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65 anos de Daniel Bertoni, o último gol da Copa 1978

Em uma Copa onde a numeração dos jogadores foi por ordem alfabética dos sobrenomes, o ponta Bertoni usou o número 4 na camisa e calção

O Monumental de Núñez estava em obras em 1977, com as arquibancadas sendo ampliadas em mais um anel. A reforma visava a Copa do Mundo dali a um ano. “Me imagino campeão do mundo”, suspirou o jovem ponta-direita do Independiente, trajado com o uniforme alviceleste (da seleção, não do Racing, claro) em produção ali para a revista El Gráfico. Aos 19 anos, já havia encarado a decepção de não ter ido à Copa anterior. Para a matéria, se ajoelhou e erguia os braços imaginando o título. A taça de fato viria. E o sonhador, Ricardo Daniel Bertoni, ainda assinalaria o gol que a colocou de vez, pela primeira vez, em galeria argentina. Hoje ele faz 65 anos e relembraremos sua carreira.

Segundo entrevista dada em 2006 à revista El Gráfico (de onde tiramos as aspas dessa nota) aquele sonho começou ainda na infância. “Quando me levou para ver o Rojo, meu velho me perguntou: ‘te imaginas jogando aqui?’ E eu lhe disse que sim, convencido”. Bertoni não só ansiava jogar no Independiente como queria o posto de camisa 7 do seu ídolo máximo, o ponta Raúl Bernao, equiparado a Garrincha nos primeiros títulos do clube na Libertadores (em 64-65). O aniversariante do dia começou a carreira na segunda divisão pelo Quilmes para enfim cumprir estas primeiras metas em 1973, quando o clube do coração buscou-o dos Cerveceros. Mas o próprio pai quase abortara tudo, ainda no início de Quilmes, até um certo Gordo López convencê-lo de que Daniel seria um jogador internacional. Já declarou que os campos mais pesados que enfrentou não foram o Centenário ou o San Siro, mas os do San Telmo e do Talleres de Escalada pela segundona. E de fato conseguiu, ainda no Quilmes, ir às seleções juvenis.

Já a chegada ao Independiente veio com o nascimento imediato a dupla Bertoni-Bochini, uma das mais festejadas do futebol argentino. Ricardo Bochini é o ídolo máximo do time (entenda) e armava as jogadas para Bertoni concluir, com a parceria se inserindo também na esfera íntima: vindo do interior, El Bocha morava na pensão do clube e até passar a habitar a casa da família do amigo. Os diablos venceram a Libertadores de 1973 com boa participação da dupla: Bertoni bateu o escanteio que originou o primeiro gol da finalíssima, com o Colo-Colo, e o segundo veio em rebote de tentativa de Bochini. Mas foi no Mundial Interclubes, frente a Juventus – e dentro da Itália -, que a parceria se sedimentou de vezOs papéis de costume se inverteram, com Bochini marcando o único gol após tabelar com Bertoni: “poderia ter tocado para mim, que vinha pelo meio, mas definiu por cima de Zoff. Se tivesse errado, ainda o estaria xingando…”.

Bertoni e o Quilmes: como jogador na segunda divisão e em recepções festivas: em jogo de veteranos para celebrar o centenário do clube, em 1987 (em pé, à esquerda), junto ao agachado barbudo Ricardo Villa; e em 2019 com o mesmo Villa e o goleiro Fillol – trio campeão da Copa 1978

Não botavam fé neles, com a própria tradicionalíssima revista El Gráfico, em circulação de 1919 a 2018, cometendo micareta histórica de não enviar nenhum repórter, sem conseguir preparar capa ou mesmo alguma matéria no miolo. “Não viajou quase ninguém (da Argentina). E o único fotógrafo, Julio Motoneta López, que era torcedor do Rojo, não tirou a foto por gritar o gol e teve que comprar os diários italianos. Tirou a câmera para festejar”. Era o título que faltava à equipe, que falhara nas três tentativas anteriores, enquanto o arquirrival Racing lograra a taça na única chance que tivera. Para arrematar, o primeiro jogo após aquela vitória foi o Clásico de Avellaneda e na casa rival. Os campeões do mundo adentraram o Cilindro desfilando com a taça – em tempos sadios nas rivalidades argentinas, foram aplaudidos pela torcida racinguista, que retribuía os tributos pomposos prestados pelo Rojo quando a Academia venceu o mundo, em 1967.

Os visitantes venceriam por 3-1 com Bertoni marcando o primeiro, um dos seis gols que ele deixou nas redes racinguistas em cerca de quatro anos de Independiente: tem assim mais de um gol por ano no dérbi. Semanas depois, em 21 de novembro de 1973, Bertoni estreou pela seleção, com cinco aparições em amistosos pré-Copa, mas todos não-oficiais: enfrentou ali a seleção santafesina e depois seria a vez do clube Colegiales, do Atlético Tucumán (fazendo um gol no 2-0), Aldosivi, a seleção rosarina e por fim o Belgrano, já em 26 de abril de 1974. Embora pré-convocado à Copa do Mundo, terminou de fora da lista final. Decepção amenizada com Libertadores seguidas, faturando também as de 1974 e 1975 – que rendeu ao Independiente um exclusivo tetra seguido no torneio (pois, ainda sem a dupla Bochini-Bertoni, já havia sido campeão em 1972). Na de 1974, sobre o São Paulo, Bertoni foi decisivo especialmente no triangular-semifinal, contra o temido Peñarol e o celebrado Huracán daquela época.

