60 anos de Daniel Bertoni, o último gol da Copa 1978
O Monumental de Núñez estava em obras em 1977, com as arquibancadas sendo ampliadas em mais um anel. A reforma visava a Copa do Mundo dali a um ano. “Me imagino campeão do mundo”, suspirou o jovem ponta-direita do Independiente, trajado com o uniforme alviceleste (da seleção, não do Racing, claro) em produção ali para a revista El Gráfico. Aos 19 anos, já havia encarado a decepção de não ter ido à Copa anterior. Para a matéria, se ajoelhou e erguia os braços imaginando o título. A taça de fato viria. E o sonhador, Daniel Bertoni, ainda assinalaria o gol que a colocou de vez, pela primeira vez, em galeria argentina. Hoje ele faz 60 anos e relembraremos sua carreira.
Um antecedente de sonho concretizado começou na infância. “Quando me levou para ver o Rojo, meu velho me perguntou: ‘te imaginas jogando aqui?’ E eu lhe disse que sim, convencido”. Bertoni não só ansiava jogar no Independiente como queria o posto de camisa 7 do seu ídolo máximo, o ponta Raúl Bernao, equiparado a Garrincha nos primeiros títulos do clube na Libertadores (em 64-65). O aniversariante do dia começou a carreira no Quilmes para enfim cumprir estas primeiras metas em 1973, quando o clube do coração buscou-o dos Cerveceros.
Mas o próprio pai quase abortara tudo, ainda no início de Quilmes, até um certo Gordo López convencê-lo de que Daniel seria um jogador internacional. Já declarou que os campos mais pesados que enfrentou não foram o Centenário ou o San Siro, mas os do San Telmo e do Talleres de Escalada pela segundona. E de fato conseguiu, ainda no Quilmes, ir às seleções juvenis. Já a chegada ao Independiente veio com o nascimento imediato a dupla Bertoni-Bochini, uma das mais festejadas do futebol argentino. Ricardo Bochini é o ídolo máximo do time (entenda) e armava as jogadas para Bertoni concluir, com a parceria se inserindo também na esfera íntima: vindo do interior, El Bocha morava na pensão do clube e até passar a habitar a casa da família do amigo.
Os diablos venceram a Libertadores de 1973 com boa participação da dupla: Bertoni bateu o escanteio que originou o primeiro gol da finalíssima, com o Colo-Colo, e o segundo veio em rebote de tentativa de Bochini. Mas foi na Intercontinental, frente a Juventus na Itália, que a parceria se sedimentou de vez. Os papéis de costume se inverteram, com Bochini marcando o único gol após tabelar com Bertoni: “poderia ter tocado para mim, que vinha pelo meio, mas definiu por cima de Zoff. Se tivesse errado, ainda o estaria xingando…”. Não botavam fé neles: “não viajou quase ninguém (da Argentina). E o único fotógrafo, Julio Motoneta López, que era torcedor do Rojo, não tirou a foto por gritar o gol e teve que comprar os diários italianos. Tirou a câmera para festejar”.
Era o título que faltava à equipe, que falhara nas três tentativas anteriores, enquanto o arquirrival Racing lograra a taça na única chance que tivera. Para arrematar, o primeiro jogo após aquela vitória foi o Clásico de Avellaneda e na casa rival. Os campeões do mundo adentraram o Cilindro desfilando com a taça. E venceriam por 3-1 com Bertoni marcando o primeiro, um dos seis gols que ele deixou nas redes racinguistas em cerca de quatro anos de Independiente: mais de um gol por ano no dérbi.
O clube ainda emendaria as Libertadores de 1974 e 1975, somando um exclusivo tetracampeonato seguido no torneio (já havia sido campeão em 1972). Na de 1974, sobre o São Paulo, Bertoni foi decisivo especialmente no triangular-semifinal, contra o temido Peñarol e o celebrado Huracán daquela época: fez um gol nos 3-2 em Avellaneda sobre os uruguaios, dois nos 3-0 sobre o Huracán, alijando-o da disputa pela vaga na decisão, e o único nos 1-1 com o Peñarol em Montevidéu.
Na campanha do tetra, Bertoni foi ainda mais decisivo. O Independiente começou mal o triangular-semifinal, com derrotas fora de casa para o Rosario Central de Mario Kempes e o Cruzeiro. Após bater por 2-0 o Central em Avellaneda, seria necessário vencer por três gols de diferença os mineiros para avançar à decisão. E o 3-0 veio. Com Bertoni oxigenando os colegas ao marcar o segundo aos 21 do segundo tempo um gol olímpico em Raul. A final foi contra os chilenos da Unión Española e o ponta deixou o seu nos 3-1 em Avellaneda e nos 2-0 no jogo-extra no neutro Estádio Centenário.
Paralelamente, o sucesso o levou à seleção. Foi uma das primeiras apostas de César Menotti, que passou a treinar a Argentina após a Copa de 1974. Bertoni ainda não havia estreado pela seleção, mas foi um dos últimos pré-convocados cortados do mundial da Alemanha. A estreia enfim ocorreu em novembro daquele ano, contra o Chile, ainda que ele só retornasse para um segundo jogo já em outubro de 1976 – Menotti gastaria o ano de 1975 testando jogadores de clubes do interior. A reestreia foi novamente contra o Chile e ali ele marcou seu primeiro gol pela Albiceleste. Não saiu mais, especialmente após três gols em um 5-1 na Hungria em fevereiro de 1977.
