50 anos sem Guillermo Stábile, muito mais que o artilheiro da 1ª Copa do Mundo
Ser artilheiro da primeira Copa do Mundo é o feito mais conhecido de Guillermo Stábile, o que ofusca outros: começou o torneio na reserva e ainda assim teve média de dois gols por partida. Tem justamente a melhor média de gols da história de uma potência do futebol. Como treinador, durou vinte anos no cargo da mesma potência. E, mais cruelmente, foi duas vezes campeão argentino pelo Huracán e durou nove anos treinando o Racing. Além de ser o único campeão como técnico na dupla Racing & Independiente. Esses são só alguns dos outros predicados de El Filtrador, cujo esgotamento do coração no pós-natal de 1966 completa meio século hoje.
Nascido em Buenos Aires em 17 de janeiro de 1906, Stábile começou no futebol no bairro de Parque de los Patricios, onde nascera. Ainda não no Huracán, o grande representante da área, e sim no Sportivo Metán. Mas em pouco tempo passou a integrar o quarto quadro huracanense. Era esguio e frágil, sem tanta potência nos chutes, mas seus explosivos piques (havia conquistado medalhas no atletismo, sendo especialista nos cem metros rasos) e a precisão nos arremates lhe consagraram como El Filtrador.
Stábile fez em 30 de março de 1924, com pouco mais de 18 anos, sua primeira partida no time principal do Huracán. Não era uma data qualquer: naquele dia, o Globo travaria contra o Boca, no estádio neutro do Sportivo Barracas, a segunda final do campeonato válido ainda por 1923.
Ambos os clubes duopolizaram uma das ligas argentinas (a oficializada perante a FIFA na época) existentes entre 1919-1926, no que foi o Superclásico do amadorismo conforme retratamos neste outro Especial. Eram os anos dourados do Huracán, campeão em 1921 e 1922 enquanto o Boca levara em 1919 e 1920. Stábile não chegou a ser decisivo naquela partida, mas saboreou um 2-0 que manteve o clube no páreo.
Os auriazuis haviam vencido a primeira final de 1923 por 3-0, mas após o 2-0 quemero o regulamento previa um jogo-extra. Ficou no 0-0. Houve então uma quarta final. Stábile não jogou e nela os rivais garantiram a taça, com um 2-0. O detalhe é que ambos terminaram empatados no campeonato de 1923 com o Boca jogando 30 partidas e o Huracán, 29. Mas a liga, em vez de oferecer um jogo a mais ao Globo, fez questão pela final.
Pelo torneio próprio de 1924, o Boca foi igualmente campeão enquanto seu principal rival ficou só em 7º, perdendo inclusive uma invencibilidade em casa que durava quatro anos. Stábile jogou só uma vez, em um 3-0 no Sportivo del Norte, sem marcar. Só deslancharia em 1925 mesmo. Naquele ano, o Boca focou-se na primeira (e vitoriosa) excursão de um clube argentino à Europa, mas isso não significou vida fácil ao Huracán. La Quema terminou o campeonato empatada com o Nueva Chicago, forçando um tira-teima polêmico, já em agosto de 1926. Dessa vez, Stábile estivera nas 22 partidas e foi o artilheiro do elenco quemero, com 17 gols. Incluindo o do título: o adversário abriu o placar e El Filtrador empatou no início do segundo tempo. Ficou no 1-1.
A tensão era tamanha que o juiz encerrou faltando sete minutos e declarou a princípio que não haveria prorrogação. O adversário foi se trocar enquanto os huracanenses convenceram o árbitro a retomar o jogo. O Chicago recusou-se a voltar do vestiário e assim a liga decretou que a taça voltaria a Parque de los Patricios. Outro troféu foi o tira-teima com o campeão rosarino, partida que moralmente valia um título mais “nacional”. Stábile abriu o placar nos 3-0 sobre o Tiro Federal.
