60 anos do imenso Francescoli: a música de despedida ao uruguaio mais argentino
Ser campeão no penúltimo jogo da carreira e também no último? Provavelmente só Francescoli conseguiu isso no futebol. Em 17 de dezembro de 1997, ele ergueu o último troféu da Supercopa, extinto torneio que reunia somente campeões da Libertadores. Apenas quatro dias depois, seu River garantiu o Apertura. Isso e outros detalhes sobre Enzo já foram descritos há dez anos, na nota que assinei para o Futebol Portenho se dedicar aos 50 anos do uruguaio. Muito mais consta em sua página na Wikipédia lusófona, eleita oficialmente como verbete destacado naquele 2011 após ser reformulada por este mesmo redator (texto que renderia o convite para ingressar nesse site). Os dois textos incluem a menção à música “Inmenzo”, mas nunca uma análise mais acurada da letra. Hoje vale complementar o Especial de 2011 com análise dos versos de Ignacio Copani – e mostrar que, dez anos depois, muito mais se escreveu sobre El Príncipe no FP.
Francescoli e River não foi um casamento apenas com mar de rosas. O início, em 1983, foi turbulento: o herói uruguaio na Copa América recém-conquistada não emplacava em meio à penúria financeira de um clube endividado em dólares para reagir em 1981 à ida de Maradona ao Boca: o Millo contratara em resposta ninguém menos que Kempes junto ao Valencia, e também gente gabaritada feito Houseman (outro vencedor da Copa 1978), o goleirão Cejas (que não sairia da reserva de Fillol), o ídolo barcelonista Milonguita Heredia e, em um segundo momento, também Gallego (mais um nome de 1978) e Olarticoechea (futuro vencedor de 1986, por sua vez). Os três primeiros nomes deixariam Núñez junto com Passarella e Ramón Díaz após a Copa de 1982.
Em um ambiente carregado ainda pelas mortes do ídolo Labruna (cotado para voltar a ser treinador do clube, como na vitoriosa parte dos anos 70) em agosto e do atacante Trossero em pleno vestiário em outubro, o River fez campanha de vice-lanterna no Metropolitano de 1983 – ainda que soubesse de antemão que não havia risco imediato de rebaixamento, por conta dos promedios (implantados ainda antes do torneio começar e não para salva-lo, como às vezes se divulga). O uruguaio não se ajudava também: em julho, recém-chegado, declarou-se intimamente mais simpático ao Boca. E as derrapadas no gramado fizeram em novembro a El Gráfico refletir qual seria o verdadeiro Enzo: o ídolo no Uruguai ou o fracasso na Argentina.
Em 1984, o River saltou da vice-lanterna para o vice-campeonato, mas em campanha que terminou mal marcada pela derrota de 3-0 para o Ferro Carril Oeste na final do Nacional de 1984. Enzo, do seu lado, não se inibia em confessar à revista El Gráfico que sua maior alegria como torcedor havia sido às custas do próprio River: se referia às finais da Libertadores de 1966, quando o Peñarol do coração soubera virar de 2-0 para 4-2 na finalíssima. Foi essa virada que originou o apelido originalmente pejorativo de Gallinas ao Millo.
O resto é a história mais conhecida. Ainda em 1984, Francescoli foi artilheiro do Metropolitano, ainda que na reta final a disputa se resumisse àquele forte Ferro Carril Oeste e ao ascendente Argentinos Jrs. Em 1985, foi oficialmente eleito o melhor jogador do futebol argentino (honra ainda inédita a um estrangeiro) na esteira de um primeiro turno já arrasador do campeonato de 1985-86, a instalar uma temporada nos moldes europeus à liga. O ano de 1986 começou com seu protagonismo em dois 5-4 eletrizantes: em janeiro sobre o timaço do Argentinos Jrs recém-vice mundial (dois gols) e em fevereiro sobre a forte seleção polonesa da época – quando não só marcou três vezes, como fechou de bicicleta nos acréscimos uma inacreditável virada a quem perdia de 4-2 até os sete minutos finais. Um certo bebê nascido semanas depois seria batizado Enzo Pérez.