A Copa do Mundo, curiosamente, o fez despedir-se como campeão no Independiente. O clube vinha participando seguidamente da Libertadores como campeão da edição anterior e não se focava tanto nos torneios caseiros. Em 1976, o time caiu na semifinal e não ganhou os campeonatos domésticos, os quais não vencia desde 1971. Assim, 1977 foi praticamente o primeiro ano da década em que o Rojo ficou de fora de La Copa e os viajantes do continente centraram fogo na terra natal. O Independiente foi vice do Metropolitano, a dois pontos do campeão River. E venceu o Nacional, com a finalíssima travada já em janeiro de 1978, naquela que é a mais épica final argentina (os de Avellaneda foram campeões fora de casa com oito jogadores em campo: confira clicando aqui).
Menotti planejara uma concentração extensa para a Copa do Mundo e Bertoni logo juntou-se em fevereiro para os treinamentos da seleção em Ezeiza. “Com Bertoni, parecia que havíamos jogado juntos a vida toda”, elogiou Mario Kempes à tal revista El Gráfico certa vez. Ele e Bertoni fizeram os gols argentinos da final e curiosamente arrancaram fora de suas posições na decisão: Bertoni na reserva do ponta René Houseman e Kempes titular na outra ponta. Bertoni entrou no decorrer da estreia, contra a Hungria, e foi iluminado com o gol da vitória de virada a seis minutos do fim.
Houseman vinha decepcionando e Bertoni ganhou a posição (“dormíamos no mesmo quarto, mas não competíamos, apoiávamos um ao outro”). Já Kempes passou a centroavante, na vaga de Leopoldo Luque, poupado por Menotti após a morte do irmão. O sucesso viria no jogo seguinte, já pela segunda fase. Kempes terminaria como artilheiro, mas ainda não havia marcado. A seca acabou após cabecear em cheio nas redes de Jan Tomaszewski bola cruzada por Bertoni. No 0-0 contra o Brasil, a dupla não funcionou tanto, mas mais pelo dia ruim de Kempes: Bertoni foi um dos argentinos melhores avaliados naquele jogo pela Placar, que notou que ele ganhava todas as disputas com Edinho.
Contra o Peru, ele esteve diretamente envolvido nos gols que, em momentos pontuais, animaram os colegas para a construção da goleada necessária: bateu o escanteio para Alberto Tarantini fazer aos 43 do primeiro tempo o segundo gol; e metralhou Ramón Quiroga para fazer o terceiro já aos 4 do segundo tempo, possibilitando aos argentinos mais de 40 minutos para conseguirem mais um gol necessário à classificação. Recebeu livre de Kempes após falta que o próprio Bertoni sofrera pela ponta-direita.
Na final, já vinha jogando bem antes de selar a conquista: sofria faltas e organizava jogadas concluídas sem êxito pelos colegas até que, no último minuto do primeiro tempo da prorrogação, recebeu bola lançada por Daniel Passarella. Livrou-se de Wim Suurbier e a repassou a Kempes começar os 2-1. Logo no primeiro minuto do segundo tempo extra, o ponta acertou o travessão de Jan Jongbloed. Dez minutos depois, a Holanda enfim foi liquidada: Kempes ia tentar um terceiro gol, mas após driblar dois laranjas perdeu o domínio da bola. Bertoni ficou com a sobra e de giro anotou o terceiro. “Minha mãe e minha esposa me contaram que meu pai deixou o estádio, se agarrou a uma árvore e começou a chorar”, contou ao The Guardian.
Ele é um dos jogadores magoados com a pecha negativa dada aos campeões de 1978: “nós rompemos o c… dentro do campo jogando contra equipes duríssimas. Não merecíamos isso. Eu era futebolista. Não era militar nem guerrilheiro. Que o mundial se usou como cortina de fumaça pode ser, mais isso aconteceu sempre”, afirmou. Sua presença na Albiceleste ficou mais rara até a Copa de 1982, mas não por fracassar na Europa: na época, ir jogar lá mais afastava que aproximava os jogadores da seleção. Foi bem individualmente no Sevilla a ponto de estar entre os primeiros estrangeiros admitidos no futebol italiano quando o calcio suspendeu sua proibição a forasteiros, na virada para os anos 80.
Chegou em 1980 à Fiorentina para ser a referência ofensiva das jogadas armadas por Giancarlo Antognoni. E por muito pouco não foi campeões da dura Serie A na temporada 1981-82 (“perdemos na última rodada, cabeça a cabeça com a Juve. Eles foram a Catanzaro, lhes deram um pênalti inexistente, não lhes cobraram um contra e no nosso jogo nos anularam um gol válido”). Rápido, potente, sabendo jogar com as duas pernas mesmo em espaços reduzidos e com bom arremate de longa distância, o argentino foi o artilheiro da equipe naquela campanha e se garantiu em sua segunda Copa. A eliminação para o Brasil seria seu último jogo pela Argentina: “nos tocou o grupo da morte, com Itália e Brasil. Este sim foi o grupo da morte, não o de 2002, que era facílimo e não pudemos passar”.
A boa relação em Florença só terminou com a vinda de Sócrates em 1984 – só se permitia dois estrangeiros por time, que já tinha Passarella também. “Sócrates pode ser um craque, mas Bertoni é Bertoni. Ninguém poderá ser como ele”, reclamou à Placar na época um dos líderes tifosi. Acabou contratado pelo Napoli, que por sua vez dispensou o brasileiro Dirceu para ter o ponta, que chegou aos celestes junto com Diego Maradona. Foi razoável em Nápoles, mas saiu justo antes da temporada em que o clube terminou campeão. Foi para a Udinese, carente com a saída de Zico. E entre os friulanos encerrou a carreira, em 1987, rebaixado no tapetão e sem ganas para aceitar ofertas de Independiente, Boca, River e até Racing (“não sei o que faço aqui, se meu campo é o da frente”).