É possível que ele tinha sido o brasileiro mais querido do futebol argentino. Certo é que no país vizinho Paulo Silas do Padro Pereira, o Silas, teve um prestígio em nível nunca desfrutado no Brasil pelo antigo menudo do Morumbi, mesmo que ele chegasse praticamente trintão a Buenos Aires. Os 55 anos que o “Pastor” comemora hoje são um excelente gatilho para resgatarmos sua passagem consagradora pelo San Lorenzo, onde liderou o fim do pior jejum já sofrido pelo clube do Papa – escolha apropriada para um Atleta de Cristo!
Primeiramente, vale ressaltar que o peso do futebol europeu para delimitar o reconhecimento merecido do público sul-americano é algo que começou a se sentir nos anos 80. Até o Brasil substituir o complexo de vira-lata com o oposto pachequismo absoluto no tricampeonato no México e conter nos anos 70 maiores êxodos, a Argentina mostrava-se aos jogadores uma terra atrativa como a Europa, senão mais: no extracampo, o nível de vida, de glamour e da economia eram equiparáveis ao europeu, com o diferencial de ser uma terra mais próxima do lar geográfica e linguisticamente. E, nos gramados, o nível era parelho com o do Velho Continente, senão superior.
Inclusive, não foram poucos os brasileiros campeões mundiais em 1958 ou do ciclo pós-Copa da seleção que pipocaram em canchas portenhas em seguida: só o Boca trouxe Vicente Feola, Orlando e Dino Sani, além de Maurinho da Copa de 1954 e Paulinho Valentim e Almir Pernambuquinho, dentre outros; reserva de Didi na Suécia, Moacyr veio ao River e o ídolo santista Dorval, ao Racing; San Lorenzo e Independiente, por sua vez, pareciam ter olheiros no vizinho Rio Grande do Sul, adquirindo respectivamente os artilheiros estaduais de 1960 (o colorado Ivo Diogo) e 1964 (Oli, do Aimoré), reforçando-se ainda com o irmão do semideus gremista Alcindo – Alfeu foi azulgrana em 1963 – ou com um volante do Caxias (Paulo Berg saiu do clube, ainda chamado de Flamengo, para chegar ao Rojo também em 1963).
Mesmo na virada dos anos 70 para os 80, ainda foi possível ver Mário Sérgio no Rosario Central, Rodrigues Neto no Ferro Carril Oeste um ano após defender o Brasil em Copa do Mundo ou Júlio César “Uri Geller” no Talleres. Nos anos 90, antes da igualdade imposta por lei entre o peso e o dólar cobrar sua conta no fim da década, essa nova euforia econômica do primeiro governo Menem ainda foi capaz de atrair também Charles Fabian ao Boca, Ademir Kaefer ao Racing, Roberto Gaúcho ao Huracán (todos ídolos cruzeirenses) ou Ricardo Rocha ao Newell’s. Nesse contexto, Silas deixou aqueles anos especialmente atrativos do início da J-League para transferir-se do Kashiwa Reysol, onde já ensaiava o final de uma carreira digna, chegando ao San Lorenzo no segundo trimestre de 1994.
Naquele Clausura 1994, o brasileiro destacou-se desde o início. Além dos dois gols da vitória por 2-0 sobre o Gimnasia y Tiro (de Salta) e outro em 1-0 no Belgrano, marcou outros dois e não poderia ter escolhido alvos melhores: o único, em plena estreia, do duelo contra o Boca, e o do empate em 1-1 dentro do Monumental contra o River. Em um torneio embolado onde foi até ofuscado pela campanha quase campeã do rival Huracán, o Sanloré terminou em quarto, mas a três pontos do líder Independiente. Já no Apertura, manteve-se chances de título até a penúltima rodada, calhando de concorrer contra o único River campeão argentino de modo invicto com um regressado Francescoli na ponta dos cascos. O brasileiro marcou em dois jogos, curiosamente distribuindo dois gols em cada, no 2-1 sobre o Talleres e na derrota de 3-2 na desanimada rodada final contra o Rosario Central.
