O rosto indígena e os quase 1,90 metros de altura lhe renderam na Calarcá, montanha situada nos arredores da cidade colombiana de Armenia e onde habitava um cacique de igual gigantismo e nunca capturado pelos espanhóis. Na Argentina, Jorge Hernán Bermúdez, nascido naquela mesma cidade há exatos 50 anos, já se tornava simplesmente El Patrón bem antes de receber a braçadeira de capitão do Boca Juniors, onde esse zagueiro cheio de personalidade tem presença obrigatória em qualquer lista de maiores ídolos. Hora de relembrar não só o capitão do Boca 2000, mas também o homem também converteu o pênalti do título na Libertadores daquele ano – rendendo a comemoração cuja foto abre essa matéria.
Antes do Boca, já vivia uma final de Libertadores
Ele já cresceu no futebol. Era filho de outro Jorge Bermúdez, descrito pelo beque como um jogador até mais habilidoso – “era canhoto, jogava de lateral-esquerdo, de grande técnica e timming”, afirmou na longa entrevista dada à El Gráfico em 2010, de onde pegamos as aspas dessa nota. Esse ambiente rendeu um contato inicial com o futebol argentino, terra de origem de muitos companheiros do pai no Deportes Quindío.
Os elogios acima saíram sem falsa modéstia: “logo eu o superei na mentalidade vencedora e no caráter para tomar as decisões certas de minha carreira. Eu me iniciei no Deportes Quindío, minha paixão, mas sempre soube que tinha que ir embora para conseguir a figuração que queria. Meu pai jogou mais de 600 partidas com essa camisa, e o que mais vezes a vestiu, e hoje tem que pagar a bilheteria para entrar no estádio! Bem, te dizia: sempre busquei objetivos para crescer”.
Foi justamente essa acomodação do pai que desdobrou uma trajetória oposta do filho: “tive uma infância linda até os 11 anos. Era de classe média, ia a bons colégios, mas de um momento a outro a vida mudou: meu pai deixou de jogar futebol. E faltou tudo, porque meu velho não havia mais guardado nada. Nesse momento foi quando mais gostei de futebol. Que ironia a vida, não? Aos 12 anos, comecei a jogar a sério, via como uma salvação e uma revanche. Passei de jovem a adulto aos 12 anos. Me dei conta de que realmente contas os amigos com os dedos de uma mão. E sobram dedos”. O declínio foi tal que seus únicos calçados eram reservados ao colégio: precisava enfrentar descalço adversários de chuteiras.
“Levei pisões, mas jamais machuquei nem uma unha. Daí vem a fortaleza dos meus tornozelos, dos meus pés, a forma com que sempre pegava na bola. Aprendi muitas coisas ao sentir a bola com a pele”. Antes de estrear no time adulto do Quindío, teve uma primeira recompensa, convocado para o qualificatório realizado em abril de 1988 para o Mundial sub-20 que ocorreria dali a um ano. Ainda que por vias tortas: “foi de rebote. Haviam convocado um jogador da minha terra, mas não tinha a idade mínima, então me levaram. Apareci no hotel e o técnico me perguntou quem era, nem me conhecia, mas vi a oportunidade da minha vida, não podia me escapar”. O qualificatório, aliás, se deu justamente em Buenos Aires (entre os campos de Vélez, River e Ferro Carril Oeste).
“Tinha 15 anos [na verdade, 16, a poucos meses de chegar nos 17] e a partir daí tudo mudou. Deus começou a me dar outro caminho, e pude ajudar economicamente a minha família”, recordou Bermúdez. Ele e o goleiro Oscar Córdoba começaram naquela seleção a parceria vivida em diferentes (blocos de) carnavais: ainda no Atlético Nacional na época, Córdoba reencontraria Bermúdez no Quindío em 1990. O zagueiro estreara no time adulto em 1989, na esteira da participação honrosa no Mundial sub-20 – a Colômbia chegou aos mata-matas, caindo para o futuro campeão Portugal.
Bermúdez era o único representante do modesto Quindío naquela seleção. Embora o clube não chegasse tão longe, o zagueiro pôde saltar em 1990 para o poderoso América de Cali, ganhando já ali um primeiro título na carreira, emendado com um vice-campeonato em 1991. Em 1992, ele e sua Colômbia prevaleceram no pré-Olímpico de Assunção às custas do Brasil – embora os cafeteros caíssem ainda na fase de grupos dos Jogos de Barcelona. Em paralelo, Bermúdez amargou um pênalti perdido na eliminação na Libertadores contra o futuro finalista Newell’s. Mas o ano terminou com novo título colombiano.
