que definiu em 2001 como sua maior frustração do futebol: “vinha de jogar uns minutos contra a Bélgica e fui titular contra a Hungria, mas antes dos 10 minutos me deram um chute que me provocou uma grave lesão, não podendo crer no que me acontecia: nesse momento eu estava no Zaragoza, na Espanha, em meu ambiente, e nunca havia sentido nem voltei a me sentir tão bem física e mentalmente”.
Valdano chegou a temer que não voltaria à seleção, e de fato demorou. Mas os bons campeonatos do Zaragoza nas duas temporadas seguintes (um 6º e um 7º lugar, quase beliscando vagas na Copa da UEFA, com seu compatriota Juan Barbas inclusive terminando eleito o melhor estrangeiro de La Liga pelos dois torneios) serviram para que o grandalhão enfim chegasse ao Real Madrid para a temporada 1984-85, vitrine ideal para um regresso à Albiceleste – ainda mais com os merengues campeões da Copa da UEFA, encerrando 19 anos de jejum continental. “Durante um tempo, eu vivi confuso na profissão. No Alavés e no Zaragoza, era a figura estelar da equipe, mas de nenhuma maneira essa figura se adaptava à minha personalidade. Quando dentro de campo apareceu um Butragueño ou um Maradona, me acomodei melhor e descobri que era importante sustentando-os”, destacou em 1999.
Na entrevista de 2001, ele seguiu essa linha modesta: “em campo fui taticamente importante porque me assumi como jogador complementar e creio que fui um grande jogador complementar. É verdade, homem, se jogas numa equipe onde está Maradona, não há outra forma que não ver-se como complementar. Eu vinha de fazer esse papel no Madrid. Um ano depois da minha chegada, em 1985, chegou ao Madrid o Hugo Sánchez, apareceu Butragueño, estavam Juanito e Santillana, e me dei conta de que tinha que mudar de ofício para jogar nessa equipe. Então comecei a recuar, a ser um atacante de todo o campo. Na seleção, Bilardo me pedia algo parecido. Contra a Inglaterra, que voltasse ao meio; contra a Alemanha, pela direita para seguir Briegel. Uma vez terminada a jogada prévia, tinha voltar à minha casa, e minha casa estava na direita, na esquerda ou no meio”.
Naquela temporada pré-Copa, Valdano não só conquistou pela primeira vez La Liga (com direito a um gol em 3-1 no clássico com o Barcelona) que encerrava sete anos de jejum do Real Madrid, como vazou Harald Schumacher uma primeira vez também: basicamente matou nova final de Copa da UEFA, anotando no jogo de ida o terceiro e o quarto gol de um 5-1 no Colônia. Se em 1982 ele era um renegado, para 1986 já era uma das três exceções na numeração da Argentina, que pela terceira Copa seguida respeitava a ordem alfabética (fazendo a camisa 1 ser do atacante reserva Almirón) enquanto Passarella usava seu número 6 (e o goleiro titular Pumpido, a 18), Maradona usava sua icônica 10 (e o goleiro reserva Islas, a 15) e Valdano era contemplado com a 11 – enquanto os reservas Trobbiani e Zelada ficavam com a 21 e 22, respectivamente.
O mimo se justificaria. Embora o ponta não fosse exatamente um goleador (a ponto de achar graça do apelido Valdanito dado ao sósia Hernán Crespo, afirmando o próprio Filósofo em 1999 que seu apelido é que deveria ser Crespito), ele cresceria naquela Copa do Mundo, deixando quatro gols nos sete jogos no México – incluindo o primeiro da campanha, sobre a Coreia do Sul. Não perdoou duas assistências de Maradona para abrir e fechar o placar dos 3-1. O problema foi uma rusga pública com o próprio Maradona por alguma jogada perdida. “Estivemos dez dias sem nos falar. Maradona sempre jogava em casa. Fui eu a seu quarto (buscar a reconciliação)”. Mesmo com eles ainda brigados, foi de Valdano o passe para Maradona arriscar sem ângulo o gol que igualou o 1-1 contra a Itália.
O terceiro gol de Valdano veio nos 2-0 sobre a Bulgária, ainda na fase de grupos, usando a cabeça para aproveitar cruzamento de Cuciuffo e abrir o placar. Viria uma relativa seca nos três mata-matas, embora o ponta contabilizasse uma assistência para Dieguito contra o Uruguai se uma falta inexistente não anulasse a jogada. Contra a Inglaterra, a importância de Valdano ficou mais evidente no gol de mão, quando o zagueiro Steve Hodge cortou mal uma tentativa de tabela de Diego com o ponta – nisso a bola espirrou para o alto, fazendo El Diez trapacear a dividida aérea com Peter Shilton. O jejum objetivo, porém, se escancarou nas semifinais, desperdiçando jogadas incríveis de Maradona contra a Bélgica. “Nesse momento se dizia que a Argentina era Maradona e outros dez e essa foi a prova científica”, gargalhou na entrevista de 1999.
