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60 anos de Oscar Garré, o mais questionado campeão de 1986

Não são poucos os campeões do mundo que fizeram história no futebol, mas ironicamente nem tanto pelo desempenho exibido nas Copas. Conforme lembramos em junho, 1986 teve como exemplo Ricardo Bochini, mito do Independiente e ídolo do colega Maradona: falamos aqui. E há também aqueles que, mesmo de carreira e/ou técnica questionadas, terminaram campeões, como Santos Iriarte (1930), Rubén Morán (1950), Werner Kohlmeyer (1954), Nobby Stiles (1966), Félix (1970), Daniel Killer (1978), Claudio Gentile (1982), Dunga (1994), Christophe Dugarry (1998), Anderson Polga (2002), Simone Barone (2006), Carles Puyol (2010) ou Lukas Podolski (2014). A Copa 1986, por exemplo, teve nisso o lateral-direito Oscar Alfredo Garré, apesar do apelido de El Mago. Garré – a pronúncia argentina é “Garê”, distinta do “Garrê” ordenado no original francês – faz 60 anos.

desmistificamos aqui que a Argentina de 1986 se resumisse a um “Maradona Futebol Clube”. O luxo de ter Bochini na reserva seria um exemplo. E não apenas ele, como Daniel Passarella ou ainda Claudio Borghi, exatamente o único que rivaliza com Maradona em importância ao Argentinos Jrs, onde em 1985 fora líder técnico do timaço campeão da Libertadores e que por sete minutos não foi também do Mundial – em decisão tida como a de mais alto nível de ambos os finalistas, contra a Juventus de Platini. Mas, de fato, havia gente vista como limitada tecnicamente. Como Garré. Que, curiosamente, poderia ter sido hereticamente o camisa 10 de 1986 se o critério da ordem alfabética dos sobrenomes fosse aplicado sem exceções, como em 1978, quando Kempes foi o 10 apenas por coincidência. Garré ficou com a 13 porque exceções foram permitidas a Passarella (camisa 6 ao invés de 16), Valdano (11 e não 21) e, claro, Maradona, que no cenário hipotético seria ele próprio o 13…

O livro Quién es Quién en la Selección Argentina não alivia mesmo para Garré: “foi um sóbrio defensor pelo lado direito, firme para a marcação, seguro, de grande regularidade e sempre pronto para mostrar-se como uma alternativa para a saída de seu conjunto. Mas sem o carisma que diferencia os grandes dos bons jogadores. (…) Se há uma referência da etapa de Carlos Bilardo como técnico da seleção, essa é – sem dúvida – Garré. Não por suas condições técnicas superlativas ou personalidade, e sim por ter sido um dos mais questionados por boa parte da imprensa e pessoas, fundamentalmente no período pré-Mundial de 1986 e em plena Copa do Mundo, na qual se consagrou campeão”.

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Garré dos anos 70 aos 90 no Ferro Carril Oeste: foram vinte anos no clube. O negro, na segunda imagem, é o brasileiro Rodrigues Neto, lateral da Copa do Mundo de 1978

Garré era basicamente um defensor aplicado, não se aventurando muito ao ataque: fez cerca de vinte gols em mais de seiscentos jogos na carreira, podendo-se destacar os anotados em goleadas como 7-3 no Instituto de Córdoba em 1981, um 7-1 no Racing de Córdoba em 1985 e, principalmente, um 3-0 no Boca em 1982, sempre pelo seu Ferro Carril Oeste. Garré jogou 41 partidas oficiais pela Argentina, entre 1983 e 1988, e outras quatro não-oficiais, no mesmo período. Todas elas como jogador do Ferro, que paralelamente vivia o auge de sua história, para além do futebol – o clube do bairro de Caballito recebeu prêmio até da UNESCO em 1988 (veja).

El Mago é precisamente o jogador do Ferro mais vezes presente na seleção. Não ajuda muito o fato de que o time, campeão da elite pelas únicas vezes em 1982 e 1984, ter seus críticos: era eficiente mas com um futebol chato de se assistir, apesar da final categórica de 1984, em que os verdolagas impuseram em 35 minutos de jogo um 3-0 sobre o River de Francescoli em pleno Monumental. O lateral-direito foi justamente o único do elenco campeão do FCO a jogar Copa do Mundo – ainda que, vale ressaltar, houvesse gente habilidosa no clube, casos do meia-armador Alberto Márcico e do defensor Juan Rocchia, o décimo zagueiro com mais gols no futebol a nível mundial.

