É 16 de outubro de 1968, um dia histórico ao esporte mundial. Nas Olimpíadas, os corredores negros Tommie Smith (ouro) e John Carlos (bronze), apoiados por Peter Norman (prata), não ligam para as vaias por misturarem política com esporte em pleno hino ianque após a prova dos 200 metros. Longe dali, no interior inglês, o Estudiantes chegava a seu apogeu futebolístico. Até pouco menos de um ano antes, era um tradicional, mas nanico, clube de expressão quase que restrita a La Plata; e não era campeão da elite argentina desde 1913. Torna-se então campeão do mundo. E sobre o tão celebrado Manchester United, em Old Trafford. Se Juan Sebastián Verón (e Marcos Rojo) jogou nos dois, o gol do título foi justamente de seu pai, o também craque Juan Ramón Verón.
Em 1967, o Pincharrata começara a fazer história. Desde o início da era profissional, em 1931, só os chamados “cinco grandes” (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo) haviam sido campeões. O último clube “pequeno” campeão fora justo o rival Gimnasia, em 1929. E o próprio Gimnasia, hoje tão sofrido, quase foi considerado oficialmente clube grande, em 1949, quando a oficialidade do termo terminou. Em 1967, então, os alvirrubros venceram o Metropolitano: veja nosso relato clicando aqui. E ainda foi vice do Nacional. A ascensão seguiu e em 1968, sobre a Academia do Palmeiras, o emergente Pincha abocanhou a Libertadores: contamos aqui.
Paralelamente, o Manchester United de Charlton, Best e Law tornava-se o primeiro inglês a vencer a Liga dos Campeões, dez anos após o acidente aéreo (Charlton foi um dos sobreviventes) que brecara os Red Devils. Se desde 1982 a rispidez entre argentinos e ingleses deve-se às Malvinas, na ocasião o tempero extra foi a Copa 1966, ainda fresca na memória de ambos os lados. O capitão Rattín teria sido injustamente expulso e revidou desrespeitando uma flâmula britânica pendurada na bandeirinha de escanteio. O técnico da seleção inglesa, Alf Ramsey, estigmatizou os alvicelestes como Animals. E foi ainda sob esse olhar que o tratamento argentino ao jogo foi visto e repetido negativamente como “bárbaro” pelos ingleses em 1968.
No ano seguinte, aquele mesmo Estudiantes protagonizaria uma final brutal com o Milan na Argentina, simbolizada pelo adversário Néstor Combín (argentino do time italiano e que defendia a seleção francesa) empapado em sangue. Em 2015, o alvirrubro Raúl Madero explicou à revista El Gráfico porque Combín foi perseguido em especial naquela ocasião: “no jogo na Itália, que eles nos ganharam por 3-0, veio zombar. Disse em um momento a Aguirre Suárez: ‘negro, não esquentes mais, porque em um mês eu ganho o mesmo que você em dois anos’. ‘Ali rompo tua cabeça’, respondeu. E na Bombonera lhe meteu um socão e lhe disse ‘agora se foda’. A confusão começou com a provocação de Combín ali”.
Mas o largo tempo entre 1969 e o “esclarecimento” em 2015 foi suficiente para sedimentar no inconsciente coletivo que todas as vitórias daquele Estudiantes se deveram à porradaria e outras deslealdades. Especialmente quando o lado derrotado é uma romanceada equipe britânica estrelada pelos divinos Bobby Charlton e George Best, mas que também tinha no volante Nobby Stiles um brucutu. Não são poucos os veículos respeitados a propagar o reducionismo: aquele Manchester United só poderia ter perdido por causa da catimba argentina. Vale o convite a ver, porém, a versão dos materiais da época, menos propensos a eventuais peças pregadas na memória depois de tanto tempo.
Em 2017, Verón, a respeito desse reducionismo ruim, reclamou em longa entrevista à mesma revista El Gráfico: “irrita um pouco sim, mas fazer o quê? Contra isso não se pode. O que vejo é que não perdíamos quase nunca, custava muito que nos ganhassem, que nos criassem situações, por alguma coisa ganhamos três Libertadores seguidas e fomos finalistas de uma quarta, ganhamos um campeonato e fomos finalistas no outro, ou seja, alguma qualidade a equipe tinha. A princípio, éramos uma equipe simpática, humilde; depois, quando os grandes não podiam nos ganhar e não éramos negócio para ninguém, a imprensa não gostou de porra nenhuma e deixamos de ser simpáticos e humildes”.
