Seleção

60 anos dos “Caras Sujas de Lima”, a garotada campeã da Copa América de 1957

Omar Corbatta (um Garrincha argentino pelos dribles na ponta e pelo alcoolismo), Humberto Maschio, Antonio Angelillo, Omar Sívori (um Maradona dos anos 50 e 60) e Osvaldo Cruz segue sendo uma das linhas ofensivas mais célebres do futebol argentino. Esse quinteto personificou o título sul-americano de 1957. Sua juventude e a sede do torneio, o Peru, gerou-lhes a alcunha de Los Carasucias de Lima – na Argentina, as espinhas e estripulias da puberdade faziam Carasucias (“Cara-Sujas”) ser uma gíria para moleques. Ontem fez-se 60 anos do encerramento da participação. E, juntamente, o fim da linha na Albiceleste para algumas daquelas estrelas.

O quinteto poderia ser ligeiramente diferente. O ponta-esquerda titular seria Antonio Garábal, do Ferro Carril Oeste. Mas, nas vésperas do torneio, foi acertada sua venda ao Atlético de Madrid. Na época, a seleção não usava quem fosse de clube estrangeiro (o sindicato de jogadores proibia), política só alterada nos anos 70. O Atleti levou também outro pré-convocado igualmente dispensado, o meia-direita Dante Lugo, por sua vez do celebrado Lanús vice-campeão do ano anterior, em elenco apelidado de Los Globetrotters. Para o lugar de Lugo, foi mantido o jovem José Sanfilippo, futuro maior artilheiro do San Lorenzo.

Sanfilippo, que ainda passaria por Bangu e Bahia, ainda ia começar uma trajetória consagrada de centroavante – mas para a Copa América era só uma das três opções de meia-esquerda, competindo com Juan Castro (Rosario Central) pela reserva de Sívori, já uma estrela do River. Sanfilippo, que era ambidestro, jogaria algumas partidas improvisado nos dois flancos do meio-campo ofensivo. A juventude não se limitava ao quinteto ofensivo titular, com idades entre 19 anos (Angelillo) e 23 (Maschio), mas também a alguns reservas: Sanfilippo tinha 21, Héctor de Borgoing tinha 22, Juan Castro possuía 23, Miguel Juárez tinha 20 e Roberto Brookes, 19.

A delegação inteira: Iñigo, Schadlein, Rossi, Roma, Guidi, Pizarro, Domínguez, Mantegari, Benegas e Giménez; Dellacha, os dirigentes Russo, Pérez, Micelli, Colombo e Pisano, o técnico Stábile, o delegado Rotilli, o médico Verna, o fisioterapeuta Taddei e Vairo; Cruz, Corbatta, De Bourgoing, Castro, Juárez, Maschio, Angelillo, Sívori, Brookes e Sanfilippo

Para o lugar da Garábal, assumiu Cruz (que segundo o técnico Stábile não era nem de longe igual a Garábal, cuja saída foi considerada desastrosa…), do Independiente, raro atacante mais experiente, mas ainda assim com 25 anos: futuro campeão pelo Palmeiras na Taça Brasil de 1960 (fazendo gol na final), ele já defendia a seleção desde 1953, ano em que o Rojo fizera história como primeiro clube a fornecer de uma só vez um quinteto ofensivo inteiro à seleção argentina. Na ocasião, a estrela era o colega Ernesto Grillo, que perdera a forma ao ficar meses inativo por recusar excursionar com seu clube após a temporada de 1956. Já o reserva de Cruz foi El Inglés Brookes, a despeito de ter sido rebaixado com o Chacarita em 1956.