Os rosarinos, dali a um semestre, seriam novamente os adversários finais, mas da campanha redentora que enfim finalizou o pior jejum cuervo na primeira divisão. Eram 21 anos de seca, período que incluiu até o primeiro rebaixamento de um gigante argentino (em 1981) e a perda não só do estádio Gasómetro, como despejo do próprio bairro de Boedo onde o clube se sedimentara desde os primórdios – agrura que ainda está para ser curada, com a recuperação do terreno original se assegurando apenas nessa década e um novo estádio ainda por vir enquanto desde 1993 se administra paliativamente o uso do Nuevo Gasómetro no bairro de Flores.
Pois Silas, ausente somente do duelo contra o Belgrano e titular jamais substituído nas outras rodadas, foi o jogador de linha mais presente na campanha redentora – só o goleiro Oscar Passet, presente em literalmente todos os segundos, jogou mais. Autor de três gols na caminhada, o volante não apareceu na foto no lance do gol do título, mas foi dele a cobrança precisa de escanteio para a cabeça iluminada de Esteban González, já nos 15 minutos finais da invasão que a massa azulgrana promovera em Rosario, esperançosa de uma vacilada que realmente terminou ocorrendo em paralelo contra o então líder Gimnasia dos gêmeos Schelotto. A reconquista foi tão marcante que o clube, também após 21 anos, se presenteou com uma excursão à Europa, embora o brasileiro fosse poupado com férias esticadas. Não apareceu na escalação surrada de 5-1 pelo Barcelona no Troféu Joan Gamper, quatro dias antes do aniversário de 30 anos do veterano.
A ressaca foi grande e o campeão do Clausura 1995 despencou para quinto no Apertura. A alegria no segundo semestre foi estabelecer um recorde no clássico contra o Huracán: a maior goleada da história da rivalidade deu-se ali, um impiedoso 5-0 onde Silas marcou o quarto, pela sexta rodada, em seu único gol no torneio. Para 1996, o foco total no primeiro semestre foi dado a uma Libertadores ainda inédita na galeria de troféus do Ciclón, a ponto do clube terminar o Clausura (onde Silas deixou gols no 1-0 sobre o Platense e na derrota de 2-1 de virada em casa para o Boca) em penúltimo.
Por La Copa, o brasileiro deixou o dele no 5-1 sobre o Caracas, na fase de grupos. No primeiro mata-mata, esse placar se repetiu. Agora, contra o Peñarol, ainda uma força continental pouco questionada. E dentro de Montevidéu. Com um 8-3 no agregado contra os uruguaios, a expectativa pela inédita conquista estava altíssima, mesmo que o oponente seguinte fosse o River, que desde aquele arrasador título do Apertura 1994 vinha irregular dentro da Argentina. Mas calhou que exatamente aquela Libertadores iniciasse o vitorioso ciclo do jovem treinador millonario Ramón Díaz, mesmo que com sustos. O rival soube vencer como visitante por 2-1 no jogo de ida e abriu o marcador na volta, mas a virada esteve muito perto de ocorrer. Ficou-se no 1-1.
Silas permaneceu por mais uma temporada na Argentina e ela foi a mais goleadora do brasileiro, embora o bom futebol não fosse tão efetivo para evitar que o clube terminasse apenas em sétimo no Apertura e em sexto no Clausura, longe da taça. No Apertura, Silas guardou no 1-1 em visita no clássico com o Huracán, o segundo no 3-0 sobre o Racing, dois em 4-2 no Huracán de Corrientes e outro em derrota de 2-1 para o Gimnasia; e, no Clausura, foi novamente carrasco huracanense (fez o terceiro em outra surra histórica, um 5-1 que teve ainda outro gol brasileiro para o Ciclón: o zagueiro Luís Fernando anotou o quarto) e do clássico secundário contra o Boca – onde marcou duas vezes, com direito até a gol olímpico, no 4-0 – antes de deixar um último gol em derrota de 3-1 para o Platense.
Um de seus últimos jogos antes de lesões e conflitos com os cartolas o levarem de volta ao São Paulo foi um retorno do San Lorenzo ao Troféu Joan Gamper. Com o brasileiro em campo, o tira-teima de blaugranas e azulgranas terminou mais honroso: 3-2 para os mandantes no Camp Nou.
