60 anos de Julio Olarticoechea, da Copa de 1986 – único campeão mundial vindo dos juvenis do Racing

Dois sonoros sobrenomes bascos em rima chamavam a atenção da seleção argentina de 1990: o do goleiro Sergio Goycochea é o mais lembrado, mas quem já era campeão mundial, por 1986, era o volante Julio Jorge Olarticoechea. “Na realidade, Goyco em 1990 jogou graças a mim, que lesionei Pumpido. Ficou na história pelos pênaltis, mas eu o potencializei”, gargalharia El Vasco (literalmente, “O Basco”), apelido ocasionalmente usado para o goleiro, que por sinal ontem fez 55 anos. Mas a alcunha é mais empregada a quem hoje faz 60: Olarticoechea, “a casa entre duas ferrerias”, no significado do termo original Olartekoetxea.

Por ser Petiso, gíria argentina para baixinho, seu primeiro apelido foi o diminutivo Peta antes de virar El Vasco, a ponto de nem se tocar quando o chamam de Julio – segundo uma entre tantas declarações que ele deu em 2014 à revista El Gráfico, da qual retiramos as aspas dessa nota. Olarticoechea nunca foi um fenômeno (“meu caso é um exemplo, eu explico aos garotos que joguei três mundiais sem ter sido um craque. Ninguém me presenteou, os ganhei com sacrifício e esforço”), mas tem uma estatística raríssima: é um dos dois a defender a seleção argentina vindo de três grandes do país; ninguém conseguiu ir além. Foi o primeiro a alcançar o feito, com convocações por Racing, River e Boca, nessa ordem; depois, o colega Oscar Ruggeri repetiria o feito, na ordem Boca, River e San Lorenzo.

Por ironia, o clube do coração do volante no início era justamente o San Lorenzo, que jamais defenderia – tudo porque de sua cidade natal de Saladillo (no interior da província de Buenos Aires) saíra um destacado jogador azulgrana do passado, José Vanzini, do elenco campeão sob os olhares de dez anos do futuro Papa Francisco, em 1946. Ruggeri e o Vasco estão também entre os doze que a Albiceleste chamou da dupla Boca & River, clube pelo qual Olarticoechea passou a torcer a partir dos 8 anos, a ponto de fazer-se de doente para faltar aula e assim escutar na rádio a final da Libertadores de 1966. Mas, ao ingressar nos juvenis do Racing, fez-se racinguista. Viraria o único proveniente dos juvenis da Academia a vencer uma Copa do Mundo.

Olarticoechea estreou no time principal do Racing em 1976, tempos duros de seca em contraste com os títulos seguidos do vizinho Independiente na Libertadores. Naquele ano, o clube chegou a escapar por um ponto do rebaixamento, do qual se salvou na antepenúltima rodada do Metropolitano em 1977. Embora jogador de retaguarda, El Vasco às vezes marcava seus gols; o segundo da carreira, já em 1978, foi justamente em vitória por 3-2 no Clásico de Avellaneda, onde crescia nesse aspecto: dos seus treze gols pelos alvicelestes, três foram no Rojo. Naquele ano, o time chegou às quartas-de-final do Nacional, o que se repetiria em 1979. Para 1980, chegou Juan Carlos Lorenzo para treinador, técnico que havia chegado a três finais seguidas de Libertadores com o Boca entre 1977 e 1979 (ganhando as duas primeiras). Mas no Racing, o ano foi morno.