Ele fez um gol nos 3-2 em Avellaneda sobre os uruguaios, dois nos 3-0 sobre o Huracán, alijando-o da disputa pela vaga na decisão, e o único nos 1-1 com o Peñarol em Montevidéu. E na campanha do tetra Bertoni foi ainda mais decisivo. O Independiente começou mal o triangular-semifinal, com derrotas fora de casa para o Rosario Central de Mario Kempes e o Cruzeiro. Após bater por 2-0 o Central em Avellaneda, seria necessário vencer por três gols de diferença os mineiros para avançar à decisão. E o 3-0 veio. Com Bertoni oxigenando os colegas ao marcar o segundo aos 21 do segundo tempo um gol olímpico em Raul. A final foi contra os chilenos da Unión Española e o ponta deixou o seu nos 3-1 em Avellaneda e nos 2-0 no jogo-extra no neutro Estádio Centenário.

Com o parceiro Bochini. À direita, ambos com menos de 20 anos segurando o primeiro mundial do Independiente

Paralelamente, o sucesso efetivou na seleção. Foi uma das primeiras apostas de César Menotti, que passou a treinar a Argentina após a Copa de 1974. A estreia oficial, contra outra seleção nacional, enfim ocorreu em novembro daquele ano, contra o Chile – ainda que ele só retornasse para um segundo jogo já em outubro de 1976, pois Menotti gastaria o ano de 1975 testando jogadores de clubes do interior. A reestreia foi novamente contra o Chile e ali ele marcou seu primeiro gol oficial pela Albiceleste. Não saiu mais, especialmente após três gols em um 5-1 na Hungria em fevereiro de 1977. E a Copa do Mundo, curiosamente, o fez despedir-se como campeão no Independiente; o clube vinha participando seguidamente da Libertadores como campeão da edição anterior e não se focava tanto nos torneios caseiros. Em 1976, o time caiu na semifinal e não ganhou os campeonatos domésticos, os quais não vencia desde 1971.

Assim, 1977 foi praticamente o primeiro ano da década em que o Rojo ficou de fora de La Copa e os viajantes do continente centraram fogo na terra natal. O Independiente foi vice do Metropolitano, a dois pontos do campeão River. E venceu o Nacional, com a finalíssima travada já em janeiro de 1978, naquela que é a mais épica final argentina (os de Avellaneda foram campeões fora de casa com oito jogadores em campo). Menotti planejara uma concentração extensa para a Copa do Mundo e Bertoni logo juntou-se em fevereiro para os treinamentos da seleção em Ezeiza. “Com Bertoni, parecia que havíamos jogado juntos a vida toda”, elogiou Mario Kempes à tal revista El Gráfico certa vez. Ele e Bertoni fizeram os gols argentinos da final e curiosamente arrancaram fora de suas posições na decisão: Bertoni na reserva do ponta René Houseman e Kempes titular na outra ponta. Bertoni entrou no decorrer da estreia, contra a Hungria, e foi iluminado com o gol da vitória de virada a seis minutos do fim.

O saudoso Houseman, já sob declínio alcoolico na carreira, vinha decepcionando e Bertoni ganhou a posição (“dormíamos no mesmo quarto, mas não competíamos, apoiávamos um ao outro”). Já Kempes passou a centroavante, na vaga de Leopoldo Luque, poupado por Menotti após a morte do irmão. O sucesso viria no jogo seguinte, já pela segunda fase. Kempes terminaria como artilheiro, mas ainda não havia marcado. A seca dele acabou após cabecear em cheio nas redes de Jan Tomaszewski bola cruzada por Bertoni. No 0-0 contra o Brasil, a dupla não funcionou tanto, mas mais pelo dia ruim de Kempes: Bertoni foi um dos argentinos melhores avaliados naquele jogo pela Placar, que notou que ele ganhava todas as disputas com Edinho.

Além de uma assistência contra a Polônia, duas contra o Peru e outra contra a Holanda, Bertoni marcou dois gols na Copa 1978: para dar a virada na estreia sobre a Hungria e para matar a final com a Laranja

Contra o Peru, ele esteve diretamente envolvido nos gols que, em momentos pontuais, animaram os colegas para a construção da goleada necessária: bateu o escanteio na medida para Alberto Tarantini fazer aos 43 do primeiro tempo o segundo gol; e deu a assistência para Kempes metralhar Ramón Quiroga para fazer o terceiro já aos 4 do segundo tempo, possibilitando aos argentinos mais de 40 minutos para conseguirem mais um gol necessário à classificação. O lance do terceiro gol, inclusive, surgiu em cobrança de falta sofrida pelo próprio ponta. Com o 4-0 já consumado, ele então foi poupado, substituído pelo outrora titular Houseman – que, muito embora tenha marcado o quinto gol em seguida, não voltou à escalação principal.