Valdano, após aposentar-se, saberia fazer limonada daquele vexame: “em alguns cursos de formação, me serve como recurso. As pessoas, quando veem um personagem popular, se identificam, e eu gosto que se identifiquem com a glória e com o fracasso desse personagem. E assim como existe essa imagem onde eu me torno o Mister Êxito, há outra onde sou um perfeito lixo: aquela falha contra a Bélgica, na semifinal, onde Diego me deixou com todo o arco vazio após uma jogada maravilhosa, e eu desde a marca do pênalti atirei ao segundo andar”. A imagem do êxito, claro, foi o segundo gol na decisão contra a Alemanha Ocidental: aproveitou pelo passe de Giusti para ficar no mano a mano com Schumacher, tocando na saída do goleiro um certeiro chute rasteiro em diagonal.
“O primeiro que me ocorreu na cabeça é que não era certo. Uns segundos mais tarde, quando entendi que era gol, que era eu, que era a final, em seguida pensei: ‘é mentira, agora vem minha mãe, me acorda para ir ao colégio e eu a mato’. Quando a partida seguiu por uns minutos, me senti campeão. Por isso, quando empataram, pensei que se tratava de um castigo divino por festejar antes do tempo”. Valdano, já com 31 anos incompletos na conquista, foi inicialmente deixado de fora no ciclo pós-Copa. Seguia contribuindo ao Real Madrid, cuja Quinta del Buitre faturou o bicampeonato em La Liga de 1986-87, chegando também às semifinais da Liga dos Campeões. Valdano até reapareceu pela seleção já em dezembro de 1987, em amistoso contra a Alemanha Ocidental em Buenos Aires. Mas uma severa hepatite acelerou sua aposentadoria no meio daquela temporada 1987-88.
Ele veria um lado positivo na doença, naquela entrevista de 2001: “digamos que um jogador do Madrid, que além disso joga na seleção de seu país, vive instalado na irrealidade. A hepatite foi um soco que me devolveu ao mundo da gente corrente”. Só que a safra seguinte da seleção rumo à Copa de 1990 não se mostrou tão generosa; o melhor atacante continuava sendo outro veterano, o genial Ramón Díaz, cuja ausência de 1986 já havia sido um grande questionamento ao técnico Bilardo. Diante da desavença de Díaz com Maradona, Bilardo optou por convencer um aposentado Valdano (então técnico dos juvenis do Real Madrid) a recuperar ritmo de jogo por um lugar na Copa do Mundo.
Qualidade havia: em 13 de setembro de 1989, abriu vitória de 3-1 em amistoso da América do Sul contra Europa em Tóquio. Zico e Kempes ampliaram antes que Rummenigge descontasse – um jogo de veteranos, como se vê. Bilardo não quis relativizar e propiciou ao Filósofo mais quatro jogos pela Argentina, embora três não entrem para as estatísticas oficiais: reestreou, e como titular, em 10 de janeiro de 1990 na derrota de 2-0 para o Monaco (é daquele noite o registro da foto abaixo), só saindo nos 15 minutos finais. Em 14 de janeiro, Valdano jogou os 90 minutos de um 0-0 contra um combinado da Guatemala naquele país. Em 28 de março, a única reaparição oficial: derrota de 1-0 em Glasgow para uma forte Escócia. Em 3 de abril, a única vitória no retorno, um 1-0 em Belfast sobre o clube norte-irlandês Linfield. Mas também foi a involuntária despedida.
O ponta até apareceu no álbum de figurinhas da Panini, embora em foto reaproveitada de 1986. Mas o corpo do veterano não aguentou, traído por fisgadas musculares em treinos da seleção na Suíça. Bilardo lhe aguardou até o último momento, deixando para render-se à necessidade do corte já em 21 de maio – faltando duas semanas para a estreia, convocou emergencialmente Gabriel Calderón. El Filósofo se sairia da situação com sua mais conhecida metáfora: “nadei, nadei e nadei e me afoguei na margem”. A ruptura com Bilardo, segundo Valdano, não viria ali (“por um lado houve dor e por outro me senti livre. Eu já tinha um ponto de vista do torcedor, do jornalista e do treinador, então era menos dócil e discutia bastante as coisas”), e sim quando foram adversários na primeira temporada do outrora atacante como técnico principal: em La Liga de 1992-93, El Narigón comandava o Sevilla de Maradona e o ex-pupilo treinava uma colônia de argentinos no Tenerife.
Foi o curto auge da equipe das Canárias, que notabilizou-se por vencer justamente o Real Madrid na última rodada de duas temporadas seguidas (1991-92 e 1992-93, cujo 5º lugar em La Liga ainda não foi superado na história do clube) e com isso permitir que os então líderes terminassem ultrapassados pelo rival Barcelona. Na de 1993-94, os holofotes da equipe do classudo volante Fernando Redondo e da dupla ofensiva formada pelo inconfundível Oscar Dertycia com o renegado Juan Antonio Pizzi se voltaram à melhor campanha do Tenerife na Copa do Rei, encerrada nas semifinais. O Barcelona, era paralelo, era tetracampeão espanhol e almejava naturalmente igualar o recorde exclusivo do Real Madrid – o penta dos tempos de Di Stéfano e da Quinta del Buitre.