Quase centenária, a El Gráfico já circulava na época e naturalmente reportou as duas finais. Após o jogo de ida, chegou a comentar o caso de um enviado do sensacionalista Daily Mail que já demonstrava má impressão de antemão: teria enviado por telex a Londres que “entra Estudiantes e se ouve uma gritaria selvagem que faz pensar em todo o horrível que poderá ocorrer nessa partida”. A revista argentina admitiu que a partida, realizada em La Bombonera mesmo, foi um espetáculo pobre, mas pela fraca noite dos dois times. Segundo dela, “houve patadas. Como em qualquer encontro. Mas fazer da violência o tema central do jogo é ridículo e falso”. E a El Gráfico daqueles tempos era uma das críticas mais ferrenhas ao jogo ardil do Estudiantes.
Aquele Pincha era um time que, conhecendo suas limitações técnicas, irritava quem procurava espetáculo – mas mais por forçar impedimento adversário (tática então incomum) e abusar da bola parada. O vocábulo antifútbol já era usado, mas mais nesse sentido do que para ser sinônimo de violência coletiva. O editorial pós-ida da revista também registrou, com parênteses da época mesmo, que “o curioso de tudo isso é que os dirigentes (Matt Busby reconheceu uma vez que viu as fotos de El Gráfico que o impedimento do gol era certo) e jogadores amenizaram suas declarações, reconheceram que o público foi excepcionalmente tranquilo e que no campo, a não ser a guerrilha Bilardo-Stiles, foi um trâmite duro e nada mais…”.
Ainda segundo o relato da revista na época, “as conversas depois do jogo continham, naturalmente, algumas frases de inconformismo, mas quando se lhes perguntava se eles concordavam com as apreciações dos enviados do jornalismo, negaram com bastante firmeza. O mesmo sucedeu com outros dirigentes (Stanley Rous, por exemplo) e com jornalistas estrangeiros não-ingleses”. Busby era o técnico do United, o mais expressivo e longevo dele antes de Alex Ferguson. Rous era o presidente da FIFA. O impedimento mencionado ocorreu aos 37 do primeiro tempo: Charlton cobrou falta e Sadler emendou para o gol. Seria um gol legítimo se o colega Foulkes, em posição irregular forçada por aquele Estudiantes, não obstruísse a ação e visão do goleiro Poletti. Curiosamente, Ademir da Guia também reclama de um gol anulado do Palmeiras em 1968, mas já demonstramos (aqui) que em compensação os paulistas chegaram a ter um gol irregular validado ali.
Na Argentina, a tensão se resumiu aos 90 minutos: “apesar das controvérsias surgidas sobre o campo de jogo durante o primeiro encontro, quero dizer que o Club Estudiantes dispensou uma acolhida muito calorosa ao Manchester United. Em nossa estadia em Buenos Aires, fomos tratados como reis e não se poupou esforço algum para facilitar-nos quando precisamos e nos foi providenciado um completíssimo programa de entretenimentos”. Essas palavras foram de Louis Edwards na época ao United Review. Edwards era nada menos que o presidente dos Red Devils.
Outros dizeres dessa revista, de um jornalista de Manchester: “os argentinos estavam de fato muito aborrecidos pela forma como a imprensa britânica reportou o jogo. Sua Associação de Futebol enviou carta formal de reclamação a Sir Stanley Rous descrevendo as reportagens como vitriólica e ferindo gravemente não só a seu futebol como também à sua cultura e a seu povo. Eu penso que eles foram muito sinceros no seu protesto. (…) Certamente espero que o Estudiantes receba uma boa vinda esportiva porque (…) a hospitalidade argentina foi tremenda”. O Manchester United viera à Argentina vestido todo de azul; assim batera o Benfica de Eusébio na final europeia. Juan Ramón Verón, pai de Juan Sebastián Verón, não jogou bem a primeira final. Mas as estrelas inglesas também não.
