Não chega a ser incomum ser convocado “de última hora” à Copa do Mundo, após poucos jogos pela seleção. Mas com zero jogos e ainda assim ser titular é para poucos e foi o que Héctor Adolfo Enrique conseguiu em 1986, para ser o meia-direita que sempre se orgulhará de entregar a bola para Maradona driblar meia Inglaterra no célebre segundo gol naquelas quartas-de-final – apenas meia década depois do título conquistado ser o de uma terceira divisão. Hoje El Negro (apelido comum na Argentina mesmo àqueles cuja pele escura deve-se mais a ancestrais indígenas, caso dele, do que propriamente africanos) faz 55 anos. Bom gatilho para relembrarmos sua curiosa carreira.
Enrique teve mesmo um ano de 1986 dourado, com todos os títulos possíveis: além da Copa, também a primeira tríplice coroa do futebol argentino, com títulos nacional, continental e mundial pelo River, especiais por si só e cada um majorado pelas circunstâncias. O campeonato argentino foi o único levantado em Núñez entre 1981 e 1990; já a Libertadores e o Mundial foram os primeiros que o clube, tardiamente, venceu: ainda sofria com gozações dos gigantes Boca, Racing e Independiente, aumentadas pelo fato de até o nanico Argentinos Jrs ter faturado a Libertadores (no ano anterior).
Heresia ou não, o próprio Enrique se fez mais feliz nas divisões inferiores, pelo Lanús do coração. Em longa entrevista dada em 2014 à revista El Gráfico, respondeu que seu dia mais feliz foi na terceirona: “meu primeiro jogo no Lanús, contra Tristán Suárez, na Série C. Estreei e meti o gol do triunfo”. Nessa época, compartilhava elenco com um de seus irmãos, Ramón Enrique, considerado o mais talentoso da família mas que jamais foi o mesmo após um carrinho traseiro no perônio. Já em livro lançado em 2000 pela Atlántida sobre o clube, baseado em reportagens da própria El Gráfico, o meia depôs que só o Granate o fez chorar em campo, dessa vez pelo título da segundona em 1991:
“Eu fui campeão do mundo, o máximo que um jogador pode aspirar. Ganhei todos os títulos com o River. E nunca chorei. Quando voltei ao vestiário no dia em que o Lanús subiu contra os mendoncinos (os do Deportivo Maipú, derrotados na penúltima rodada por 2-1), me estavam fazendo uma reportagem e tive que sair porque ao nomear minha mulher e meus filhos me pus a chorar e não pude seguir”. Desde a conquista de 1991, os grenás jamais saíram da elite e se tornaram uma instituição solidamente organizada, cenário bem diferente do que se vivia entre os anos 70 e 80. Mas Enrique estava bem talhado.
Nascido na própria Lanús, El Negro tinha experiência de diversos torneios de bairro na adolescência: “comecei a ganhar alguma grana no futebol ainda garoto, com 12 ou 13 anos. Me destacava e era muitas as equipes que me buscavam para que jogassem com eles. Aí havia chutes, cotoveladas, cabeçadas na nuca, te descuidavas e te davam uma soco, o que estava fora te metia a pata quando passavas… por isso, jogar na primeira divisão é uma papa: estão os árbitros, o alambrado, há policiais, o cachorro, ninguém de fora pode te pegar”, contou naquela entrevista de 2014.
