Carlos Bianchi e um Omar matador apelidado de Turco. Não, não necessariamente esses elementos se referem ao Vélez dos anos 90 e sim ao grande antecedente da maior fase do clube. Se até 1993 o time do bairro de Liniers só tinha um título argentino, não o devia exatamente a Bianchi, no máximo um 12º jogador pois o centroavante titular, embora não fosse ainda Omar Asad, era Omar Wehbe. Há 50 anos, com três gols deste e sob a regência do outro W, o meia Daniel Willington, La V Azulada era pela primeira vez campeã da primeira divisão, coroando anos de dedicação de quem dá nome ao estádio Fortín: José Amalfitani.
Don Pepe Amalfitani associara-se ao clube ainda nos anos 10 e já nos anos 20 assumiu pela primeira vez a presidência fortinera. Voltou ao cargo em momento duríssimo, em 1941. O clube era o penúltimo em número de sócios na elite, da qual havia sido rebaixado (pela única vez em sua história) no ano anterior. Perdeu o estádio e esteve a ponto de fechar as portas. O primeiro título argentino do time veio na segundona, na edição de 1943. Foi nesse período conturbado de superação também que o clube, então sediado no bairro de Villa Luro, mudou-se para o de Liniers, em área então inóspita. Falamos aqui.
Amalfitani seguiu então ininterruptamente pela presidência velezana. Austero, priorizava a reestruturação do Vélez como um clube social, não como um mero time de futebol. Maçom, apregoava que cada criança arrancada da rua e cada sócio novo eram um título, e somente em 1953 o time realmente brigou pela taça. Ficou como vice, a quatro pontos do River. Só outra vez chegara tão alto, com o vice de 1919, a seis pontos do Racing. Pois os dois levariam simultaneamente troco em 1968. Em 1962, o salto gradual da gestão Amalfitani se escancarava: o clube já era o quarto com mais sócios no país.
O Vélez, após chegar a ficar em penúltimo em 1963, já vinha gradualmente se intrometendo nas primeiras colocações. No embalo da artilharia de Juan Carone, foi bronze em 1965, quarto em 1966, terceiro em seu grupo no Metropolitano de 1967 (a dois pontos de classificação aos mata-matas), terceiro geral no Nacional de 1967 e líder de seu grupo no Metropolitano de 1968 – onde caiu na semifinal com o Estudiantes que em semanas ganharia o Mundial em Old Trafford sobre o Manchester United – treinado, aliás por Osvaldo Zubeldía, cujo estilo resultadista foi talhado no Vélez dos anos 50, comandado por um ex-jogador vencedor da segundona de 1943, Victorio Spinetto.
O Nacional de 1967, já havia visto Daniel Willington ficar entre os artilheiros. Era um santafesino crescido em Córdoba, com a distante ancestralidade inglesa (de um bisavô) já diluída em fenótipo caboclo. Veio do Talleres em 1963 para dar a cota de arte naquele Vélez sessentista. A ponto de, a despeito da péssima campanha do clube naquele ano, ter integrado a seleção na conquista da Copa das Nações em 1964, logro mais expressivo da Albiceleste até a Copa de 1978. Era daqueles meias armadores reconhecidos pela classe mas por vezes criticado por falta de regularidade. Chegou mesmo a ser barrado pelo técnico Manuel Giúdice (credenciado como comandante das primeiras Libertadores do Independiente e do futebol argentino, no bi de 1964-65) em 1968 antes de fazer por merecer o retorno.
Omar Turco Wehbe, por sua vez, veio das categorias de base, estreando no time adulto na última rodada de 1965 e superava outra questão: vários meses inativo após séria lesão em 1967. Bianchi, por sua vez, ainda era um Carlitos e não El Virrey, a quem apenas Lionel Messi superou (somente neste ano) como argentino com mais gols em campeonatos nacionais no mundo – feito ofuscado pelo sucesso ainda maior que Bianchi teria como técnico. Promovido da base em 1967, ainda não havia se firmado mas já fazia barulho: o segundo gol de sua carreira, em 14 de julho de 1968, encerrou a maior invencibilidade vista até então por um goleiro no país, ninguém menos que a veterana lenda Amadeo Carrizo – exatamente seu ídolo; Bianchi era torcedor do River na juventude por causa dele.