Garré ficou de 1974 a 1994 em Caballito, descontando uma temporada pelo Huracán em 1988-89. Viveu de quase tudo no Ferro, um clube historicamente marcado por priorizar mais a faceta poliesportiva (teve nos anos 80 títulos internacionais no vôlei e no basquete) do que centralizar-se no futebol. O ano de 1974 já foi incomum, em que a equipe foi semifinalista nacional. Em 1975, apenas um 8º lugar – para em 1976 brigar-se contra o rebaixamento. Em 1977, lanterna e queda. Em 1978, campeão da segundona. Em 1979, 6º. Em 1980, um nada brilhante 13º lugar. Mas em 1981 foi outra coisa.

Garré à esquerda, com Héctor Cúper (o próprio), Adolfino Cañete, Claudio Crocco, Alberto Márcico e Mario Gómez: as engrenagens da “Máquina Verde” do enjoado Ferro dos anos 80

O time foi bivice, nada menos que para o Boca de Maradona no Metropolitano (com só um ponto a menos) e do River de Kempes no Nacional, com direito a eliminar nas semifinais o rival Vélez no mais importante Clásico del Oeste, no qual tem histórica inferioridade. A taça não escapou em 1982, e de forma invicta (falamos aqui), sendo só o segundo clube a conseguir isso no profissionalismo argentino – o outro era o San Lorenzo. A campanha ainda teve direito a um 4-0 fora de casa sobre o Vélez. Já em 1983, o time foi 3º a dois pontos do campeão Independiente, para ser novamente campeão em 1984 (aqui). Era o suficiente para, por dez anos, ter mais títulos que o rival Vélez. Só Garré e o colega Héctor Cúper estiveram em todos os jogos dos dois títulos. Ainda em 1984, quase venceu-se também o Torneio Metropolitano.

Esse torneio foi perdido na última rodada para o Argentinos Jrs, que se revelaria a asa-negra do FCO: os dois, com vitórias inclusive fora de casa sobre Vasco e Fluminense na Libertadores de 1985, travaram também um jogo-desempate pela vaga nas semifinais pois o regulamento rigorosíssimo classificava apenas o líder. Foi ganho pelo oponente, futuro campeão. Nesse embalo, Garré estreou pela Argentina em 23 de junho de 1983, contra o Chile. No mesmo ano, esteve na Copa América. E não saiu mais do ciclo prévio à Copa do Mundo, participando ativamente dos amistosos e das eliminatórias.

Nos 41 jogos oficiais que fez, só em um não foi titular. Também em apenas uma das não-oficiais ele começou no banco – contra a Roma, em 19 de março de 1987. Seu único gol foi exatamente em outro jogo não-oficial, o segundo nos 2-1 sobre o Napoli em 29 de março de 1986, quando Maradona curiosamente enfrentou o próprio clube. Tamanha confiança de Bilardo fez o lateral perder a titularidade mais por azar: nas oitavas-de-final da Copa, recebeu contra o Uruguai o segundo cartão amarelo no torneio, o que lhe suspendeu para as quartas. Bilardo não chegou a exatamente substituir Garré por outro defensor, mas alterou a tática de 4-4-2 para 3-5-2, conservando os demais três defensores já titulares (José Luis Brown, José Luis Cuciuffo e Oscar Ruggeri) e reforçando o meio-campo com Julio Olarticoechea e Héctor Enrique. Ambos ainda não eram titulares. 

As outras camisas que vestiu no futebol argentino: seleção (inverteu de numeração com Maradona…) e Huracán. Notem que na foto esquerda, atrás do homem de terno, aparece Daniel Passarella sem uniforme de jogo: Garré não jogou a final, mas ganhou dele a simbólica vaga de zagueiro no banco. Passarella assistiu das arquibancadas…

Naquele tenso jogo contra a Inglaterra, a mudança deu muito certo (foi de Enrique o passe na medida para Maradona iniciar o segundo e mágico gol sobre os britânicos, por exemplo) e a mesma escalação e formação tática terminou reproduzida para a semifinal e final. Contra Garré pesava a impressão de ser o elo mais fraco da defesa: a revista El Gráfico o avaliara com notas 4 contra a Coreia do Sul, 6 contra a Itália e a Bulgária (adversária na foto que abre essa nota) e 5 contra o Uruguai; a média de 5,25 foi a mais baixa entre os que jogaram mais de duas vezes na campanha. Ainda assim, ele foi um dos cinco reservas relacionados por Bilardo para estarem no banco para a grande final – eram as regras da época, que não permitiam que todos os suplentes estivessem autorizados a jogar, cabendo ao treinador escolher um punhado seleto, normalmente um reserva por posição. 