O popstar Best foi bem marcado por Malbernat (descrito como “um fino jogador” pela tal revista oficial do United) e Charlton, por Togneri, embora a própria mídia argentina admita que ele sentiu uma pancada de Pachamé na panturrilha direita. Quanto à Law, “pensamos que nem deve ter se banhado do jogo, porque se limitou a vê-lo sem intervir para nada no que ali ocorria”, também escreveu a El Gráfico. “O campeão da Europa decepcionou em todo sentido. Inclusive defendendo, ainda que durante 85 dos 90 minutos acumulou 8 e até 9 homens em posições de retaguarda. Suas famosas individualidades não se viram. comparado com os anteriores campeões da Europa que nos visitaram (Inter duas vezes e Celtic no último ano), a equipe inglesa foi facilmente LAMENTÁVEL”.
O único gol veio aos 27 minutos e o fato de surgir em bola mandada para escanteio pelo atacante Charlton para impedir gol de Pachamé sobre um vencido goleiro Stepney é uma mostra de como o United jogou retrancado. Ribaudo cobrou, Stepney não neutralizou nem seus zagueiros e Conigliaro fez de cabeça. Dez minutos depois, veio o impedimento no gol inglês. No segundo tempo, os visitantes resolveram jogar para manter a desvantagem mínima. O jogo terminou com vinte chutes a gol do Estudiantes. E dois do Manchester… Stiles ainda saiu expulso por reclamação após novo impedimento (os ingleses foram surpreendidos pela tática e ficarem 13 vezes irregulares contra 2 dos argentinos), ao fim.
Na mesma entrevista de 2017, Verón pai relembrou o planejamento dos argentinos para a volta na Inglaterra, com menções à ausência do tal Stiles: “El Vasco Urriolabeitia, ex-jogador do Estudiantes, estava trabalhando no clube, e foi ver a final da Europa a pedido de Osvaldo (Zubeldía), e trouxe toda a informação. Eles tinham um jogador-chave que manobrava tudo, o 5, Nobby Stiles, um louco. Quando viajamos à Inglaterra o vimos em um jogo contra o Liverpool e manobrava tudo: sua equipe, o árbitro, os rivais, a todos. Teve o azar de que o expulsassem aqui. O clube escolheu um bom lugar: nos concentramos em um povoadozinho a meia hora de Manchester, em meio a uma tranquilidade absoluta, se até vinham os garotos da zona jogar conosco, um lugar bárbaro”.
Na véspera, os argentinos depositaram flores em memorial às vítimas da tragédia de Munique que abatera dez anos antes o oponente. Nada que afastasse um clima de guerra no solo britânico, fomentado via deturpação dos tabloides do que ocorrera na Argentina. Era Animals! para lá e Animals! para cá. Fúria que chegou até aquele lugar tranquilo em que o Estudiantes estava concentrado, com a vidraçaria sendo apedrejada. Mas para Verón pai, os argentinos estavam bem escaldados: “já em campo, para nós não mudou muita coisa, lembre que vínhamos de umas batalhas tremendas na Libertadores”. Madero, que já tinha na época diploma de médico (profissão que exerceria na seleção argentina na Copa de 1986), explicou:
“Tudo se armou com a reportagem que fez um jornalista inglês, David, não me lembro o sobrenome. Veio me fazer uma entrevista. Comecei respondendo em inglês, que nesse momento falava bastante bem. ‘Me diga, o senhor fala espanhol?’. Não. ‘Alguma vez jogou futebol profissional?’. Não. ‘Você toca piano?’. Não. Então me levantei e comecei e tocar Chopin. Voltei: ‘Diga-me então, David, quem de nós dois é um animal?’. O cara ficou roxo. Depois quis apostar comigo mil libras que nos metiam cinco gols. ‘Não, façamos assim: se o Manchester ganhar, vou onde estiver você e lhe encho uma taça de champanhe; e se nós ganharmos, vem você e faz o mesmo’. E o cara teve que vir nessa noite ao povoado onde parávamos para me encher a taça com champanhe. Jamais pensaram que poderiam perder. Quando terminou o jogo, [o locutor] José María Muñoz mandou nos buscar, eu subi a escadaria, no meio da arquibancada, porque Muñoz narrava ali, e enquanto subia, escutava os torcedores: ‘I don’t believe it‘, repetiam”.