É um dos dois a defender a Argentina vindo de três grandes: Racing, River (clube que torcia na infância) e Boca (onde é um dos dois campeões de Copa do Mundo)

Olarticoechea seguiu na Acadé até o fim do Metropolitano de 1981, em agosto, inclusive marcando gol em empate em 1-1 com o campeão, o Boca maradoniano. O clube ficou em uma boa 5ª colocação e o volante estreou na seleção, em partida não-oficial contra o combinado de Santa Fe, em 18 de junho. Mas as finanças racinguistas eram um desastre: foi o ano em que o Cilindro precisou ser fechado para jogos e usado como depósito de batatas, no qual rendia mais ao fim do mês. Assim, nesse contexto o volante foi vendido ao River, que por sua vez vinha de um primeiro semestre decepcionante em 1981; mesmo reforçado com Mario Kempes (em resposta à ida de Maradona ao Boca), ficara longe da briga pelo Metro. El Vasco junto com Américo Gallego e Enzo Bulleri como reforços mais destacados. De cara, a equipe treinada pela lenda Alfredo Di Stéfano foi campeã, mas em campanha acidentada, que só engrenou nos mata-matas após a eliminação na fase de grupos só ser evitada nos critérios de desempate.

O volante sobressaiu-se justamente nas finais com o surpreendente Ferro Carril Oeste, marcando o único gol do jogo de ida, no Monumental. Nesse embalo, foi convocado à Copa de 1982, ainda que não tenha entrado em campo. Só que após o título o River entrou em declínio, prejudicado pela elevação de 240% do dólar nos desmandos econômicos da ditadura – agravados pela derrota nas Malvinas. O time teve de se desfazer de Kempes, Daniel Passarella, Ramón Díaz, Juan José López e Pablo Comelles em 1982, ano em que viu seu treinador Vladislao Cap falecer em pleno exercício do cargo e deu vexame no triangular-semifinal da Libertadores, perdendo os quatro jogos; o Millo depois só não foi rebaixado em 1983 (quando enfrentou outras mortes, do velho ídolo Ángel Labruna, cotado para técnico, e do atacante Oscar Trossero em pleno vestiário; além de greve liderada pelo goleiro Ubaldo Fillol, logo dispensado) graças aos promedios.

O promedios, aliás, condenaram no lugar justamente um Racing carente daquele volante. Para 1984, o River parecia se reerguer, chegando em nova final do Nacional. Dessa vez, Olarticoechea e colegas levaram o troco do Ferro, campeão com direito a um 3-0 dentro do Monumental. Nesse mesmo ano, o volante chegou a renunciar à seleção; sentia não ter a confiança do novo técnico, Carlos Bilardo, pois, embora continuasse convocado, só reunia três partidas pela Argentina entre 1983. O volante também desaprovava em Bilardo os treinos em duplo período de terça a quinta, que via como “insuportáveis” (“minha esposa via-lhe como o diabo: nas segundas que tínhamos livres, nos chamava para ver vídeos e vídeos”). Em janeiro de 1985, mudou de ares também na área clubística.

Boca e River promoveram um troca-troca, com os xeneizes Ruggeri e Ricardo Gareca, em greve num clube em situação financeira ainda pior (a Bombonera chegara a ser fechada em 1984, o pior ano da história boquense), tornando-se millonarios e o Vasco e Carlos Tapia fazendo o caminho inverso. No Boca, a resistência aos vira-casacas não durou muito. Não que chegasse perto do título, mas Olarticoechea jogou o suficiente para voltar à seleção. Foi de modo anedótico, daquelas cenas de alívio cômico em algum seriado; o assistente técnico Carlos Pachamé veio pessoalmente avisar-lhe após uma partida que Bilardo desejava falar com o jogador, que não se via aguentando o treinador nos três meses pré-Copa. Eis a descrição:

O “nucaço de Deus”, quando Olarticoechea impediu com a nuca que Lineker empatasse no finalzinho do Argentina 2-1 Inglaterra em 1986

“Eu lhe respondi que estava indo para Saladillo com a família, Pacha saiu por um momento, voltou, e me disse: ‘te espera no pedágio da autoestrada’. Pronto: fui buscar minha família em Wilde, peguei a autoestrada e aí no pedágio estava Bilardo com seu Ford Fairlane velho. Me fiz sinais, descemos umas quadras adiante, e vejo que se põe a olhar no chão, até que encontrou um pedaço de ladrilho e começou a desenhar um campinho na parede e me explicar como queria que jogasse. Minha família esperava no carro. Não lhe respondi nem sim nem não. Meus amigos de Saladillo me disseram que não fosse um babaca e terminei indo”. Inicialmente, Olarticoechea, mal adaptado à altitude da Cidade do México, não foi titular, substituindo Sergio Batista como volante central. Começou jogando só a partir das lendárias quartas contra a Inglaterra, para substituir na lateral o suspenso Oscar Garré, nome mais criticado da convocação.