Apesar da campanha celebrada de 1956, com a saída de Lugo o Lanús teve só um convocado, seu craque Héctor Guidi. Maiores campeões da década, River e Racing dominaram a convocação. Além de Sívori, o Millo forneceu o zagueiro Federico Vairo, o volante Néstor Rossi, o lateral-direito Oscar Mantegari e o ponta-direita De Bourgoing (os dois únicos não-titulares; De Bourgoing jogaria a Copa de 1966 pela França). Já da Academia saíram Corbatta, Maschio, o goleiro Rogelio Domínguez (que jogaria no Flamengo), o lateral Juan Carlos Giménez e o zagueiro e capitão Pedro Dellacha, todos titulares. Os únicos dois “intrusos” na escalação que começava jogando era o lateral-esquerdo Ángel Schadlein, do Gimnasia LP, e o centroavante Angelillo, do Boca, que teve década péssima nos anos 50.

Eram outros tempos. Os dirigentes da AFA tinham tanto peso quanto o próprio técnico Stábile, não sendo mero capricho a inclusão deles na imagem acima: o treinador se limitava a peneirar nomes pré-estabelecidos por uma comissão dos cartolas, o que foi feito a menos de um mês da estreia. Não havia concentrações ou maiores trabalhos táticos. Em tempos em que só o talento bastava, a delegação não viu necessidade nem mesmo de levar consigo um preparador físico – no máximo, um médico (Félix Verna) e um misto de fisioterapeuta com massagista (Atilio Taddei), que são, respectivamente, o último em pé e o último agachado na imagem que abre a matéria. O restante é formado por Giménez, o técnico Stábile, Domínguez, Dellacha, Rossi, Schadlein e Vairo; Corbatta, Maschio, Angelillo, Sívori e Cruz.

Corbatta, Maschio, Angelillo, Sívori e Cruz. Ao lado, o trio central Maschio, Angelillo e Sívori (todos vendidos ao futebol italiano após o torneio) 40 anos depois

Em ironia histórica, antes da campanha começar a imprensa argentina teimava com a qualidade daquele time. A nota pós-título da revista El Gráfico  foi intitulada “Sim, é uma grande equipe!” para ser exatamente um contraponto a outra, anterior, nomeada “Será tão boa essa equipe?”, publicada no meio da competição mesmo com o elenco já apresentando goleadas – contudo, sob contexto onde eram vistas como meramente protocolares, ante a enorme distância técnica da Albiceleste para a maioria das nações vizinhas. Abismo que faziam os hermanos até se permitirem algum fair play bastante prejudicial a si próprios…

Isto ocorreu na estreia, hoje mais lembrada por exibição dourada de Maschio, autor de quatro gols. Mas a memória mais vívida do goleiro Domínguez foi outra, estressante e a perdurar por décadas, ainda que já convertida em folclore: em 1997, em reunião dos campeões promovidas pela El Gráfico, ele recordou, se referindo a Angelillo: “uma vez me deu vontade de mata-lo. Foi na primeira partida, contra a Colômbia. Resulta que dão um pênalti a eles. Eu agarro e este animal vai e diz ao árbitro: ‘senhor juiz, tem que fazer chutarem de novo, o goleiro se adiantou’. Fez chutarem de novo e me meteram. No intervalo, Stábile e eu fomos em cima para lhe pedir explicações, e com toda a tranquilidade disse ao técnico: ‘não se esquente, mestre, não vi que isto não é uma partida? Nestes aí fazemos oito”.

O resultado final? 8-2. Que seriam até mais, se Corbatta não perdesse um pênalti…

A sequência foi “econômica”, um 3-0 no Equador com dois de Angelillo e outro de Sívori). A nota que duvidava da grandeza da equipe saiu após o jogo seguinte, mesmo que sendo nada menos que um 4-0 sobre o Uruguai. É que a Celeste não era tão “verdadeira”: simplesmente não chamou ninguém do Peñarol e, em tempos onde não se convocava quem ia jogar no exterior (diretriz generalizada, razão pela qual Alfredo Di Stéfano não era chamado desde 1947), já não contava com lendas vivas como Juan Alberto Schiaffino ou Alcides Ghiggia – que naquele 1957, por conta dessa política e pela cidadania ancestral, acabariam jogando juntos pela seleção italiana mesmo. Os uruguaios ainda vinham de derrota de 1-0 para a tão goleada Colômbia, na grande zebra da edição, e de fato não iriam à Copa de 1958.