Longe do ataque, o nome mais querido é o de José Miguel Marín, da seleção nas Olimpíadas 1964. A elasticidade lhe renderia o apelido de El Gato, que no México, onde ganhou meia dúzia de títulos pela Cruz Azul, virou El Superman. Marín, para muitos só superado por José Luis Chilavert entre os goleiros fortineros, infelizmente, faleceu jovem, de um ataque cardíaco um dia depois da conquista de 1968 fazer 23 anos, em 1991. Por sinal, Bianchi quase foi com ele à Cruz Azul em 1971, mas a AFA vetou transferências de menores de 22 anos e sua ida ao México se reduziu a uma lua-de-mel em Acapulco.
A taça teve a marca da administração de José Amalfitani, mais preocupada em formar jogadores e só complementar os caseiros com certeiros bons e baratos ao invés de medalhões: dos principais campeões há 50 anos, Luis Gallo e Néstor Sinatra também vinham das inferiores, como Wehbe, Bianchi e Marín. José Luis Luna era refugo de Boca e River. Roberto Moreyra veio do Peru. Alberto Ríos, do Colón. Iselín Santos Ovejero, de Mendoza. Luis Atela, do Lanús. Mario Nogara, do Unión. José Solórzano e Eduardo Zóttola, do Atlético Tucumán. O Torneio começou em setembro de 1968 e foi travado em turno único entre 16 participantes em meio ao turbilhão daquele ano. Ficaria marcado pela enorme disputa: só cinco pontos separaram os líderes do 8º, o minúsculo Los Andes, rival original do Banfield (e onde brilhava Alfredo Obberti, depois maior artilheiro estrangeiro do Grêmio no século XX).
La V Azulada estreou contra os interioranos, batendo por 3-1 o San Martín de Tucumán fora de casa (com dois de Bianchi, inclusive) e o Belgrano pelo mesmo placar, com outro de Bianchi. Veio então derrota de 2-1 para o San Lorenzo, que em agosto se tornara o primeiro clube campeão profissional argentino de modo invicto, seguido de empate em casa com o Racing em 1-1. Outubro veio e, em meio às Olimpíadas do México asseguradas com um massacre em duzentos protestantes a dez dias de abertura, Bianchi anotou dois em um 4-2 no Rosario Central. Nesse jogo, Wehbe fez seu primeiro gol no Nacional.
O Fortín foi em seguida derrotado pelo Boca, recuperando-se com um 2-0 (com outro de Bianchi) sobre o Lanús e, sobretudo, com um 3-0 no Estudiantes apenas onze dias após os platenses ganharem o mundo. Wehbe marcou duas vezes. Chegou novembro e o Vélez saiu com o 0-0 em sua visita ao Los Andes para em seguida bater o River por 2-1, com outro gol do Turco. Mas o Colón fez valer seu Cementerio de Elefantes e venceu por 3-1, com Wehbe descontando. No dia 24, quando os acordes do “Álbum Branco” dos Beatles (lançado na antevéspera, com sua “Revolution”) já ressoavam no planeta, veio a primeira exibição realmente marcante: em Avellaneda, La V surrou por 5-2 o Independiente. Wehbe anotou dois, assim como Mario Nogara. O reaparecido Willington fez o outro da visita.
No primeiro dia de dezembro, Wehbe deu sequência à sua explosão no campeonato. Marcou cinco vezes em um 11-0 no pobre Huracán de Ingeniero White, ofuscando os quatro gols do colega José Luis Luna (Bianchi fez outro). O que poderia pejorativamente parecer um excesso se revelaria essencial. No dia 8, quando o disco lançado na antevéspera já era Beggar’s Banquet dos Rolling Stones e sua “Sympathy for the Devil”, El Turco anotou o único gol do duelo em Mendoza com o Independiente Rivadavia. O dia 15, dois dias após o AI-5 brasileiro, reservaria a rodada final e nela o Vélez bateu por 2-0 o Huracán. Fim de campeonato? Ainda não.