Com isso, a revista El Gráfico até animou-se em retratar naquele fevereiro de 1986 o River com o troféu ainda inédito da Libertadores. Francescoli posou com a taça, em foto que gerou com o tempo a falsa impressão de que teria ao menos participado do início da campanha enfim campeã. Não foi bem assim: ele já estava no Racing de Paris quando os ex-colegas estrearam, em julho, em uma edição toda desenrolada no segundo semestre. Os franceses haviam contratado o artilheiro de um River campeão argentino de 1985-86 de modo avassalador, com cinco rodadas de antecedência. Foi o único título argentino millonario entre 1981 e 1990.
Mas havia quem questionasse sua volta a Núñez no segundo semestre de 1994. Além dos 33 anos, Francescoli vinha da não-classificação do Uruguai à Copa do Mundo dos EUA e de uma carreira italiana até honrosa, mas limitada às camisas modestas do Cagliari (despedindo-se da Sardenha classificando-o à Copa da UEFA) e do Torino (semifinalista da Copa da Itália de 1993-94). Algo modesto demais a quem fora sondado em 1986 para a poderosa Juventus, mas temeu a responsabilidade de substituir Platini e preferiu apostar no malfadado projeto do Racing francês.
O uruguaio, que vinha jogando na Itália já como um volante recuado, voltou com tudo: além de protagonista do inédito (e ainda único) título argentino invicto do River naquele Apertura 1994, também foi o artilheiro do torneio, com direito a um 3-0 em Superclásico na Bombonera – vingando-se da queda diante do rival nos pênaltis das quartas-de-final da Supercopa. Em 1995, as alegrias se resumiram à nova Copa América, no seu Uruguai, sobre o Brasil tetracampeão: o River se desleixou dos torneios domésticos, mas ficou no cheirinho das semifinais tanto da Libertadores (Atlético Nacional) como da Supercopa (para um Independiente em desmanche, mas copeiro).
A redenção veio com a Libertadores de 1996, dez anos depois da saída inoportuna, embora a ressaca se traduzisse em queda precoce na Supercopa (novamente para o Atlético Nacional, no primeiro duelo) e uma partida apagada do River no Mundial Interclubes. Francescoli, porém, ainda era humano: em 1997, chegou a ter novamente uma noite de vilão, ao perder pênalti na precoce eliminação diante de um bagunçado Racing nas oitavas da Libertadores 1997 enquanto se perdia também a Recopa para o Vélez. Nada que impedisse a seleção uruguaia de convence-lo a voltar à Celeste; ele escolhera se despedir erguendo aquela Copa América 1995 em casa, mas nem seu retorno em 1997 evitou nova queda nas eliminatórias.
Naqueles anos, também se alimentava uma freguesia desfavorável contra o Boca mesmo no Monumental, enquanto La Bombonera via tanto um 4-1 sofrido três semanas após a Libertadores de 1996 (a noite do beijo de Maradona e Caniggia) como até gol de nuca de outro uruguaio – o saudoso Hugo Guerra – para a torcida da casa festejar nos minutos finais um 3-2 que não era merecido. Mas as decepções no Superclásico vinham em meio ao último tricampeonato seguido que o futebol argentino já viu: Apertura 1996, Clausura 1996 e Apertura 1997, este garantido quatro dias depois da edição final da Supercopa.
Por longos dezessete anos, estranhos demais a quem se acostumou à Era Gallardo, aquela Supercopa 1997 foi a última conquista internacional do River – até o recém-chegado treinador atual faturar a Sul-Americana 2014 e abrir a época internacional mais seguidamente vitoriosa em Núñez. A seca aumentou ainda mais a aura messiânica de Enzo a praticamente uma geração inteira. Tornando os versos abaixo ainda mais poderosos, por mais que saíssem antes do jejum pesar tanto, em 1999. Após um ano e meio de chuteiras penduradas, Francescoli voltou ao Monumental para ter uma merecida festa: em amistoso em 1º de agosto, marcou dois gols e deu assistência ao próprio filho em um 4-0 sobre o “seu” Peñarol.