Assim, em 1926 estreou pela Argentina. O jogo não teve caráter oficial por ser contra um clube: o Espanyol veio em excursão com o lendário Ricardo Zamora e ganhou por 1-0. Stábile foi também à Copa América, mas na reserva de Gabino Sosa e não jogou. Paralelamente, o Boca venceu a liga em 1926, apesar dos impressionantes 15 gols em 12 partidas de Stábile. O desempenho caiu para 6 gols em 23 jogos no campeonato seguinte (que marcou a reunificação das ligas cismadas em 1919) – eis por que o atacante não foi às Olimpíadas.
O campeão de 1928 foi o San Lorenzo, mas a resposta foi imediata: o Globo ganhou o campeonato de 1928, só finalizado em 30 de junho de 1929. Dessa vez, com o astro retomando a forma ao marcar 27 vezes em 23 jogos. A taça veio com um ponto de diferença sobre o velho rival Boca. Um jogo direto entre eles em abril se mostrou decisivo. Seria em Parque de los Patricios, mas por outro lado o Boca não era derrotado no campeonato regular pelo rival havia sete anos. E abriu o placar, com Domingo Tarasconi (artilheiro das Olimpíadas do ano anterior). Mas Stábile fez no segundo tempo os três gols da virada para 3-1. A vantagem de dois pontos saltou para quatro e a taça poderia se garantir até por antecipação.
O Huracán perdeu para Racing e Independiente na antepenúltima e penúltima rodadas. Mas o susto passou com o 4-1 no Barracas Central. Na época, o Huracán tinha mais títulos que os três do rival San Lorenzo, os dois do Independiente e o único do River. Apesar das campanhas fracas nos torneios de 1929 (14º em um grupo de 18, apesar dos 10 gols em 9 jogos que Stábile disputou) e 1930 (14º de 36 clubes, com El Filtrador marcando 22 em 24), não se sabia que um novo título argentino só viria em 1973. Assim como na época o mais vitorioso clube italiano era o Genoa, dono de recordistas nove títulos no campeonato. Também não se sabia que os genoveses jamais voltariam a vencê-lo desde os anos 20.
Stábile escolheu virar rossoblù ao invés da Juventus, então dona de só dois scudetti. Essa transferência à Europa ocorreu em virtude do desempenho de Stábile na primeira Copa do Mundo, para a qual cavou seu lugar devido aos 28 gols que fez ao longo do título de 1928 finalizado no meio de 1929. Seria reserva de Manuel Ferreira, mas outro titular, Roberto Cherro (maior artilheiro do Boca no século XX e dono de média de 0,75 gols por jogo pela seleção), sofreu uma crise nervosa após a estreia.
O artilheiro fez sua estreia oficial na segunda rodada e marcou três vezes nos 6-3 sobre o México – foi o primeiro hat trick das Copas. Uma estreia mundialista só repetida pela Argentina por Gabriel Batistuta, em 1994 e 1998. O primeiro gol veio logo aos oito minutos. A partir dali, fez mais dois gols nos 3-1 no Chile, ainda pela primeira fase, e outros dois na partida seguinte, já a semifinal: 6-1 nos EUA. Na grande final, em lance que gerou muita reclamação uruguaia por suposto impedimento do Filtrador, Stábile pôs provisoriamente a Argentina na frente ao fim do primeiro tempo, virando o jogo para 2-1 – euforia evidente na imagem que abre a matéria.
Porém, no segundo tempo os donos da casa viraram para 3-2 e, após aguentarem toda uma pressão da Albiceleste na maior parte, fizeram mais um no fim. Como na época jogos de seleções eram esparsos, a final foi a última vez de Stábile pela Argentina. Com oito gols em só quatro jogos, tem a melhor média de gols da seleção. Só Batistuta o superou dentre os argentinos na Copa. O outro a chegar aos oito gols foi Maradona.
