60 anos sem Herminio Masantonio, maior artilheiro do Huracán e da seleção
Lionel Messi é o maior artilheiro da Argentina, mas só em números absolutos. Mas há um recorde aparentemente insuperável até para ele. Dentre os que defenderam a seleção mais de dez vezes, a melhor média de gols é do único que conseguiu mais de um gol por jogo: Herminio Masantonio. Foram 21 em 19 partidas. Também é o segundo homem que mais gols fez no Brasil. Maior artilheiro do Huracán (264 gols em 365 jogos), Masa foi o primeiro jogador argentino a nomear ruas no país. O primeiro a ser homenageado em monumento. Como uma romântica lenda, amou uma única mulher, partiu jovem e levado pela tuberculose. Foi há sessenta anos, em 11 de setembro de 1956.
Nascido em 5 de agosto de 1910 em Ensenada, na Grande La Plata, quarto dos dez filhos dos italianos Rafael e Sabina, deu os primeiros chutes na liga platense por um quadro chamado Villa Albino. Já os socos, aprendeu no Boxing Club de Ensenada. Em tempos em que terminar o primeiro grau era uma conquista aos mais humildes, conseguiu (e repassou a preocupação às duas filhas, com Alicia Masantonio lembrando os dizeres “com uma camiseta se chega muito longe, mas com um livro embaixo do braço chegas mais longe ainda”). Trabalhou em uma alvenaria (como o pai) e em um frigorífico enquanto seus feitos no Villa Albino chamaram a atenção da dupla principal dos arredores, Estudiantes e Gimnasia. Não era exatamente algo que empolgasse seu pai.
Mas fechou com o Huracán. “Foi Tomás Adolfo Ducó, que estava com destino militar em La Plata, quem se inteirou das façanhas de Herminio no Villa Albino e o mandou buscar por intermédio de um soldado para falar com ele”, explicou Ángel Masantonio, sobrinho do craque. O coronel Ducó, dirigente huracanense, futuramente batizaria o estádio quemero. Outro parente, o irmão Humberto Masantonio, lembraria nos anos 60 que a família não tardou a se orgulhar do sucesso de Herminio. O pai, ao ver toda uma página de jornal dedicada a Masa, não esconderia a emoção no sotaque: “mira come la bestia è fatto famoso”. Francisco Varallo, último sobrevivente da Copa de 1930 (faleceu em 2010, aos cem anos), comparou Herminio em 2003 a Gabriel Batistuta: “dava na bola com um ferro, tinha muita potência e além disso imprimia à bola uma direção muito precisa”.
Em 1965, o diário Crónica lembrou dele assim: “cada gol seu foi uma perfuração de um poço de petróleo”. Personagem de tango sem ser boêmio, fanfarrão, extrovertido ou mulherengo, Herminio também era modesto: “com a bola parada, consigo mais força e melhor direção”, mas “quando a bola está em movimento chuto forte com as duas pernas, mas se está parada não tenho shot de esquerda”. Foi um dos primeiros a ter chuteira sob medida. A grande mágoa foi jamais ter sido campeão argentino. Especialmente porque, na época, ir ao Huracán era ir a um time recentemente supercampeão: o clube havia ganho quatro campeonatos nos anos 20 e revelado, dentre outros, o autor do primeiro gol olímpico (Cesáreo Onzari) e o artilheiro da primeira Copa (Guillermo Stábile).
Masantonio estreou em 31 de maio de 1931, na primeira rodada do primeiro campeonato profissional. Fez aos 29 minutos o primeiro gol da equipe na nova era e marcou também o último na goleada de 4-0 como visitante sobre o Quilmes para 1.600 pagantes. O atacante, que brilhou com um gol e duas assistências em um 5-1 no Independiente, foi o goleador máximo do elenco quemero, marcando 23 dos 58 gols, e o quarto do campeonato. Já o time, irregular, ficou só em 8º. 1932 foi festejado pela primeira vitória em clássicos com o San Lorenzo pelo campeonato (incluindo o amadorismo), com Masantonio garantindo a vitória ao marcar o segundo aos 36 minutos do segundo tempo. Mas o time foi igualmente irregular, a ponto de perder de 6-0 para o Chacarita na rodada seguinte.
Naquele ano, o River foi campeão tendo consigo o recém-contratado ultragoleador Bernabé Ferreyra, autor de incríveis 187 gols em 185 jogos pelo clube. Suas bombas o fizeram ser conhecido como El Mortero de Rufino, sua cidade natal. Em contraponto, Masantonio virava o tango El Mortero del Globito, diminutivo do apelido do Huracán. Ou El Mortero de Ensenada. Herminio recusou oferta da Juventus para seguir no Globo. Em 1933, o clássico com o San Lorenzo (que acabaria campeão) rendeu a maior goleada (e primeira vitória) como visitante até então, um 4-1 (chegou a ser 4-0) com dois de Masa, carregado pelos colegas após o apito final. Já 1934 foi um torneio de três turnos, no qual o Huracán dava pinta de rebaixamento no primeiro mas reagiu fortemente nos outros.