Não era ainda o suficiente para Bermúdez integrar aquele vistoso ciclo da seleção adulta, até porque o América viveu relativa entressafra; só voltou a disputar o título em 1995, ano da tardia estreia de Bermúdez na seleção principal (em 31 de janeiro, derrota amistosa de 1-0 em Hong Kong para a Coreia do Sul). A medalha de prata foi o suficiente para colocar o defensor como titular na trajetória semifinalista da Copa América daquele ano; e o clube na Libertadores novamente, para a edição 1996. O 25º aniversário do xerife não passou em branco: um dia depois, ele comemorou o 1-0 sobre o River no jogo de ida da decisão. Mas, uma semana depois, seu clube reviveu a sina do vice-campeonato: em Núñez, o Millo conseguiu o 2-0 em lance marcado por uma falha bisonha de… Oscar Córdoba, colega de América desde 1993.
Amargura à parte, “do América soube que ia ao exterior quando nenhum jogador colombiano ia. Fui o primeiro zagueiro central do meu país vendido ao exterior, ao Benfica”, jurou ele, que integrou naquele 1996 parte de nova campanha campeã colombiana antes de partir para Portugal; no mesmo ano, também marcou dois de seus três gols pela seleção, fechando o 4-1 sobre o Chile em Barranquilla e abrindo o 2-0 em Caracas sobre a Venezuela, ambos pelas eliminatórias. Mas a experiência europeia foi curta: “joguei um ano, veio outro treinador, contratou Gamarra e vi que não ia jogar. E logo recebi uma chamada do Boca”.
Segundo Bermúdez, uma sondagem inicial boquense já havia ocorrido em 1996, no ciclo de Carlos Bilardo, com quem chegara a tomar um café na época. Em 1997, então, a equipe argentina negociava justamente com Córdoba e o treinador Héctor Veira anteviu a pertinência de trazer um zagueiro com quem o goleirão já estivesse entrosado. Veira, que buscava sobretudo personalidade nos reforços, aprovou na hora. Carlos Veglio, assistente técnico do futuro sucessor de Veira, corroboraria que um segredo do Boca que levantaria tudo era a personalidade: “se alguém corria um pouco, olhas Jorge Bermúdez e ele te dizia: tranquilo, eu pego ele’, e entre eles o caçavam e o botavam na gaiola”.
Cientes ou não dessa qualidade inata no zagueiro, os cartolas benfiquistas não pretendiam abrir mão dele, que teria então retrucado: “o futebol eu gosto de jogar, não olhar do banco para ganhar dinheiro. No outro dia viajei com minha mulher, que parecia uma louca, pobrezinha: em 24 horas, desarmar a casa e mudar de pais com os garotos. Pousamos em Buenos Aires com 9 malas e muitos sonhos”. Antes, nova Copa América. Tal como em 1995, quando caíram diante do Uruguai, os cafeteros pararam nos anfitriões – dessa vez, a Bolívia, nas quartas-de-final.
(Ainda sem braçadeira no) Boca
Ainda que trocar jovem a Europa pela América do Sul não fosse nada incomum na época, ele tinha razões pessoais: “era meu sonho, minha revanche pessoal. Dizia: meu velho se cansou de jogar com argentinos no Quindío durante 16 anos e nunca pisou na Argentina. Eu lhe assegurei que iria leva-lo para conhecer muitas partes. Assim foi. Lembro quando veio e se reencontrou com muitos desses ex-companheiros. A história com [Oscar] Pianetti é forte. Apenas cheguei no Boca perguntei por ele, e me disseram que trabalhava em uma oficina mecânica próxima do campo. Quando veio meu velho, fomos a essa oficina. Meu pai chorou muito nesse dia. Chorou pela emoção e pela tristeza, por reencontrarem-se e por vê-lo em uma situação econômica que não merecia. Eu estive ali e foi forte…”.
O tal Pianetti havia defendido a seleção argentina a brilhando no ataque do Boca na metade final dos anos 60. Bermúdez veio para ser zagueiro mesmo. Mas se deu ao luxo de já estrear marcando gol: o gol da vitória de 1-0 sobre o Cruzeiro, pela Supercopa de 1997. O time não foi longe, mas a partida serviu para criar o apelido mais usado para referir-se a Bermúdez, que havia chegado apenas três dias antes.