Atualização em 03-12-2022: Messi, nesse dia, ultrapassou Stábile em gols na Copa, no 2-1 sobre a Austrália
Com tantos argentinos passando a defender a seleção italiana, poderia ter feito o mesmo e vencido a Copa de 1934 pela Azzurra se mantivesse o nível na Serie A. A estreia pelo Genoa (que montou uma verdadeira colônia argentina, trazendo Rodolfo Orlandini, colega do astro na Copa de 1930, e Juan Pratto e Alejandro Giglio, colegas dele no Huracán), pela 8ª rodada da temporada 1930-31, ficou famosa: três gols sobre o Bologna, outra potência da época. Mas, na 21ª, fraturou a perna direita contra o Alessandria. Ainda assim, o 4º lugar foi a melhor colocação do Grifone na elite até 1991. Porém, como se não bastasse a recuperação ser mais lenta na época, Stábile teve nova fratura em 1933. O Genoa, ainda maior campeão italiano, terminou pela primeira vez rebaixado ao fim da temporada 1933-34 e repassou o argentino ao Napoli, onde foi nulo.
O lado positivo é que, enquanto se recuperava das lesões, foi aproveitado na comissão técnica e pôde estudar táticas europeias. Foi como jogador-treinador que foi contratado em 1935 pelo clube de Jules Rimet, o Red Star de Paris, juntando-se à debandada de ítalo-argentinos temerosos de servirem ao exército de Mussolini na invasão à Etiópia. O Red Star, ainda que semifinalista da Copa da França, não terminou rebaixado apenas pelos critérios de desempate, e deveu muito ao argentino, autor de 10 gols em 14 jogos.
O cartão de visitas dele deu-se ainda em novembro de 1935, em um duelo entre combinados de Paris e de Viena, ainda um grande centro de futebol na Europa com o Wunderteam da seleção austríaca. Stábile venceu Matthias Sindelar no individual e no coletivo. El Filtrador marcou quatro gols na vitória por 6-5. O jogo repercutiu para além dos dois países, com o diário espanhol As estampando “a ressurreição de Stábile em Paris”.
Stábile não escaparia do rebaixamento duas temporadas depois, mas pôde despedir-se vencendo a segundona de 1938-39 – rumando imediatamente à velha casa no estouro da Segunda Guerra. Voltou como técnico do Huracán, que apesar das numerosas taças nos anos 20 não havia sido oficializado como “grande” pela AFA em 1936, pelo então baixo número de sócios. O velho ídolo quase levou o Globo a novo título.
Um memorável Huracán virou justamente o primeiro a bater em um mesmo torneio os cinco grandes: Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo, todos abatidos no primeiro turno, no qual La Quema terminou líder. A campanha rendeu a maior goleada huracanense no clássico contra o San Lorenzo na casa rival (5-2), mas a defesa falha, que chegou a levar de 9-1 do Lanús, pesou. Foi vice. O Huracán, por outro lado, angariou sócios de forma meteórica. A ponto de seis anos depois, ter 23 mil associados, só quinhentos a menos que o Boca. Nascia o apelido de “Sexto Grande”. Mas o treinador não ficaria: encerrado o campeonato, rumou ainda em 1939 justamente ao rival San Lorenzo… e à seleção.
No vizinho, começou promissor, com seus novos comandados brilhando no Brasil em excursão na virada de dezembro de 1939 a janeiro de 1940: 5-1 no Botafogo, 1-0 no Vasco, 1-0 no Flamengo, 0-0 com o Botafogo, 0-0 com o Flamengo, 0-0 como Vasco e 4-2 no Vasco, além de 6-1 em um combinado com o Independiente contra uma seleção carioca. Na seleção, o antigo artilheiro, de cara, conseguiu entre fevereiro e março de 1940 as maiores goleadas sobre o Brasil, pela Copa Roca: 6-1 e 5-1, com a maioria dos gols vindos de ex-comandados no Huracán, Herminio Masantonio e Emilio Baldonedo.