A característica chuva de Manchester só deixou o gramado mais pesado. No primeiro tempo, os argentinos preocuparam-se em não perder a vantagem e assim manter a calma. Com algum sucesso, apesar de cruzamentos afoitos e chutando para longe qualquer bola que escapava dos Red Devils, conseguiram. Ainda mais porque marcaram cedo; já aos 7 minutos, numa típica jogada inglesa: Verón, de costas para Stepney, desviou dele um chuveirinho de Conigliaro. Para Madero, tudo ideia prévia do técnico Osvaldo Zubeldía: “a ideia foi de Osvaldo: ‘Verón vai gerar uma falta no lado direito do Manchester, Raul cobra o tiro livre, nos metemos todos no primeiro pau, que esses caras não estão advertidos e vão se descuidar no segundo pau, e Juan entra por trás e mete’. E foi assim. Era um marechal de campo o sujeito!”.
Verón deu versão parecia: “Osvaldo nos pedia que gerássemos faltas perto da área e com Raúl, que era o cobrador, nos entendíamos de memória. E foi assim, em poucos minutos nos fizeram uma falta sobre a esquerda e esse primeiro cruzamento terminou em gol: Aguirre Suárez e Togneri atraíram a marcação, eu me meti por trás e cabeceei mudando de trave para o goleiro. E… pronto, e aos rivais lhes custava virar um gol, imagine dois! Não chegaram a nos metralhar, não lembro jogadas de gol deles, apesar da grande quantidade de cruzamentos que levantaram”. Ao fim, Best e Madero foram expulsos por agressões mútuas. Até houve tempo para empate, mas tardio: aos 45 do segundo tempo, a linha de impedimento praticada pelo Estudiantes falhou a tempo de Morgan e Kidd (e não Charlton ou Law…) ficarem validamente sozinhos contra Poletti. Morgan deslocou o goleiro argentino e marcou.
O empate não bastou e o Estudiantes terminou campeão. Se não foi o primeiro campeão mundial argentino, foi o primeiro a não precisar de jogo-extra para isso, saindo campeão na casa adversária – até hoje, é o único time sul-americano campeão mundial dentro da Inglaterra, com o Charlton e colegas recusando-se a trocar de camisas (veja no segundo vídeo ao fim). O Pincha venceu outras três vezes a Libertadores, mas só naquela vez conseguiu dar uma volta olímpica mundial. Ou quase. Ela teve que ser dada no retorno a La Plata. Inclusive, gerou-se em 2018 uma campanha para detectar o garoto que se intrometeu na volta para que participasse novamente dos festejos (infelizmente, ele já faleceu, mas sua família pôde ser localizada).
Pelo menos até 1968, aquele Estudiantes era uma equipe que sabia perder, ao menos até então; em agosto daquele 1968, havia chegado à final do campeonato argentino, perdendo-o para o San Lorenzo, aplaudindo na volta olímpica pelos vices. Coisa que não ocorreria na fina Europa: as arquibancadas derrotadas trataram de reprimir as comemorações, aos cuspes e garrafadas. “Para ser GENTLEMEN como eles, preferimos ser ANIMALS dentro da nossa fácil, aberta, humana e franca maneira argentina…”, concluiu a El Gráfico pós-título. Cinquenta anos depois é que houve alguma justiça aos campeões, com Marcos Rojo e o ex-adversário Pat Crerand representando uma risonha recepção no Old Trafford a The Witch Verón (como La Bruja foi narrado pela BBC na época) e outros dos vencedores de 16 de outubro de 1968.
Atualização: por volta das 16 horas, a Umbro divulgou a camisa comemorativa dos 50 anos, que mistura a toda branca utilizada no primeiro tempo com a branca com duas listras vermelhas no lado esquerdo, usada no segundo. Na parte interna da gola, consta a mensagem: “não se chega à glória por um caminho de rosas”.
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