A recuperação tardia de Wehbe a embalar o clube ainda não era suficiente para o time ser campeão na ocasião. Racing e River estavam à frente e fariam em paralelo um confronto direto exatamente naquela última rodada: quem vencesse era campeão. Campeã mundial no ano anterior, a Academia seguia fortíssima, capaz de bater por 4-1 o rival Independiente no Clásico de Avellaneda válido pelo torneio, por 4-1 em Mendoza o “outro” Independiente (Rivadavia), por 4-0 o San Martín, além do 3-1 naquele Estudiantes campeão mundial. O River é quem tinha a imagem de time azarado e em jejum: perdurava desde 1957 e já era o maior de sua história profissional. O Millo também batera o Estudiantes (2-1) e tinha como grandes resultados o 7-0 no Independiente Rivadavia, o 3-0 em Córdoba sobre o Belgrano e o 5-1 no San Martín.
O Racing recebeu o River e os astros se alinharam para o Vélez: a dupla empatou em 1-1 e permitiu que os fortineros se igualassem na liderança, todos com 22 pontos – e isso que Boca e Rosario Central finalizaram o torneio com 21, fazendo de tudo para manterem-se vivos (o Boca fez 8-0 no Huracán de Ingeniero e o Central, 3-0 no Independiente). Estava forçado um triangular. Os três jogos extras ocorreram no estádio neutro do San Lorenzo. Quatro dias após o 1-1, Racing e River abriram a miniliga e dessa vez o River venceu. E teria vencido o Vélez de virada para se coroar campeão no dia 22; Luna abriu o placar empatado por Daniel Onega. Mas o gol certo do millonario Jorge Recio foi impedido pela mão do beque Luis Gallo. O árbitro Guillermo Nimo não viu e não apitou nada – ainda que Gallo precisava dormir aquela noite atrás das grades, por determinação da moralista ditadura de Juan Carlos Onganía a qualquer jogador implicado em incidentes.
Ao River, restava torcer por um empate entre Vélez e Racing. Mas os velezanos tinham até sorte de campeão: Alberto Ríos, um dos pulmões do time e capitão, não pôde jogar, suspenso. Mas seu substituto, Roberto Moreyra, uma aposta do técnico Manuel Giúdice, abriu o placar logo no início com um canhotaço no ângulo direito do futuro santista Agustín Cejas. O veterano Humberto Maschio, jogador da Itália na Copa 1962 e glória racinguista que jogava pela última vez, empatou. O primeiro tempo ficava em novo 1-1 e o título ia ao River. Aí apareceu o artilheiro. O detalhe é que Wehbe estava lesionado e jogava sob infiltrações; até pensara em não ir a campo, mas o colega Iselín Santos Ovejero (depois grande ídolo do Atlético de Madrid) decretou-lhe “vais jogar sim ou sim”.
Curiosamente, o médico que atendeu Wehbe era do Ferro Carril Oeste, o tradicional rival velezano. El Turco correspondeu a insistência com dois gols. O artilheiro adversário Jaime Martinoli descontou aos 44, mas o suspense durou pouco: Wehbe, de pênalti, fez seu terceiro no fim. River e Vélez estavam igualados, mas não haveria mais jogos: a melhor campanha pré-triangular fez o Vélez campeão. O critério de desempate não foi o número de vitórias (que já era favorável ao Fortín, dez contra nove), mas o de gols: 39 a 35. Eis a importância daqueles 11-0, com os cinco gols do Turco Wehbe fazendo a precisa diferença para o título – e para a artilharia geral do Nacional de 1968.
Infelizmente, aquele Vélez não se testou fora das fronteiras. A explicação oficial era a negativa da AFA em continuar “descaracterizando” a Libertadores enviando também vice-campeões. Mas, ao menos no caso velezano, a causa real era a contenção de custos pregada por Amalfitani. Foi um de seus últimos atos; a taça de meio século atrás foi justamente uma última homenagem em vida à dedicação ao maior cartola do futebol argentino: ele viria a falecer em 14 de maio de 1969, data desde então celebrada na AFA como “o dia do dirigente”. O Vélez, com muitos remanescentes de 1968, encantou ainda mais em 1971, quando triscou novo título. Mas a política de Amalfitani seria alterada, com Liniers abrigando medalhões e medalhões descompromissados. A reconquista demoraria 25 anos, seguindo a cartilha de Don Pepe com pratas da casa lapidados por Bianchi e seu assistente Willington: sete dos titulares campeões da Libertadores de 1994 eram pratas-de-casa, mais do que qualquer outro vencedor de La Copa.
Mas essas histórias serão melhor detalhadas no ano que vem. Feliz aniversário também aos 109 anos do Vélez, que serão comemorados em 1º de janeiro. E feliz 2019 a todos!
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