Até hoje, o Granate é o único clube que, após cair à terceira divisão argentina, conseguiu depois vencer a elite (em 2007 e 2016). Um novo acesso não chegou a estar no horizonte em 1982, em uma segundona duríssima tendo pela primeira vez um gigante, o campeão San Lorenzo. Mas aquele ponta-direita terminou disputado por Estudiantes (que entre 1982 e 1983 emendou seu único bicampeonato argentino seguido) e River, que o contratou esperando por um goleador. O tempo mostraria que Enrique foi o perfeito herdeiro de Juan José López, ídolo da posição nos anos 70, mas foi muito vaiado no início e sua venda ao Chacarita chegou a ser cogitada. As dificuldades surgiram logo na chegada mesmo, conforme outras declarações da entrevista de 2014:
“Assim que cheguei ao River, mais de um técnico me dizia: ‘o que você faz aqui, bebê? Vá embora daqui’. Me faltavam com o respeito. Luis Cubilla foi um, José Varacka foi outro. No meu primeiro dia no River, fui ao vestiário, bati na porta e me responderam: ‘espere fora’. Outra vez, chequei uma noite na concentração, saudei o técnico e nem me deu bola. Atrás vinha Fillol e o técnico lhe disse: ‘olá Patito, como vai?’, e eu por dentro pensava: ‘esse cara não pode ser tão filho da p…’. Me custou muito entrar no River”. Segundo ele, quem lhe salvou foi um técnico interino: Adolfo Pedernera, astro do clube nos anos 40, considerado pelo contemporâneo Alfredo Di Stéfano como o maior jogador que vira.
“Don Adolfo veio com sua roupinha de ginástica, irradiando uma paz terrível, me agarrou pelo ombro e me sussurrou: ‘Enrique, jogue tranquilo, enquanto eu esteja aqui o meia-direita do River será você’. Cubilla me usava de ponta ou centroavante”. Além das dificuldades iniciais, Enrique tinha de suportar a falta de pompa na época: os millonarios viviam dificuldades financeiras sérias em 1983, com direito a greve por mais de um mês de jogadores, vaiados pela torcida ao voltarem (o que não foi o caso do goleiro Fillol, que preferiu ser vendido ao Argentinos Jrs).
Quando a situação extracampo se acalmou, as decepções vieram pelos títulos que insistiam em escapar: o time chegou à final do Nacional de 1984 apenas para levar em casa de 3-0 do Ferro Carril Oeste com meia hora de jogo. No Nacional de 1985, caiu para o Vélez no último mata-mata antes da decisão. Após o Nacional de 1985, o calendário argentino adotou os moldes europeus, iniciando-se assim a temporada 1985-86. Dessa vez, não teve para ninguém. O Millo garantiu o título faltando ainda cinco rodadas, encerrando um primeiro semestre brilhante em 1986 com direito a dois épicos 5-4 no espaço de duas semanas, contra a forte seleção polonesa da época (em amistoso de verão, obviamente) e contra o Argentinos Jrs recém-vice-campeão mundial (Enrique marcou).
Enrique esteve em 33 jogos da campanha nacional. Ele terminou chamado à Copa do Mundo no lugar de Juan Barbas, um meia-direita mais talentoso (eleito em 1983 e 1984 o melhor estrangeiro do campeonato espanhol, pelo Real Zaragoza) e que estivera em todas as duras eliminatórias. Barbas vinha de um rebaixamento na Itália pelo Lecce, mas o pecado maior foi brigar com o técnico Carlos Bilardo (que não deixou de chamar outro daquele Lecce, Pedro Pasculli). Que, por outro lado, já conhecia bem Enrique: era o técnico do Estudiantes que lhe requisitara em 1982, e já o havia levado para o torneio juvenil de Toulon para que observasse e aprendesse, pois ressalvou desde o início que não o usaria.
El Negro sequer era o Enrique mais rodado (e sim outro irmão, Carlos, lateral do Independiente campeão de tudo entre 1983 e 1984), mas tinha a seu favor ainda sua boa pegada, bom passe, alguma técnica e obediência tática em voltar para marcar após passar a bola à linha de frente. Bastou. E isso que sequer tinha chuteiras próprias, usando emprestadas as de Ricardo Giusti até falar do assunto com Maradona, que prontamente fez a Puma ceder material e pagar o meia por usa-lo… Seis dias após seu 23º aniversário, Enrique estreou pela Argentina nos sete minutos finais da derrota de 1-0 para a incipiente Noruega, em Olso, em amistoso pré-Copa onde substituiu Sergio Batista. Quatro dias depois, saiu do banco no lugar de Jorge Burruchaga no 7-2 sobre Israel em Tel Aviv.