El Patrón nada tem a ver com Pablo Escobar, ao contrário do que possa pensar um fã de Narcos, onde o apelido foi tão usado pelos capangas do chefão (visto na Netflix também em El Patrón del Mal, aliás): “como havia chegado para ordenar a defesa, comecei a dar ordens a todos: ‘Christian olho lá, cuidado Rodolfo com este’. Então não sei que relator disse: ‘como pode ser que este cara que chegou há três dias dê ordens a todos..? Pois chegou o que manda, chegou El Patrón’. E pegou. Eu gosto”.
A volta de Maradona ao futebol, a última, naquele inverno de 1997 (Dieguito havia tirado um ano sabático para tratar-se contra as drogas), ofuscou talvez o maior mercado que o Boca fez no equilíbrio quantidade e qualidade: o mexicano Luis Hernández, destaque da Copa América recém-finalizada, e o peruano Nolberto Solano foram as exceções sem êxito daquele pacote que, além de Córdoba, incluiu também Walter Samuel, Martín Palermo (outro estreante naquele 1-0 sobre o Cruzeiro) e os gêmeos Guillermo e Gustavo Barros Schelotto.
Fez inicialmente dupla com Néstor Fabbri, veterano da seleção argentina da Copa de 1990. E seria o nome estável por anos no miolo de zaga, em parcerias posteriores com Walter Samuel, Aníbal Matellán e Cristian Traverso. “Foi um mau dos bons”, concluiria seu perfil na El Gráfico que elegeu em 2010 os cem maiores ídolos do clube: “era impassável El Patrón, te olhava feio com esse rosto indígena e te mordia os calcanhares, te respirava na nuca, te deixava sem alento… forte, veemente, expeditivo, valente e empreendedor, dava medo quando defendia e quando atacava”. E era um provocador quando necessário: “quando os jogadores do River veem a camisa do Boca, ficam pálidos”.
Bermúdez, de fato, foi decisivo já em seu primeiro Superclásico. Um duelo histórico por marcar justamente a última partida oficial de Maradona, embora ainda não se soubesse disso na época. Mas a partida já seria eternizada por outras razões. O River, que não vencia na própria casa desde 1990 o arquirrival, saiu na frente, mas precisou tolerar uma virada em que o colombiano contribuiu decisivamente: bloqueou o goleiro Germán Burgos de saltar na bola aérea que resultou no gol da virada… além do triunfo, o lance também serviu para começar a idolatria azul y oro em torno do autor do gol.
A torcida do River até hoje reclama que a jogada de Bermúdez teria sido faltosa. “Nada, e vou até a Corte Internacional se for preciso. Burgos veio para cortar e me coloquei no lugar correto para que chegasse antes de Martín. Lhe tapei, teriam que ter trazido um guindaste para me mover. Cravei os calcanhares na terra”. O gol levou a assinatura final de Palermo, ainda longe de ser o intocável artilheiro-mor boquense no Super: foi o primeiro dele na rivalidade. “Cada um foi fundamental no nosso pedacinho de ofício. Nessa equipe, cada um cumpria sua função”, declararia o colombiano – que foi avaliado pela El Gráfico como o jogador de a nota mais alta, um 8, dentre os homens em campo naquela partida tão especial.
A partida, como se não bastasse, era um tira-teima direto pela liderança do Apertura. Então, veio a tempestade da aposentadoria repentina de Maradona, dias depois. Abalado, o Boca sofreu na rodada seguinte sua única derrota no campeonato. O River até foi derrotado outra vez, mas empatou bem menos. Os xeneizes fizeram uma campanha abaixo de apenas outras seis na histórias do torneios curtos e calhou de uma dessas ser exatamente a daquele River. No primeiro semestre de 1998, o ciclo de Héctor Veira bambeou. Nada que tirasse Bermúdez da titularidade colombiana na Copa do Mundo, junto a Córdoba e a uma outra novidade cafetera no Boca: o volante Mauricio Serna.
Após o Mundial da França, o clube contratou Carlos Bianchi e o resto é história. Além de abrir a era mais dourada e de encerrar seis anos (e doze campeonatos) de jejum, aquele Apertura 1998 também foi apenas o primeiro (dos dois únicos) título argentino invicto do Boca no profissionalismo. A defesa sólida com Córdoba no gol, Hugo Ibarra e Rodolfo Arruabarrena nas laterais e a dupla Samuel e Bermúdez teve muito a ver – sofreram menos de um gol por partida, 18 ao todo, enquanto que apenas Palermo sozinho somou individualmente vinte gols no poderoso ataque xeneize. Mesmo em torneio de turno único, a taça pôde vir ainda na antepenúltima rodada.