A reação da diretoria merengue foi buscar antigos carrascos: vieram do Tenerife o volante Redondo, o técnico Valdano e seu assistente técnico Ángel Cappa e diretamente do arquirrival aliciou-se Michael Laudrup. Missão cumprida: após meia década, o Real Madrid voltou a ser campeão espanhol na temporada 1994-95, com direito a devolver um 5-0 no clássico com os catalães um ano após ter sofrido essa goleada para Romário e colegas. Nem tudo eram flores: o próprio Valdano assustou-se consigo mesmo pela extrema frieza exibida enquanto seus pupilos garantiam a reconquista: “pois por dentro era um vulcão. Eu creio que a doença mais importante que essa profissão produz é um autocontrole que te mutila a espontaneidade”, jurou em 1999.
“Como treinador, nunca gostei de arrebatar o protagonismo dos jogadores, então qualquer gesto de alegria me dava a sensação de que era uma maneira de me meter dentro do cenário. Creio que esse exercício insano andava um pouco por aí. Houve um canal de televisão que me cravou um primeiro plano nos 30 segundos anteriores e nos 30 posteriores ao gol de Zamorano que nos dava o título: eu estava dando uma instrução e com o gol segui como se nada. Apesar disso, por dentro me havia explodido uma bomba atômica. Quando vi a imagem, me assustei: isso não podia ser bom para a saúde”.
O problema inicial foi ser eliminado pelos dinamarqueses do OB na Copa da UEFA de 1994-95 e começar La Liga seguinte como retardatários do Atlético de Madrid, que terminaria fazendo a dobradinha nacional com a Copa do Rei. O título recente parecia distante a ponto de a torcida merengue ficar ao lado de um certo iugoslavo de sobrenome Petković quando este, contratado pelo presidente sem consulta ao treinador, parecia boicotado por birra do argentino. Valdano terminou substituído por Fabio Capello e rumou a um Valencia que uniria Romário ao pacote argentino de reforços, a incluir Claudio López e Ariel Ortega.
O campeonato espanhol acabou desprezado, com um 10º lugar ofuscado pela caminhada até as quartas-de-final da Copa da UEFA, encerrada diante do futuro campeão Schalke 04. Valdano não resistiria a um início ruim de La Liga de 1997-98, caindo após a terceira rodada. Procurou ver o lado bom em outra entrevista à El Gráfico, em 2004: “veja, eu joguei uma repescagem com o Alavés para não descer à terceira, me lesionei gravemente, fiquei na porta de duas Copas, me demitiram como técnico após três rodadas, mas apesar disso sinto que não só o fracasso não me dá medo, como me parece mais útil que o triunfo. O êxito é muito complacente, ninguém revisa o êxito; ao contrário, quando se sofre uma frustração, se desarma para ver o que houve e é aí que se progride”.
Em 2001, confirmou que preferiu deixar a carreira de técnico em um standy by que dura até hoje. Afinal, Valdano voltara ao Real Madrid em setembro de 2000, para o cargo de manager. Foi junto a Florentino Pérez o rosto das contratações da primeira era “galáctica”, em gestão que venceu dois Mundiais, uma Liga dos Campeões na temporada do centenário, além de uma Supercopa da UEFA, duas da Espanha e duas ligas espanholas.
Isso se voltou contra ele quando, no espaço de dois meses, o castelo com uma tríplice coroa no horizonte desmoronou na temporada 2003-04. “Não houve luto. Conheço pouca gente mais rápida que eu para virar uma página. Por maior que seja a página”, garantiu naquela entrevista de 2004, dada pouco após sua demissão – ele ainda teria uma volta efêmera bancada por Florentino Pérez no primeiro semestre de 2011, mas não venceu uma queda de braço com José Mourinho. Naquela entrevista de 2001, Valdano qualificou um desconhecido Juanma Lillo (hoje assistente de Guardiola no Manchester City) como um técnico cujas ideias eram mais próximas das suas. E não deixou de filosofar ao ser indagado sobre qual jogo mais desfrutou como torcedor: “a homenagem a Maradona [naquele 2001]. Me pareceu interessante: a cada 30 segundos ocorria algo que me despertava algum tipo de curiosidade”, começou.
E assim El Filósofo concluiu o comentário daquela partida festiva: “me comoveu desde sua maneira tão singular de subir ao cenário até a espontaneidade do discurso, com passagens inesquecíveis como ‘isto é demais para uma só pessoa’ ou ‘a bola não se mancha’. E sobretudo o comovente reconhecimento do erro em um país que não tem muita escolaridade nisso”. Resumiu, por fim: “essa partida sozinha daria para escrever um livro sobre sociologia argentina”.
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