Avaliações das imprensas brasileira (que avaliou o goleiro Domínguez como “infinitamente superior” a Gilmar!) e argentina (que duvidava dos campeões!). À direita, o veterano Rossi

Maschio, autor de dois gols no clássico platino, seria o artilheiro da Copa América. Mas a safra argentina era tão promissora que houve gol até de Sanfilippo, que entrara faltando dez minutos para o fim no lugar de Sívori para fechar o placar (Angelillo fez o outro), e isso que ambos haviam sido noticiados como lesionados após a partida anterior. O jogo seguinte, contra o Chile, terminou em outro passeio, 6-2, mas a vida não começou fácil, com o primeiro tempo empatado com os chilenos buscando duas vezes a igualdade antes dos primeiros 30 minutos. Maschio e Angelillo foram os fiéis da balança, anotando dois gols cada um. O jogo seguinte já permitia título com uma rodada de antecipação. Pela frente, o Brasil, cujo atacante Evaristo de Macedo havia estabelecido um recorde ainda vigente na Amarelinha: cinco gols em um só jogo, nos 9-0 sobre a Colômbia.

O torneio foi justamente o chamariz para Evaristo ser negociado com o Barcelona – e acabar sendo outra “vítima” do costume de não ser chamado por sua seleção. O Brasil, de resto, era basicamente o elenco que dali a um ano viria a ser campeão do mundo, exceto à ausência de Pelé (só dali a três meses é que o Rei estrearia pela seleção). E levou de 3-0. Placar que segundo o Jornal dos Sports “traduz o andamento do match“. Os brasileiros entraram na partida não podendo sofrer gols e tendo de vencer por pelo menos dois, para igualarem-se aos hermanos na pontuação e reverterem o desfavorável goal average.

Com relativo equilíbrio nos primeiros minutos (o jornal noticia que Gilmar salvou de forma “sensacional” uma falta de Schadlein e que os brasileiros poderiam ter aberto o placar depois, com Didi emendando falta de Joel), pouco a pouco o domínio passou aos alvicelestes; Zózimo ainda salvou chute por cobertura de Sívori. Aos 23 minutos, Angelillo abriu o placar, aproveitando no canto de Gilmar um rebote em Djalma Santos de um tiro de Sívori, que receber de um Cruz lançado desde a defesa por Schadlein. Maschio quase ampliou em seguida, mas outro voo elogiado de Gilmar salvou para escanteio. A resposta foi de Pepe, que teria perdido “gol certo” que Domínguez pôs também para escanteio. Os brasileiros chegaram até a empatar com Joel, mas o lance, aos 39 minutos, foi anulado por falta dele. Já Sívori desperdiçou boa chance no finzinho ao isolar.

O primeiro gol argentino nos 3-0 sobre o Brasil. Ironicamente, o autor Angelillo sequer sai na foto

No intervalo, Castilho substituiu Gilmar. Ainda no primeiro tempo, o técnico Osvaldo Brandão já havia sacado Evaristo para pôr Índio. A outra substituição brasileira foi da estrela Zizinho: maior artilheiro das Copas América ao lado do argentino Norberto Méndez, o “Mestre” disputava-a pela última vez, sem reluzir: foi descrita como “anulado” pela marcação de Rossi e deu lugar a Dino Sani. Pouco adiantou: Angelillo chegou a ampliar logo, mas o gol foi anulado por impedimento. O Jornal dos Sports chega a narrar que “os portenhos jogam fácil e bonito. Comandam a peleja pela contagem mínima, mas cumprem brilhante exibição. Quase todo o quadro portenho atua no campo (de defesa) nacional”. Ainda assim, quase Índio empatou, em sem-pulo que raspou a trave de Domínguez.