Sem necessidade de adquirir novos jogadores no início de 1999, o time primeiramente superou sua própria marca de invencibilidade profissional, os 26 jogos que datavam de 1944. O ponto alto seguinte foi um Superclásico em que, após o Boca perder simplesmente seus dois goleiros principais por lesão durante o jogo (Córdoba e Abbondanzieri), precisando utilizar o terceiro na mesma partida (o obscuro Cristian Muñoz), Bermúdez ainda assim conseguiu abrir o placar, empurrando ao gol a bola ajeitada pela cabeça de Samuel após cruzamento do Guille Schelotto. O colombiano também terminaria expulso ainda antes do fim do primeiro tempo, mas a vitória viria por 2-1 – bem como o prolongamento da invencibilidade geral. Prêmio a quem teve de suportar em plenas férias em casa o sério terremoto que afetou em janeiro a sua Armenia natal.
E foi quinze dias antes do 28º aniversário que Bermúdez teve um primeiro momento de protagonismo solitário na história auriazul: em 2 de junho de 1999, um cabeceio dele garantiu vitória pelo placar mínimo sobre o Rosario Central. Mais do que permitir ao Boca já pôr uma mão na taça – garantida na rodada seguinte, ainda a antepenúltima -, o triunfo representou o 40º seguido de invencibilidade na liga profissional argentina, quebrando uma marca de 33 anos (a do Racing campeão mundial). Bermúdez esteve em 33 dessas partidas. Ironicamente, a série caiu justamente na rodada do título, assegurado apesar da derrota de 4-0 para o Independiente, tamanha a gordura já acumulada. A defesa estava ainda mais afiada: só onze gols sofridos.
O Boca não era bicampeão seguido desde 1976 e, também desde aquele ano, só havia comemorado outros dois títulos caseiros (1981 e 1992). Apesar disso, a Colômbia levou à Copa América uma seleção basicamente caseira. Por exemplo, prescindindo de Córdoba e de Faryd Mondragón, ídolo no Independiente (eram inclusive os arqueiros titulares nas Copas de 1994 e 1998, respectivamente), para levar como goleiros Miguel Ángel Calero e o veteraníssimo René Higuita. Serna foi outra ausência e Bermúdez seria exatamente uma das raras exceções. Os 3-0 sobre a Argentina, na recordada noite dos três pênaltis perdidos por Palermo, viraram anticlímax com a queda ainda nas quartas-de-final para o Chile.
Patrón e também capitão
O Boca, por sua vez, até lutou no segundo semestre de 1999 por um tricampeonato seguido ainda inédito para si. Mas a séria lesão de Palermo comprometeu, mesmo com o time sabendo vencer seis e empatar duas das oito partidas finais. Deu River (que, na campanha, também encerrou nove anos de jejum no próprio Monumental diante do arquirrival), ao menos por enquanto. O então capitão Diego Cagna rumou ao emergente Villarreal e a braçadeira naturalmente foi repassada ao colombiano. Ou nem tão naturalmente assim: “não esperava. Nesse dia tive mais nervos do que quando estreei no Boca”, declararia. E nem a longa ausência de Palermo ou a de Serna impediram o ápice (até então) da Era Bianchi.
Às custas de um morno Clausura 2000, o Boca reconquistou a Libertadores depois de 22 anos, isolando-se novamente à frente do River. Somente El Patrón e Córdoba estiveram em todas as partidas da campanha, com Bermúdez ausente em apenas 45 minutos. E presente, sobretudo, naqueles passos lentos para cobrar o pênalti decisivo contra Marcos, cravando forte rende à trave esquerda um presente antecipado de 29º aniversário – a glória no Morumbi se deu em 21 de junho. Sobre o lance que mais o eternizou no clube, declararia o seguinte:
“Uns dias antes, meus companheiros treinaram pênaltis, mas eu não sentia necessidade. Pensava: ‘quero vê-los com 60 mil pessoas contra’. Empatamos com o Palmeiras, Carlos [Bianchi] começou a nomear os que chutariam e lhe pedi o quarto [cobrança]. Meu velho havia jogado com essa camisa e soube aí que ia definir a série. Não sentia nada. Não sentia as pernas, não me dei conta quando freei, nem quanto chutei, nem nada. Só lembro que os garotos começaram a cair em cima de mim. Tinha a mente em branco. Foi a felicidade maior que me deu o futebol”.