Na final, Bertoni já vinha jogando bem antes de selar a conquista: sofria faltas e organizava jogadas concluídas sem êxito pelos colegas até que, no último minuto do primeiro tempo da prorrogação, recebeu bola lançada por Daniel Passarella. Livrou-se de Wim Suurbier e a repassou a Kempes começar os 2-1. Logo no primeiro minuto do segundo tempo extra, o ponta acertou o travessão de Jan Jongbloed. Dez minutos depois, a Holanda enfim foi liquidada: Kempes ia tentar um terceiro gol, mas, após driblar dois laranjas, perdeu o domínio da bola. Bertoni ficou com a sobra e, de giro, anotou o terceiro. “Minha mãe e minha esposa me contaram que meu pai deixou o estádio, se agarrou a uma árvore e começou a chorar”, contou ao The Guardian.

Ele é um dos jogadores magoados com a pecha negativa dada aos campeões de 1978: “nós rompemos o c… dentro do campo jogando contra equipes duríssimas. Não merecíamos isso. Eu era futebolista. Não era militar nem guerrilheiro. Que o mundial se usou como cortina de fumaça pode ser, mais isso aconteceu sempre”, afirmou. Sua presença na Albiceleste ficou mais rara até a Copa de 1982, mas não por fracassar na Europa: na época, ir jogar lá mais afastava que aproximava os jogadores da seleção. Foi bem individualmente em tempos modestos do Sevilla a ponto de estar entre os primeiros estrangeiros admitidos no futebol italiano quando o calcio suspendeu sua proibição a forasteiros, na virada para os anos 80. Chegou em 1980 à Fiorentina para ser a referência ofensiva das jogadas armadas por Giancarlo Antognoni. Por muito pouco, não foi campeão da dura Serie A na temporada 1981-82.

Na Europa, destacou-se no Sevilla, Fiorentina e Napoli (com Maradona), especialmente nos dois primeiros. Ainda foi chamado pela Udinese para substituir Zico

“Perdemos na última rodada, cabeça a cabeça com a Juve. Eles foram a Catanzaro, lhes deram um pênalti inexistente, não lhes cobraram um contra e no nosso jogo nos anularam um gol válido. Que casualidade, não? A história foi sempre igual com a Juve…”. Rápido, potente, sabendo jogar com as duas pernas mesmo em espaços reduzidos e com bom arremate de longa distância, o argentino foi o artilheiro da equipe naquela campanha e se garantiu em sua segunda Copa. A eliminação para o Brasil seria seu último jogo pela Argentina: “nos tocou o grupo da morte, com Itália e Brasil. Este sim foi o grupo da morte, não o de 2002, que era facílimo e não pudemos passar”. A boa relação em Florença só terminou com a vinda de Sócrates em 1984 – só se permitia dois estrangeiros por time, que já tinha Passarella também.

“Sócrates pode ser um craque, mas Bertoni é Bertoni. Ninguém poderá ser como ele”, reclamou à Placar na época um dos líderes tifosi. Sua troca por Sócrates seria inclusive a razão para uma suposta insatisfação similar de Passarella com a vinda do Doutor. Fato é que Bertoni acabou contratado pelo Napoli, que por sua vez dispensou o brasileiro Dirceu para ter o ponta, que chegou aos celestes junto com Diego Maradona. Foi razoável em Nápoles, mas saiu justo antes da temporada em que o clube terminou pela primeira vez campeão – foi para a Udinese, por sua vez carente com a saída de Zico. E entre os friulanos encerrou a carreira, em 1987, rebaixado no tapetão e sem ganas para aceitar ofertas de Independiente, Boca, River e até Racing – “não sei o que faço aqui, se meu campo é o da frente”, declarou as cartolas blanquicelestes.

Embora atualmente prefira acompanhar rúgbi por morar na fina zona norte, torcendo pela potência SIC, permaneceu fiel ao Rojo: esteve presente também na Sul-Americana de 2017, como um dos velhos ídolos que acompanharam pessoalmente a conquista dentro do Maracanã. Ah, a entrevista dada à El Gráfico em 2006 teve o título “Messi ainda está devendo”, em alusão às atuações pela seleção: “é um grande jogador, mas deve dar mais”. Ainda mais considerando aquele gol em 1978 e as diversas assistências nas fases decisivas, há mesmo pouquíssimos no país com tamanha moral em exigir mais de La Pulga

O técnico Ariel Holan abre o sorriso à direita antes do embarque ao Maracanã para decidir a Sul-Americana 2017: foi acompanhado das lendas Ricardo Bochini, Daniel Bertoni, Miguel Santoro e Ricardo Pavoni, todos do Rojo multicampeão da Libertadores nos anos 70
https://twitter.com/BochiniOficial/status/1238883430634524673
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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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