“(Lateral) é uma posição linda, mas tens que ser muito inteligente, são fundamentais as fechadas de espaço, não ficar aberto quando o rival te ataca por outro setor. Justamente isso me permitiu salvar o gol com a nuca no final do jogo. Se dormisse por um segundo, Lineker nos empatava”. A descrição se refere ao grande momento do Vasco no México. Maradona, com seus dois gols mais famosos, abrira 2-0 (foi inclusive de Olarticoechea a “assistência” para o gol de mão…), mas o próprio Lineker diminuíra para 2-1, gerando intensa pressão por meio dele e do endiabrado John Barnes. No finzinho da partida, a jogada do gol inglês se repetiu: Barnes cruzou e Lineker executou o peixinho, mas Olarticoechea chegou antes. Fez o mesmo peixinho, arriscando-se a marcar contra, mas conseguiu usar a nuca para jogar a bola para trás. “Depois, brincando, a batizei de ‘a nuca de Deus’”. Já o movimento de fechar espaços foi batizado por Bilardo de “a jogada Vasco”.

Sob um técnico altamente supersticioso, nos bastidores do mundial vê-se Olarticoechea sempre ao lado de Maradona na primeira fileira dos ônibus (“eu ia na janela, sentei primeiro. Foi Diego quem me ‘escolheu’ e não o contrário”, gargalharia). Em primeira pessoa: foi o Vasco o “filmador oficial” da delegação, usando emprestada uma câmera comprada por Néstor Clausen (“Burruchaga veio me xingar, porque um dia exibiram na televisão, avisamos todos, ele estava com a família esperando para ver esse programa e aí mostrou quando pergunto a ele: ‘como fizeste para aguentar dois meses sem fazer amor?’, e Burru olha a mão e faz o movimento, e calhou que ele estava vendo o programa com os filhos”). Na decisão, ele falhou, não afastando a bola no lance do empate provisório alemão. Nada que impedisse ele e Tapia de se tornarem os únicos vencedores de Copa do Mundo como jogadores do Boca.

Após o título, o volante jogou algumas partidas da Libertadores pelo Boca, eliminado na primeira fase. Cavou uma transferência ao Nantes, onde já jogava o compatriota Burruchaga, mas a estadia na França foi breve, sem resultados dignos de nota. Após a Copa América de 1987 (ganha não pela Argentina de Olarticoechea e já com Goycochea, mas sim pelo Uruguai, gol de… Pablo Bengoechea), a primeira em que a Argentina deixou de ser campeã em casa, ficou no país para defender o Argentinos Jrs, então no auge da história. Após uma temporada no Bicho, voltou ao Racing, recuperado do rebaixamento: seu ex-clube havia acabado de ser campeão da Supercopa Libertadores e 3º colocado no campeonato de 1987-88. O título nacional parecia vir na temporada 1988-89, em que a Academia terminou o primeiro turno na liderança. Mas ela murchou no segundo após derrota no tapetão sobre a partida que encerrou o primeiro turno.