O campeão da América tratou de desprezar (como sempre) a Copa Mercosul enquanto mantinha-se invicto nas quinze rodadas iniciais do Apertura 2000, quando então fez uma pausa para encarar o Real Madrid. Em seis minutos de jogo, deu a lógica: Palermo marcou duas vezes. Roberto Carlos descontou ainda aos 11, mas o placar não se alterou mais. E se Palermo e Riquelme se tornaram os primeiros destaques na mente sobre aquela partidaça, Bermúdez não ficou muito atrás na avaliação pós-jogo da revista El Gráfico.
Sua nota foi a mesma de Riquelme, um 8, após atuação em que “devorava” Raúl, tornando-o um “parente distante desse grande jogador que cada semana nos aproxima a televisão a cabo” e alguém que “se derretia ante El Patrón Bermúdez, que lhe ganhou todas sem sequer dar-lhe um pontapé”, em aspas da edição especial do título – a resumir o desempenho como de alguém que “por cima foi impassável e tirou todas as comprometedoras”, enquanto sua contraparte Fernando Hierro “bateu mais do que marcou, longe de seu nível internacional”.
A revista destacou ainda o juramento que ele impôs aos colegas no intervalo para manterem o triunfo. O que não foi revelado foi o apego enorme do capitão com a taça, assumida já naquela entrevista de 2010: “a trouxe no avião toda a viagem e a entreguei a Bianchi quando pisamos [no aeroporto de] Ezeiza. ‘Enfim a largaste’, me disse Carlos. Cada vez que um companheiro ou um torcedor me pedia para uma foto, ficava do lado para que me devolvessem em seguida. Ia quarto por quarto esperando. Logo dormi com ela ao lado, viajei com ela ao lado. No avião desde o Japão a tive entre as patas, não dormi nunca, a olhava, olhava minha cara refletida”.
A invencibilidade caseira até cairia no regresso de Tóquio, com a ressaca pesando em derrotas para Independiente e Chacarita, mas o time pôde fechar o ano com sua primeira tríplice coroa… deixando o River de vice. O ápice gerou um desmanche natural; após a Libertadores, Samuel fora à Roma e Arruabarrena fora acompanhar Cagna no Villarreal, mesmo clube que levou no réveillon outros dois campeões do mundo – Palermo e Gustavo Barros Schelotto. O futebol espanhol também estava à espreita de Bermúdez, mas tratava-se do Barcelona mesmo.
A relação com a direção do Boca começou a ruir exatamente pela negociação truncada com os catalães e também com o Beşiktaş, clube com o qual “estava feito o passe, mas se cruzaram interesses pessoais de alguns dirigentes e se decidiu que era mais importante o bolso de alguém do que o meu futuro. Também se aprovou tudo com o Barcelona, mas apareceu um fax noturno pedindo um milhão de dólares a mais. E caiu”. Aquele xerife não deixou de buscar satisfações, mas “não houve resposta, estava tudo muito claro. Então, como meu velho me ensinou a defender meus princípios, disse aos dirigentes que assim que terminasse La Copa, me doendo a alma, tinha que sair do Boca, porque não podia mais olha-los nos olhos”.
La Copa era, no caso, a Libertadores de 2001. Novamente, o Boca sacrificou um bom Clausura em prol do título continental. E as turbulências não se resumiram ao susto na decisão, em que o Cruz Azul soube devolver em plena Bombonera a derrota sofrida na Cidade do México. A simples vaga na decisão já representava de antemão uma vaga no Mundial Interclubes, pois os mexicanos não poderiam representar a Conmebol contra o Bayern Munique em Tóquio. Mas bichos prometidos e não pagos fizeram os jogadores mostrarem sua rebeldia assim que eliminaram o Palmeiras nas semifinais, usando camisas com mensagens que disparavam contra a cartolagem.
“Nunca tive problemas em brigar pelos bichos, ao contrário, creio que ajudei os dirigentes para que pagassem bichos que tivessem sentido. Antes, no Boca se ganhavam bichos por partida e eu propus bichos por objetivos, que metessem a mão no bolso para ver taças e estrelas. E as viram”. O filme, no fim, se repetiu quase que por completo: Córdoba se agigantou na decisão por pênaltis. Só faltou Bermúdez novamente garantir a taça na quarta cobrança do Boca, mas dessa vez ele preferiu cobrar diferentemente do ano anterior: ao invés do toque sutil num canto, encheu o pé e acertou o travessão. “Esse penal me doeu por dias”, confessaria.