No início dessa década, a revista El Gráfico escolheu os cem maiores ídolos dos cinco grandes argentinos. O único sem brasileiros foi o Independiente, com a do Racing apresentando Silva Batuta (artilheiro do Metropolitano de 1969, onde La Acadé ficou a três minutos da vaga na final), a do River incluindo Delém e o curioso caso de Aarón Wergifker (que viveu apenas por poucos meses na São Paulo natal, nunca dispondo de documentos brasileiros; filho de judeus russos, usava identidade soviética mesmo e terminou defendendo a própria seleção argentina) e a do Boca indo além: Domingos da Guia, Orlando Peçanha, Paulinho Valentim e Iarley tiveram seus perfis, enquanto a própria edição dedicada ao San Lorenzo destacou ainda Petronilho de Brito – pilar do elenco campeão em 1933 antes de ficar mais conhecido apenas como irmão de Waldemar de Brito, o descobridor de Pelé.
Dentre todos eles, somente Silas, contudo, teve um perfil com duas páginas (mesmo seu “sucessor” como um vencedor/carismático/veterano/habilidoso/meio-campo feito Iarley teve apenas meia página, por exemplo): uma com o texto que traduzimos abaixo e outra com a foto que abre esta matéria, onde inseriu-se ainda uma caixa que informa que sua passagem pelo clube durou 105 jogos, com 25 gols, três deles sobre o Huracán, e um título. Eis o texto:
“Navarro Montoya o via e, quase instintivamente, ia buscar a bola no fundo do seu arco. Porque Silas, o enorme Silas, lhe tinha de freguês. Lhe fez gols mordendo-a logo que entrava pelo sétimo beco. Ou atirando-a para colocar desde fora da área com essa luva que tinha no pé direito. E até um gol olímpico lhe fez. Pobre Mono. Pobres os goleiros que o enfrentavam. Sem ser um goleador, este brasileiro nascido em Campinas se cansou de furar as redes e de festejar junto à galera do San Lorenzo. Já havia feito um gol no Boca no dia em que se apresentou em sociedade ante o mais alto tribunal cuervo. Foi no clássico de 12 de abril de 1994, pela 3ª rodada do Clausura.
Tudo se encaminhava para um 0-0 e, na verdade, não era muita a expectativa que despertava esse brasileiro ao qual só se conhecia por se tê-lo visto jogar um tempinho contra a Argentina no Mundial de 1990 (no dia do gol de Caniggia, havia substituído Alemão). Em uma das primeiras jogadas, se desequilibrou e alguns quase se decepcionam. Houve algo de desconfiança. Mas em seguida este armador baixinho e de pernas tortas começou a demonstrar o que valia, o talento que tinha, o carisma que emanava. Jugou com a camisa 15, com a 8, com a 10… mas sempre sem poupar fantasias. Essa primeira vez contra o Boca foi coroada com uma quebra de cintura e um golaço em Pogany. Foi 1-0: nascia um ídolo.
Foi Silas, volante de andar pausado e panorama amplo, o que armou uma jogadaça ‘brasileira’ no Monumental: a pegou na metade do campo, tirou de cima cinco jogadores do River e, desde a meia-lua da área, cravou junto a um canto, à meia altura. Um golaço. Outro golaço. O ‘Silas, Silas’ estrondou por todos os lados. Havia jogado no São Paulo, Sporting Lisboa, Cesena, Sampdoria e tinha duas Copas no currículo. A camiseta lhe pesou zero gramas, como se houvesse se criado em San Juan e Boedo. Foi o líder da equipe de Veira que em 95 cortou a seca de 21 anos sem alegrias. Silas, com sua cara de bonzinho e seu sorriso permanente, era justamente isso: alegria.
Homem de fé e fundador dos Atletas de Cristo, nesse torneio jogou 18 das 19 partidas e fez gols no Ferro, Newell’s e Banfield. Em 1997, por uma lesão de joelho, o retorno de Gorosito e um entrevero com a diretoria, deveu voltar ao Brasil. A marca que deixou Paulo Silas do Prado Pereira foi indelével”. Há ainda uma declaração do ídolo de que “meu amor pelo San Lorenzo não terminará nunca. Quatro dos meus melhores anos no futebol eu passei aí”.
Mais abaixo, transcrevemos também uma descrição ainda mais completa, publicada pelo Diccionario Azulgrana, lançado nas comemorações do centenário sanlorencista, em 2008.