Aos 39 minutos, o ataque brasileiro já era descrito como completamente descontrolado. Não conseguiu qualquer abafa. Angelillo quase marcou de cabeça. “O domínio é inteiramente dos portenhos. Jogam bonito. Jogam fácil. Dominam os rebotes. Ataques coordenados e seguros. Os brasileiros decrescem de produção. Não se entendem e são amplamente dominados”. A torneira então se abriu nos minutos finais: aos 42, Rossi passou por dois brasileiros, entregou a Angelillo, que acionou Maschio. O racinguista encobriu Castilho e pôs 2-0. Didi ainda levou perigo a Domínguez, em falta que Joel cobrou em direção ao “Príncipe”.

Mas Dino Sani perdeu a cabeça e empurrou Vairo. Na cobrança da falta, Maschio acionou Angelillo, que desferiu um balaço na trave. Cruz aproveitou o rebote e encheuu o pé: 3-0 assinalados aos 46 minutos. Os brasileiros ainda buscaram um gol de honra na saída de bola, mas Rossi interceptou passe de Índio a Joel e puxou o contra-ataque a Angelillo quando o juiz britânico Robert Turner apitou o fim. O Jornal dos Sports reconheceu que o placar merecia ser até maior, criticando a passividade brasileira mesmo elogiando o ambiente interno de trabalho, o qual não seria uma desculpa para o fracasso, tampouco a convocação.

Após o título, o sorridente goleiro Domínguez juntou-se a Di Stéfano (ambos à esquerda) no Real Madrid. A Argentina não chamava quem jogava no exterior e assim a Itália nacionalizou o trio Angelillo, Sívori (juntos na imagem central) e Maschio (à direita)

O técnico Brandão foi isentado também: “cumpriu sua missão. Não podia era abrir o peito de cada jogador e colocar dentro dois quilos de coragem e quatro quilos de nervos ‘à prova de jogos decisivos'”, pois a desvantagem prévia canarinho devia-se a derrota para aquele decepcionante Uruguai: “quando um jogador veterano como Néstor Rossi consegue saltar mais alto que todo o scratch brasileiro, quando este mesmo jogador se impõe na cancha através de gritos e comandos, só podemos sentir que o nosso quadro está psicologicamente inferiorizado, dominado, tomado, abatido”.

Sobre o xerife, único remanescente da dourada geração argentina dos anos 40 e apelidado de “Patrão da América”, uma crônica do jornal acrescentou o agravante de alguma tietagem: “nunca hei de me esquecer a cara que fez um inteligente moço do nosso plantel, ao se pôr ao lado de Rossi. Era como se o pobre estivesse no Aconcágua! E o velho e experiente Néstor não quis saber de conversa. Ao verificar que o brasileiro o olhava com tamanha admiração, gritou mais do que costumava. E driblou mais!”. A conclusão do jornal conseguiu ao mesmo tempo um erro e um acerto incríveis: “ainda levaremos uns 20 anos para chegarmos a realidade ideal. Até lá não poderemos culpar ninguém pelos nossas grandes derrotas. Outras maiores que essa contra a Argentina podem surgir”.

Já há 60 anos, a Argentina foi derrotada por 2-1 pelo anfitrião Peru, resultado que a própria imprensa brasileira creditou à falta de interesse de quem já era campeão, com o próprio capitão Dellacha declarando-se favorável ao uso dos reservas, no que não foi atendido por Stábile. Um ano depois, muita coisa mudou. O trio central Maschio-Angelillo-Sívori foi vendido ao futebol italiano – foi vendendo Sívori que o River pôde concluir o Monumental, que ainda era em formato de ferradura. Domínguez, ao Real Madrid de Di Stéfano. Sem poder usá-los, a Argentina passou vergonha na Suécia (o único a se salvar foi justamente o endiabrado Corbatta, único Carasucia titular remanescente na Copa de 1958), eliminada na primeira fase e, após dezoito anos, despedindo Stábile, técnico mais vitorioso e longevo da Albiceleste.

Já o Brasil…

Reunião dos quarenta anos, em 1997. Seguem vivos Benegas, Cruz, Angelillo e Sanfilippo

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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