Masantonio se ausentou em 14 dos 39 jogos, mas nos 25 em que esteve marcou 23 vezes. A campanha teve baile no Vélez (7-2, com quatro de Herminio) e no campeão Boca (5-2, também com quatro dele), além de triunfos sobre Racing (3-1) e San Lorenzo (2-1). Assim, em janeiro de 1935 ele enfim estreou pela seleção, na Copa América. Curiosamente, não foi exatamente a estreia pela Albiceleste: os hermanos jogaram com as cores da federação, uma camisa branca em detalhes verdes e calção negro. Masa foi artilheiro com quatro gols, participando de duas vitórias por 4-1, sobre Chile e Peru. Mas no jogo decisivo, a diferença foi desfavorável: o Uruguai ganhou por 3-0 e foi campeão em partida marcada pelos sopapos entre Masantonio e o adversário Lorenzo Fernández. Em 1935, Masantonio também recebeu um companheiro à altura no Huracán: Emilio Baldonedo.
Se Masa viria a ser o segundo homem que mais gols fez no Brasil (seis), o colega é o primeiro, com um a mais – e só Pelé os superou na rivalidade. Como Masantonio, Baldonedo também deixaria o Huracán em 1945. Em junho, dedicamos a Baldonedo um especial que aborda a trajetória do clube nesses dez anos: clique aqui. No que se refere especificamente a Herminio, podemos destacar que no primeiro dos dois campeonatos argentinos de turno único travados em 1936, ele brilhou com dez gols no primeiro. Um deles foi o centésimo da carreira (a vítima, curiosamente, foi a mesma do primeiro, o Quilmes), na campanha em que o Globo foi vice. No segundo, porém, só fez um em dez jogos, declínio que o tirou da Copa América realizada (e ganha) no início de 1937. Mas no fim do ano, Masa já estava de volta à Albiceleste. Havia conseguido seu recorde pessoal de gols no campeonato, 28.
Voltou à em altíssimo estilo, vingando-se do Uruguai: 5-1 com três gols do centroavante, incluindo o mais rápido da história da seleção, aos 23 segundos: “o uruguaio Chirimini estava em poder da bola. Retrocedi para evitar que avançasse, quando (Bruno) Rodolfi me conteve com um grito ‘o deixe-me, Herminio’, ao tempo que se jogava aos pés do rival. (José Manuel) Moreno recebeu o rebote pelo alto e com um cabeceio deu a (Enrique) García. Vi o Chueco (García), que iludia o half e se fechava sobre o arco. Me aproximei à corrida e ao receber o passe até atrás atirei sem olhar. Segundos depois, soube que havia vencido as mãos de Besuzzo”. Seis minutos depois, ampliou de pênalti, cobrando no alto. E faria o quarto: “a bola rebotou do travessão e corri até a vala, mas García chegou antes e impulsou a bola com efeito, descolocando Besuzzo, que se jogou até a esquerda. Em plena corrida, alcancei a bola quase sobre a linha sobre o lado oposto do goleiro e com ela penetrei no arco”.
Após nova campanha irregular em 1938, o Huracán brilhou em 1939, perdendo o título só na reta final. Masantonio voltou a marcar 28 gols, três deles em espaço de nove minutos, em um 6-3 no Lanús. Também em 1939, ainda em janeiro, Herminio enfrentou pela primeira vez o Brasil. Marcou duas vezes em um 5-1 em pleno São Januário pela Copa Roca, derrota mais elástica que os terceiros colocados da Copa de 1938 sofreram em casa até os 7-1. Faria outros dois na Copa Roca em 1940, um massacre ainda maior: 6-1, ainda o resultado mais elástico da rivalidade. Faria mais um em outro 5-1 (dessa vez na Argentina), também pela Copa Roca em 1940. No resto do ano, o Huracán novamente esteve entre os primeiros. Masantonio outra vez marcou 28 gols e brilhou no clássico, marcando três em um 3-3 contra os azulgranas. Um deles foi o gol de número 200 da carreira do craque.
Em 1941, marcou 17 vezes nos 21 jogos em que atuou. Foi o ano em que estreou Norberto Méndez, o terceiro homem que mais gols fez no Brasil e futuro maior artilheiro da Copa América (saiba mais): “jogar ao lado de Herminio te faz sentir mais forte”. Em 1942, Masantonio foi outra vez artilheiro da Copa América, mas outra vez foi vice para o Uruguai. Chegou a marcar quatro vezes em um 12-0 no Equador, maior goleada da história do torneio, e outro sobre o Brasil, em vitória por 2-1. Foi também um ano marcante para o Huracán: os quemeros brilharam contra o River, que naquele ano não só foi bicampeão como viu nascer sua celebrada La Máquina. O Globo terminou invicto contra aquele timaço no campeonato (1-1 em casa e 2-0 fora na rodada seguinte à do título millonario) e o derrotou na final da Copa Adrián Escobar (onde eliminou nas semifinais o San Lorenzo).