“Um cara que por seu carisma, simpatia e um virtuoso repertório de claridade conceitual, se instalou no sentimento da galera. Antes de produzir-se sua incorporação, se disse, erroneamente, que o que vinha ao clube era seu irmão gêmeo, de muitíssima menor hierarquia. Com um passado íngreme de pergaminhos (campeão mundial sub-20, jogador das Copa do Mundo do México 1986 e Itália 1990) também condimentado com campanhas no futebol italiano e português, somou-se para o Clausura 1994 e teve uma estreia perfeita: um golaço no Boca no Nuevo Gasómetro que serviu para ganhar o clássico.
Fervoroso religioso, aquele batismo com a camiseta azulgrana escondeu uma história bastante particular, que ele mesmo contou depois. Como tinha ofertas de maior espessura econômica, pediu a Deus que lhe desse um sinal. Plantada da seguinte maneira: se ele conseguisse anotar um gol, significaria que seu lugar estava em Boedo e que devia descartar os pedidos que lhe chegavam da Europa. Com a vênia divina, cravou um canhotaço bonito que se colou no ângulo do arco de Esteban Pogany e foi em seguida se abraçar com [Héctor] El Bambino Veira, o técnico nesse momento.
O sinal havia sido eloquente: que melhor que uma equipe fundada por um sacerdote para cobiça-lo. Porque na realidade, e sempre segundo seus relatos, sua chegada ao país obedeceu a um desígnio celestial que o escolheu para estender a pregação do Evangelho. ‘Deus me havia mandado com esse propósito. O resto, tudo, desde os gols até o título do Clausura 95, esteve de presente…’. Assim foi que fundou a agrupação Atletas de Cristo, que reunia esportistas de toda classe com a finalidade de compartilhar a fé religiosa.
No futebolístico, era portador de uma desaceleração assombrosa e um habitual praticante da pedalada [chamada de bicicleta pelos argentinos, que usam a expressão chilena para designar o tipo de chute consagrado por Leônidas] em velocidade. Nesse certame, começou a despejar sua categoria. Com uma pegada superlativa, assistências milimétricas e uma importante chegada ao gol. Além do festejo contra o Boca, também meteu um requintado contra o River, após deixar chafurdados um par de defensores e definir elegantemente. No Apertura 94, após ter arredado [Eduardo] Toto García, foi o cérebro de um meio-campo estupendo, junto com [Roberto] Monserrat, [Carlos] Netto e [Fernando] Galetto. Adiante, com [Claudio] Biaggio, [Eduardo] Bennett e Esteban González, a contundência estava assegurada.
Essa formação, que obteve o vice-campeonato, foi o embrião da equipe que ganharia o título no torneio seguinte. No Clausura 95, foi o comandante dos ataques, o que gerava as ações de risco. Tudo nascia em seu talento. Faltou só em um jogo e contribuiu com três gols, no Ferro, Banfield e Newell’s. Um de seus maiores méritos foi que quase não mostrou desfalques durante seu passo pelo clube. No Apertura 95, ofereceu um concerto de técnica e sutilezas no recordado 5-0 contra o Huracán, no qual meteu um tento e se divertiu com luxos e precisas habilitações.
No ano seguinte, participou da Copa Libertadores e se destacou no Apertura, quando outro malabarista como Néstor Gorosito se incorporou à equipe para associar-se na criatividade. E isso que Carlos Aimar, o técnico nesse torneio, era reticente em junta-los… Já em 1997, com o desembarque de Jorge Castelli, o deslumbrante tandem Silas-Gorosito brilhou em sua maior intensidade e entregou tardes deliciosas, como o 4-0 no Boca (dois gols cada um) e o 5-1 no Huracán (um por bocha).
Uma séria lesão em seu joelho e alguns empurra-empurras com os dirigentes aceleraram sua partida ao São Paulo, do Brasil. Em 2000, enquanto Oscar Ruggeri conduzia o plantel superior, falou-se sobre seu possível regresso, mas El Cabezón [Ruggeri] lhe baixou o polegar na hora. ‘Tem a mesma idade que eu…’, argumentou”.
Falamos aqui que, naquele 2000, Silas de fato desempenhou-se como uma opção de banco no Athletico no título paranaense e na Libertadores, ainda que tenha formado no decorrer do Brasileirão a dupla titular de volantes com Kléberson. Mais abaixo, a saudação feita pelo perfil oficial do San Lorenzo hoje ao aniversário do ídolo. Vale ver o vídeo de menos de um minuto: os tão falados golaços sobre Boca (inúmeros), River e Huracán estão nele.
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