Podendo conciliar o cargo na seleção com os clubes, ele acabou não sendo duradouro como sanlorencista (1940, dando lugar a Oscar Tarrío ao longo da temporada) e nem no Estudiantes (1941), com discretos 9º e 8º lugares, respectivamente. Voltou ao Huracán em 1942, sendo 3º colocado e campeão da Copa Adrián Escobar, torneio de pós-temporada prestigiado que reunia os sete primeiros colocados em jogos-relâmpago de 40 minutos. O Globo seria novamente 3º em 1943, mas Stábile não encerrou o ano lá: assumiu em outubro um delicado Ferro Carril Oeste em luta contra o rebaixamento. Permaneceria no FCO até agosto de 1945 e, embora a melhor colocação tenha sido um 13º, soube salva-lo de quedas. Os maiores êxitos à frente de clubes viriam no Racing: La Academia não era campeã desde 1925 e sob El Filtrador garantiu o primeiro tricampeonato da era profissional, entre 1949-51. É o técnico que mais durou no time de alviceleste de Avellaneda, de 1946 a 1953.
Todos esses trabalhos acabaram ofuscados pelo que fez na seleção, onde passou quase vinte anos ininterruptos no cargo. Ganhou com diversos jogadores – ou seja, sempre reciclando o time-base – as Copas Américas de 1941, 1945, 1946, 1947, 1955 e 1957. Foi tri seguido, um recorde na competição, de 1945 a 1947 mesmo com só um titular absoluto (Félix Loustau). Transformou outro pupilo de Huracán, o meia Norberto Méndez, em centroavante na seleção (invertendo-o com Adolfo Pedernera). E Méndez, depois treinado por Stábile no Racing tri de 1949-51, viraria o maior artilheiro das Copas América com 17 gols em 17 jogos. Tudo apagado pelo vexame na Copa de 1958…
Os hermanos tiveram na estreia uma derrota encarada como compreensível, para a então campeã, Alemanha Ocidental, por 3-1. A normalidade parecia voltar com outro 3-1, dessa vez favorável, sobre a Irlanda do Norte, na segunda rodada. E então veio a catástrofe: a Albiceleste levou de 6-1 da Tchecoslováquia na terceira partida e caiu na primeira fase. Vexaminoso por si só, o placar também representa até hoje a mais elástica goleada já sofrida pela seleção.
Stábile havia recusado propostas mais vantajosas para seguir na Albiceleste e se amargurou: “perdi o último round e se esqueceram de vinte anos de trabalho honrado”. Afinal, foram 75% de pontos em disputa obtidos, com 85 vitórias, 21 empates e 21 derrotas em 127 jogos – e 323 gols marcados. A Segunda Guerra já havia evitado que se consagrasse ainda mais na história das Copas, assim como outros fatores políticos fizeram a AFA recusar participar das de 1950 e 1954.
Demitido após o desastre na Suécia, ele até voltou brevemente em 1960 à seleção na terceira e última edição do Campeonato Pan-Americano (não confundir com os Jogos Pan-Americanos), tentativa de torneio de futebol que unia as seleções da Conmebol às da Concacaf. A lenda retirou-se como campeã, como merecia. O ano de 1960 rendeu ainda uma outra última glória, no Independiente, na época visto como o gigante argentino em jejum: doze anos.
José Curti começara o ano treinando o Rojo e mas foi substituído ainda na pré-temporada por uma dupla técnica formada por Stábile e Roberto Sbarra. Eles tiveram êxito e devolveram o time ao título. Ainda que na prática Stábile fosse mais um assistente (a ponto de muitas vezes apenas Sbarra ser creditado como técnico daquele elenco), ele ainda é o único treinador campeão na dupla de Avellaneda – outro feito ofuscado por aquela artilharia de 1930.
O ex-artilheiro virou diretor da escola de árbitros e comentarista na rádio e televisão. Ainda assim, o livro Quién es Quién en la Selección Argentina relata no perfil do craque que ele faleceu “apenado pelo esquecimento e pela falta de gratidão”. Falta de cuidado que infelizmente segue ainda hoje: diversos meios sérios de comunicação divulgam como se dele fosse a foto colorida (e por demais nítida) do músico Sergio Pángaro, fantasiado para a revista Rolling Stone em produção artística feita já nos anos 2000…
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