O grande astro de La Máquina era Adolfo Pedernera, descrito por Alfredo Di Stéfano como o melhor jogador da história. César Menotti, técnico do Huracán que enfim voltaria a ser campeão, em 1973 (foi por isso que viraria técnico da seleção), ficou interessado no mito de Masantonio e pediu referências a Pedernera: “com seu estilo particular, porque foi sempre de poucas palavras, Adolfo me disse: ‘Masantonio era um grande jogador, um homem de verdade, um homem de honra e de bem, sempre disposto a defender o companheiro. Tinha coragem e assumia um compromisso inquebrável tanto com seus amigos como com a camiseta’. Me surpreendeu muito o comentário. Pedernera nunca foi de presentear elogios. Muitas poucas vezes o escutei falar de um jogador como falou naquela vez”.
1942 foi também o ano em que o Huracán despediu-se de seu antigo estádio de madeira. E foi de Masa o último gol nele, sobre o Gimnasia LP, fechando um 3-1 após cabecear cruzamento de Gilli. O craque também se despedia: em 1943, após quatro rodadas, atravessou o Rio da Prata para jogar pelo Defensor. Fez sobre o Rampla, do goleiro argentino Jaime Rotman, o gol que salvou os violetas do rebaixamento. Voltou à Argentina para jogar no Banfield (só fez dois gols pelo Taladro, em nove jogos), assinando contrato que o livrava de enfrentar o Huracán, para onde voltou em 1945. Pendurou as chuteiras com mais cinco gols em doze partidas, incluindo um na reestreia, contra o Atlanta. O último deles veio em 28 de outubro de 1945, em um 4-1 fora de casa sobre o Lanús, cuja torcida atirou projéteis no campo (o árbitro saiu enfaixado na cabeça).
Masa era o maior artilheiro do clássico Huracán x San Lorenzo, depois superado só por José Sanfilippo, o maior artilheiro do rival. Segue sendo na Argentina quem mais foi goleador máximo de um clube: foram dez temporadas. Curiosamente, nunca foi artilheiro do campeonato. O forte era a regularidade: é o terceiro com mais gols no torneio, abaixo só de Ángel Labruna e Arsenio Erico. “Ele teve o grande mérito de ter jogado sempre acompanhado por garotos de pouca idade e também de pouco físico”, contrapôs seu colega Daniel Bálsamo já nos anos 60. Após parar, Masantonio treinou juvenis e ocasionalmente o time principal do Huracán, que em 1946 contou nas estatísticas com nada menos que o jovem Alfredo Di Stéfano para substitui-lo. Algo justo para quem, também nas estatísticas, havia substituído Guillermo Stábile. Dez anos depois, o cenário era outro. O clube brigava para não cair. E a tuberculose levava lentamente o ídolo.
Um dos últimos a vê-lo vivo no hospital Rawson? O uruguaio Lorenzo Fernández, com quem trocara socos em 1935, viera de Montevidéu após saber do estado de Masa por Norberto Méndez: “você, que não afrouxou nunca, não me vá afrouxar agora!”. Haviam virado amigos em 1942, ao se reencontrarem fora dos campos em meio à Copa América e tomarem mate. Em 1971, o craque batizou uma pracinha em Buenos Aires. Em 1995, um pedaço da rua Grito de Ascencio, entre a avenida Amancio Acorta e Iguazú, na capital federal (também batizaria uma rua em sua Ensenada natal). Em 1996, virou monumento em frente à sede social do Huracán no Parque de los Patricios que dá nome ao bairro homônimo, com um a inscrição de um soneto que termina com “E na mostra de epitáfio não finito/gravado ficou um canto vitorioso/Salve Herminio, para sempre nosso mito”.
Em 1973, o clube enfim voltou a ser campeão argentino e ainda assim houve espaço para lamentos: a ausência física de Masantonio foi lembrada por mais de uma personalidade quemera (falamos aqui). Em 2006, meio século depois de falecer, virou tema central de livro escrito por Néstor Vicente, nada menos que o presidente do Huracán. Encerramos com palavras da célebre pena de Osvaldo Ardizzone da revista El Gráfico, já em 1968: “nunca pediu perdão, porque sua rebeldia natural não admitia. Mas contra essa cota de orgulho aparecia sua desconcertante bondade… Era como os simples, como esses gigantes que sucumbem facilmente à emoção, que têm a alma eternamente infantil… Era capaz de brigar contra dez, cem, contra todos os que ‘vinham’ e perder e chegar contundido, mas não se rendia, não afrouxava… Brigava até o último socão de raiva, estimulado por esse germe varonil que havia instalado nas vísceras, que havia metido no sangue… Era rebelde e emotivo. Era brigador e generoso. Era atrevido e não provocador, e menos prepotente. Denunciava ‘debilidade’ para proteger os mais fracos… Por isso, juntava afetos a seu redor sem ser caudilho. Sem pretender sê-lo e sem saber sê-lo”.
*O livro, fonte principal da matéria, se chama “Herminio Masantonio – Amor por la camiseta” e foi adquirido por este que vos escreve em banca de revista no Parque de los Patricios, exatamente em frente à sede social huracanense. Nota dedicada ao saudoso Tiago de Melo Gomes, desde 2 de setembro nome do laboratório de história da Universidade Federal Rural de Pernambuco.