Menos mal que o adversário errou a cobrança seguinte e a taça ficou mesmo em Buenos Aires. Bermúdez, do seu lado, cumpriu com a palavra, ainda que isso significasse rumar ao Olympiacos, onde não chegou nem mesmo a dez partidas ao longo de dois anos na Grécia – enquanto os dirigentes, sem titubearem, tiveram sucesso em trazer Rolando Schiavi do Argentinos Jrs para lhe suceder na zaga. Uma pena: o zagueiro terminaria ausente da histórica Copa América realizada e vencida por seu país naquele 2001, o último ano que viu Bermúdez pela Colômbia (no 2-2 na visita à Venezuela pelas eliminatórias, ainda em 24 de abril). Para o torneio, novamente optou-se por utilizar uma seleção essencialmente caseira. O treinador Francisco Maturna não foi louco de prescindir dos dois Córdoba, mas abriu mão também de Serna, Ángel e do racinguista Alexander Bolaños. E do Patrón.
Saindo do Boca. E voltando
Em 2003, então, um Newell’s treinado pelo mesmo Héctor Veira que o requisitara no Boca repatriou El Patrón para uma tentativa local de também emplacar um trio colombiano (junto a Julián Vásquez e Jairo Patiño). Os rojinegros vinham de diversas campanhas rondando o 10º lugar e fizeram um Apertura 2003 aceitável, a três pontos do pódio. E ele não aliviou ao reencontrar o Boca pela primeira vez, em Rosario, sacudindo a estrela-nova Tévez: “fui cortar, rebateu e ficou sentado. Tinha apreço por Carlitos, o havia visto desde garoto no Boca. E lhe disse: ‘Carlitos, por aqui não era, era pelo outro lado, sinto muito'”.
Já o Clausura foi horrível, em 12º. Mas o que fez Bermúdez preferir deixar o Parque Independencia foi a primeira visita à Bombonera como adversário, exatamente naquele Clausura: “não esperava que as pessoas me recebessem assim. Entrei e me cantaram ‘Bermúdez corazón‘. Começou a partida e ‘Patrón, Patrón‘; seguiu a partida e ‘Patrón, Patrón‘; me calhou dar um pontapé em Barijho que o obrigou a sair e, outra vez, ‘Patrón, Patrón, Bermúdez corazón‘. Aí pensei: ‘em que bando estou? Aqui na Argentina não posso jogar em outro clube’. Então, disse a mim que devia sair do Newell’s. Fui leal com meu pensamento. E marchei para a Colômbia”.
Na realidade, Bermúdez seguiu carreira no Equador mesmo: se não pôde defender o Barcelona da Espanha, esteve no de Guayaquil na segunda metade de 2004. E de 2005 a 2007, quando pendurou as chuteiras, trotou por cinco equipes colombianas – América, Deportivo Quevedo, Deportivo Pereira, Santa Fe e, claro, um final regressando ao Quindío, já emendando em 2008 uma carreira de treinador ainda incipiente. Mas que já teve um capítulo argentino, naquele 2010 em que foi entrevistado pela El Gráfico.
Eram outros tempos do atual campeão da Copa Sul-Americana, mas o ex-zagueiro mostrou ótima visão futura. Aquela entrevista começava exatamente com a pergunta “Defensa y Justicia, duas palavras que te caem perfeitamente, escolheste o clube de propósito?”, no que ele declarou sobre aquela equipe ainda de segunda divisão e jamais presente na elite argentina até então: “o nome calça sob medida, sem dúvida. O clube vive uma etapa de transformação e crescimento. Há um compromisso grande dos dirigentes e meu desejo é me fazer conhecer. O sentimento do Defensa é muito parecido ao meu: um clube que busca crescer e sonha em chegar à Série A”.
Bermúdez não escondia que buscava exposição para um dia treinar o Boca. Se a carreira não decolou (ele chegou a conciliar com trabalhos elogiados como comentarista), pôde voltar há dois anos ao clube que mais lhe caiu bem, recrutado pelo agora cartola Riquelme para integrar o conselho deliberativo do departamento de futebol.
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Bermudez é um dos melhores defensores da história do futebol mesmo se não atuou por muito tempo na Europa. Era um jogador completo: forte tecnicamente, fisicamente e com personalidade de leader que fizeram desse jogador um verdadeiro símbolo, ídolo e referência no Boca Jrs. Realmente, um jogador único!