Após a Copa de 1986, defendeu Argentinos Jrs (1987-88), novamente Racing (1988-90) e Deportivo Mandiyú (1990-92)

Era um confronto direto com o co-líder Boca, no qual o goleiro adversário Carlos Navarro Montoya foi atingido por rojões racinguistas. Adiante, o campeão de 1988-89 seria justamente o rival Independiente. Um pequeno troco viria na temporada 1989-90, especial a Olarticoechea: ele marcou nos dois Clásicos de Avellaneda, em empate em 2-2 na Doble Visera e o único no Cilindro – a foto ao meio da imagem acima é dessa segunda comemoração. Bem no início, o Racing não foi além de um 8º lugar e na Libertadores caiu já nas oitavas para o campeão Atlético Nacional (e na Supercopa, nas quartas para o campeão Boca); mas o volante, ausente da Copa América de 1989, foi à sua terceira Copa do Mundo, representando o terceiro grande time argentino diferente. Tal como em 1986, Olarticoechea não jogou na estreia em 1990; Bilardo preferiu poupar os trintões e se deu mal, perdendo de 1-0. Na segunda partida, a Argentina recuperou-se batendo a URSS, mas perderia o goleiro Nery Pumpido, que fraturou-se em choque com o Vasco.

“Escutei o crac na hora, Nery estava aos gritos, eu fiquei na trave me fazendo de sonso porque não queria nem olhar”. Assim, Goycochea, originalmente a terceira opção de gol, rumou à titularidade (por ironia do destino, Luis Islas, que seria o reserva imediato de Pumpido, estava inconformado com essa situação e pedira para não jogar a Copa). Mas Olarticoechea teve “contribuições” melhores para se orgulhar em 1990: foi dele o cruzamento para o gol de Pedro Troglio naquela mesma partida; na semi contra a Itália, foi um pivô no lance do gol argentino, permitindo que Caniggia ficasse livre para cabecear; nesse mesmo jogo, converteu sua cobrança na decisão por pênaltis, mesmo padecendo de um trauma de infância – desde que perdera um em torneio infantil ainda na sua Saladillo natal, evitava cobrar penais.

“(Bilardo) não me disse nada, me anotou sem me perguntar. Contra a Iugoslávia, não chutei porque havia sido substituído. Com a Itália vi a lista e o que ia fazer? Eu buscava me concentrar para decidir onde chutar. Não era um refinado, e como Zenga era grandalhão, pensei que ia lhe complicar ir abaixo. Em nenhum momento o olhei e quando acomodei a bola dei um olhão na outra trave, para que pensasse que seria aí. Se defendesse, cavava um poço aí mesmo e me enterrava”, relembraria com humor. Punido com amarelos acumulados, foi um dos desfalques para a decisão, ficha que só lhe caiu já no dia da final – segundo ele, o momento mais triste da carreira. Acabou tendo retrospecto invicto em Copas do Mundo. Após a Copa, Olarticoechea teve passe livre do Racing após boatos de que desejava ir ao Independiente. Segundo o jogador, totalmente infundados. Ele acertou então com o Deportivo Mandiyú.

No solitário mas cascudo representante de Corrientes na elite argentina naqueles anos, El Vasco chegou inclusive a marcar o único gol em “clássico pessoal” com o Independiente ainda em 1990. No Algodonero, conseguiu um 3º lugar no Clausura 1991 (a melhor colocação correntina na primeira divisão) e um 6º no Apertura daquele ano, pendurando as chuteiras em 1992. Optou inicialmente por privilegiar a família e a vida tranquila e afetuosa do interior; seu único trabalho como técnico de time adulto se daria no modesto Talleres da cidade de Remedios de Escalada: “não sou técnico de adultos pelo entorno, pelas pressões e loucuras, pelos apertos da organizada. Depois de ter uma carreira muito linda como jogador, não teria gostado expô-la para que caras sem cérebro te insultem e passes a ser o pior ladrão do mundo”. Sem ter vida de milionário, seguiu no futebol, mas como técnico das seleções juvenis, onde esteve nas Olimpíadas do Rio.

Clique aqui para relembrar os numerosos outros jogadores argentinos apelidados de “Vasco”.

Como técnico das seleções juvenis. Foi o treinador da Argentina nas Olimpíadas de 2016

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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