Já no mundial, Bilardo inicialmente alternou dois homens do grande Argentinos Jrs campeão de quase tudo entre 1984 e 1985: o tal Pasculli e Claudio Borghi. O temperamental Enrique, que não havia sequer sido relacionado na estreia, chegou a pensar em ir embora se isso se repetisse, com a memória do tédio em Toulon ainda viva. Mas foi relacionado para a segunda partida, no 1-1 contra a Itália, e pôde até entrar em campo, substituindo Borghi nos últimos quinze minutos. Voltou a substitui-lo no terceiro jogo, no 2-0 sobre a Bulgária, dessa vez no intervalo.
Nas oitavas, Pasculli voltou e até fez o gol da vitória sobre o Uruguai, mas não continuou no time: Bilardo pensou que Enrique, um homem que corria por todos os lados no meio, deixaria Maradona mas livre para brilhar sozinho. Acertou na mosca. “Depois desse jogo, eu e Diego tivemos de fazer o antidoping. Estávamos no vestiário e o vinham saudar um e outro e outro e eu dizia: ‘e a mim, que lhe dei o passe, ninguém fala nada?’. Aí nasceu essa história de que lhe disse ‘toma e faz’. Mas nesse mundial fiz muito mais que esse passe”, declarou Enrique. El Negro não saiu mais dos titulares até o fim da Copa.
Mas não aproveitou tanto o título na época. Assim que aterrissou na Argentina, fugiu da comemoração oficial por motivações políticas (peronista, não aprovava o presidente Raúl Alfonsín) e no dia seguinte já treinava no River, declarando que já focava na Libertadores – atitudes das quais confessa arrependimento. Até porque a falta de descanso cobraria o preço adiante. Na própria Libertadores, precisou jogar sob infiltrações, sendo ainda assim decisivo na final, com outro passe: o do gol do título, roubando a bola do adversário Roberto Cabañas (futuro ídolo do Boca) e entregando-a ao talismã Juan Alberto Funes.
Enrique foi titular também no Mundial, mas seguidas lesões tiraram sua continuidade no River e na seleção: após a final da Copa de 1986, só retornou em 1989 à Albiceleste, para amistosos prévios à Copa América e para uma partida no torneio, que acabou sendo sua despedida – o 0-0 contra a Bolívia no Serra Dourada. A última alegria no River foi o título do campeonato de 1989-90, onde jogou cerca de metade das partidas, sendo colega do irmão Carlos Enrique (apelidado de El Loco e por sua vez o Enrique da seleção no início dos anos 90). Mas durou pouco: El Negro, um tanto bichado, jamais perdoou o técnico Daniel Passarella após ser descartado após a temporada, mesmo depois de constantes ordens para que jogasse machucado.
“Chorei como um bebê. Nem quando me aposentei do futebol me senti tão mal, porque para isso a pessoa vai se preparando”. Após uma temporada no Deportivo Español, voltou ao Lanús, onde repetiria a dupla com o irmão Carlos (os grenás ainda trouxeram Nery Pumpido e Néstor Fabbri). Pendurou as chuteiras pela primeira vez em 1993. E depois em 1997, após três anos no futebol japonês. E, tal como “naquele gol” de 1986, impregnou-se a Maradona, acompanhando-o em seus trabalhos desde o malfadado “projeto Almagro” em 2000 até a comissão técnica da seleção entre 2008 e 2010, chegando a ser técnico interino da Albiceleste na partida não-oficial contra a seleção da Catalunha em 2009. Também trabalharam até 2012 nos Emirados, pelo Al-Wasl. “Trabalhar com o Diego é um privilégio, porque é um cara sem mistérios, é muito simples trabalhar com ele e te dá liberdade”.
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Baita matéria. Que história!