Garré prevaleceu sobre ninguém menos que Daniel Passarella por aquela simbólica vaga de stand by. Não que o curasse totalmente da perda da titularidade, como comentou já em 1992 à mesma revista El Gráfico: “estou convencido de que se não fosse pelos dois amarelos eu teria terminado como titular. Mas o futebol tem dessas coisas, entrou o Vasquito Olarticoechea e foi muito bem, mas daí a me desqualificarem… tudo isso me dá um pouco de bronca. A imprensa olha dez vezes o jogador do time grande e uma do clube pequeno. São as regras do jogo, está bem. Mas quando tive a chance de uma vitrine importante, como é a seleção, sempre diziam que eu era o pior. Não gostava de um setor do jornalismo, me parece que estando em um clube grande teria podido me defender de outra maneira. Não creio que tenha sido por má fé, mas penso que quando alguém conquista algo na vida é porque venceu. E isso merece respeito”.

Como em 1986 e em 1987 o Ferro ainda conseguiu uma honrosa 6ª colocação, Garré ainda jogou mais cinco vezes oficialmente pela Argentina, duas em 1987 e três em 1988. Mas a despedida foi péssima: ainda que em Sydney, a Albiceleste levou de 4-1 da então inexpressiva Austrália em julho de 1988. Semanas depois da goleada, o lateral passou ao Huracán, então na segunda divisão, para a temporada 1988-89. A tradicional equipe de Parque de los Patricios classificou-se aos mata-matas, mas foi eliminada pelo Unión, que terminaria promovido. Garré então passou o segundo semestre de 1989 no Hapoel Kfassaba, de Israel, antes de voltar a Caballito para participar das últimas glórias: nova 6ª colocação no Apertura 1990 e um 4º lugar, com a defesa menos vazada, no Apertura 1992.

O sucesso poliesportivo do Ferro exaltado em edição de maio de 1987 da revista El Gráfico, um ano antes do reconhecimento da Unesco. Oscar Garré, terceiro em pé, representa o futebol do clube

Àquela altura, a boa defesa verdolaga unia o veterano com as revelações Germán Burgos e Roberto Ayala. Embora não fosse o jogador mais veterano na elite, Garré era àquela altura o recordista de partidas, com 531. Ainda haviam os dezoito jogos na segundona pelo Huracán. Naquele bom segundo semestre de 1992, ele recebeu a El Gráfico e comentou: “alguma vez tive a possibilidade de jogar no Boca ou no River, mas não se deu… teria sido lindo como profissional, é como subir à Fórmula 1. Mas não me queixo: joguei seis anos na seleção, fui campeão do mundo, fui três vezes campeão com o Ferro – incluindo a segunda divisão -, economicamente não fui mal… claro que em uma equipe grande teriam me reconhecido mais, sobretudo o povo, porque todo jogador gosta que lhe peçam autógrafos; todos temos orgulho”.

No mesmo sentido, o zagueiro prosseguiu: “há 23 anos que estou no Ferro, é minha casa, me sinto cômodo, mas todos querem jogar em um clube grande. É a única coisa que me faltou. Talvez assim não teriam me castigado tanto; me taxam de chato, de antifutebol, como a todo o Ferro. E não é assim, demonstramos. O Ferro de 1981-82 com outra camisa teria sido uma sensação, era um timaço. Joguei mais de 600 jogos contando a primeira divisão, o Huracán, Israel e seleção e são muito poucos os que sabem disso. Me expulsaram nove ou dez vezes e cinco ou seis foram por reclamação, apesar disso alguns acreditam que sou mal intencionado. Mas não há um só jogador no futebol argentino que diga que sou má pessoa. Esse é meu orgulho”. 

Sobre os planos de aposentadoria, esclareceu que “não decidi quanto tempo mais jogarei. Não quero parar e me arrepender depois, dizer ‘com as condições que tenho poderia ter jogado mais dois anos…’. Aos que dizem isso, pergunto: ‘por que não seguiste?’. Depois não podes ter arrepender, não tens revanche. Já te disse: me sinto bem agora. Sempre fui um jogador com regularidade, sempre fiz o que me pediram os técnicos e creio que é um dos meus segredos. Além disso, conheço minhas limitações, talvez assim explique minha vigência. De todas as formas, não quero me equivocar e largar antes do tempo, mas tampouco gostaria de passar vergonha”. Mas resultados ruins vieram e em 1994 o símbolo voltou ao futebol israelense para completar o pé de meia. 

Garré ainda voltaria ao Ferro (ausente desde 2000 na elite) para, como técnico, participar de uma última alegria: a escapada do rebaixamento na última rodada em 1996 com direito a virada sobre o Huracán no jogo final. Ainda assim, na escalação do time verdolaga dos sonhos (aqui), preferimos cometer a heresia de escalar na lateral-direita o craque Silvio Marzolini, eleito o melhor da posição na Copa 1966…

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“Que sigam vaiando, eu sou campeão”: Garré manda o seu beijinho no ombro

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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