O título “Inmenzo” é um genial trocadilho da imensa marca deixada pelo uruguaio no River com o seu nome. O compositor Ignacio Copani também brinca com o sangue azul associado à nobreza de quem era apelidado de El Príncipe, ofuscando a cor do rival com a “armadura” nas cores vermelha e branca do Millo. A modéstia de um ídolo tímido fora de campo é retratada assim como seus inícios pouco gloriosos em contraste com a despedida com imagem consagrada, seminal para fazer da Banda Roja a equipe mais vezes campeã argentina no século XX. Ao fim, Copani suplica para ver mais uma vez o ídolo.
Aos fanáticos, houve sim mais chances para acompanhar o “uruguaio mais argentino” – ou oriental, no sinônimo maçônico e geográfico (referente à margem do Rio da Prata ocupada pelo Uruguai) empregado por Copani: em 27 de setembro, o Peñarol fez sua própria festa de campeão do século XX e convidou o San Lorenzo pelos azulgranas terem sido a primeira equipe argentina com quem duelaram na história da Libertadores (0-0). E, como contamos anteontem, em 10 de novembro de 2001 Enzo esteve na Bombonera para a despedida de Maradona, onde a seleção argentina bateu por 6-3 uma equipe de Riquelme com astros estrangeiros.
Fique, enfim, com nossa tradução (nossa mesmo, pois o Letras e o Vagalume ainda não se deram a esse trabalho…) da letra de “Inmenzo” – música que embala o vídeo ao final da nota, encerrado com o último gol oficial do uruguaio (sobre o Colón, no Apertura 1997) e com aquela bicicleta mágica contra os poloneses.
Enzo lleva su fantástica figura
Enzo leva sua fantástica figura.
Recorriendo con honor el mundo entero
Percorrendo com honra o mundo inteiro.
Sangre azul tendrá este noble caballero,
Sangue azul terá este nobre cavaleiro,
Pero es blanca y colorada su armadura.
Mas é branca e colorada sua armadura.
Enzo lleva su talento como lanza
Enzo leva seu talento como lança
Sin usar la fuerza bruta ni el temor,
Sem usar a força bruta nem o temor,
Sin embargo retrocede el invasor
No entanto, retrocede o invasor
Derrotado cuando el príncipe avanza
Derrotado quando o príncipe avança.
Es tan grande, que si debo hablar del Enzo
É tão grande, que se devo falar do Enzo
Los laureles, los elogios, quedan chicos.
Os louros, os elogios, se tornam pequenos.
La palabra de alabanzas se hace añicos.
A palavra de louvores fica em pedacinhos.
Es Francescoli tan grande que ahora pienso…
É Francescoli tão grande que agora penso…
Que su nombre debería ser “Inmenzo”
Que seu nome deveria ser “Imenzo”
Pues de gloria me hizo inmensamente rico.
Pois de glória me fez imensamente rico.
Es inmenso cuando frena, cuando engancha,
É imenso quando freia, quando engata,
Es inmenso por su eterna habilidad
É imenso por sua eterna habilidade
Y es gigante por el don de su humildad,
E é gigante pelo dom de sua humildade,
Tanto dentro como fuera de una cancha.
Tanto dentro como fora de um estádio.
Es inmenso el amor que tanta gente
É imenso o amor que tanta gente
Le profesa al oriental más argentino,
Professa ao oriental mais argentino,
Al botija que con casi nada vino
Ao guri que com quase nada veio
Y hoy se va siendo el campeón del siglo 20
E hoje sai sendo o campeão do século XX
Quiero verte una vez más querido Enzo
Quero ver-te uma vez mais, querido Enzo
Por la risa que hasta en sueños multiplico,
Pelo riso que até em sonhos multiplico,
Por el canto y la alegría de los chicos
Pelo canto e a alegria da garotada
Con su príncipe surcando el universo.
Com seu príncipe cortando o universo.
Quiero verte una vez más querido “Inmenzo”.
Quero ver-te uma vez mais, querido “Imenzo”.
Quiero verte una vez más, te lo suplico
Quero ver-te uma vez mais, eu lhe suplico
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