Santa Fe é a capital da província homônima, mas no futebol a força provincial se concentra em Rosario. Em uma perspectiva histórica de um campeonato com 125 anos de disputas, a presença santafesina (falamos da cidade) no panteão dos grandes clubes argentinos ainda é relativamente recente. Apenas em 1966 é que a dupla principal da cidade se estabeleceu na elite: o Colón havia ascendido no ano anterior, mesmo se houvesse rebaixamento (congelado entre 1963 e 1966), teria garantido a permanência. A resposta vizinha foi imediata, com o rival Unión vencendo a edição seguinte da segundona, há exatos 50 anos. Um presente antecipado, por sinal, para o aniversário de 60 anos do Tatengue, celebrado em abril de 1967.
A Argentina é um país de população bastante concentrada na região metropolitana da capital federal em comparação ao tamanho geográfico do território nacional. 30% dos hermanos vivem na Grande Buenos Aires. Isso e a centralização do poder no entorno dela após guerras civis em meados do século XIX desinibiu os primeiros órgãos esportivos sediados na capital federal de proclamaram-se como “argentinos” embora suas disputas se concentrassem – inclusive diante da infra-estrutura da época – nos arredores portenhos. Tal fenômeno ocorreu pelo menos no rúgbi e no futebol.
Assim, o campeonato “argentino” se concentrou historicamente no conurbano de Buenos Aires – a ponto do bivice-campeão em 1897-98, o Lobos, se atrofiar após ser retirado das disputas diante das reclamações alheias por viagens de mais de 30 km (a cidade de Lobos fica a 100 km). Com o tempo, La Plata (que, a 51 km de Buenos Aires, não integra a região metropolitana da capital federal) também foi abrangida. Mas o campeonato “argentino” continuava basicamente regional; nem provincial era, ao não abranger toda a província bonaerense.
Paralelamente, demais clubes do país também se restringiam em ligas regionais: Rosario Central e Newell’s travavam a rosarina, não uma santafesina, com intercâmbio em copas internacionais com os clubes “argentinos” e os uruguaios (ou montevideanos, dependendo do ponto de vista). Assim, cravavam jogadores na seleção e enfim foram afiliados na associação “argentina” em 1939, entrando diretamente na elite. Unión e Colón também disputavam torneios na prática citadinos e tinham glórias mais esparsas. O Unión, em melhor fase, com dois convocados à Copa de 1934 (Federico Wilde e Alberto Galateo), foi também afiliado à associação, em 1940 – mas teria de começar na segunda.
O Colón foi afiliado em 1948 e teve de se sujeitar-se à mesma decisão, mas acabou subindo antes, em 1965, trajetória contada aqui. O Unión, por sua vez, batia na trave. Foram dois vices (1943 para o Vélez, 1955 para o Argentinos Jrs), quatro bronzes (1949, 1953,1957, 1959), além da campanha de 1954 (a seis pontos do campeão Estudiantes) e, principalmente, da de 1963: terminou líder, mas empatado com outros quatro. No quadrangular extra entre os líderes, ficou só em 3º.
Mas em 1966, embalado pelo sucesso vizinho, não deixou para ninguém: o título se garantiu com mais três rodadas a se disputar. Assim, o próprio presidente Marcelo Casabianca, no cargo desde 1964, não teve pudor em vestir a camisa alvirrubra e se juntar à volta olímpica – era filho de Néstor Casabianca, que aos 17 anos de idade havia fundado o clube. O elenco azeitado se formou ironicamente às pressas: em janeiro, veio do Uruguai o técnico Washington Etchamendi, futuramente campeão das primeiras Libertadores e Mundial do Nacional (em 1971).
Com política do bom e barato, Etchamendi indicou diversos nomes do futebol charrua: do próprio Nacional vieram o zagueiro Luis Sauco e o argentino Julio César Fernández (com sete gols, foi o quarto artilheiro do plantel); do Defensor, José Gerardo Silva e o argentino Pedro Mansilla; do Platense uruguaio, Julián Pírez; do Cerro, Rubén Iglesias; e Mario Olivera, de passe livre. Mansilla, campeão com o Racing em 1961 (a ponto de ser rapidamente mencionado no oscarizado filme O Segredo dos seus Olhos), não chegou a virar ídolo, mas foi vice-artilheiro do elenco, com doze gols.
Outra novidade já estava em Santa Fe, com o goleiro Luis Tremonti conseguindo um bi seguido. Fora o titular na campanha campeã do rival no ano anterior, mas o Sabalero, uma vez na elite, contaria com as luvas mais tarimbadas de Néstor Errea (vice da Libertadores de 1963 pelo Boca). Tremonti virou Tatengue e foi ainda melhor: em todo o primeiro turno de 1966, não sofreu gols em jogos travados em casa. Crédito que ele divide com a dupla de zaga formada pelo uruguaio Luis Sauco e por Roberto Figueroa, na época o segundo jogador que mais vezes havia defendido o Tate: “eu no gol estava tranquilo. Se entre Bartolo (Figueroa) e El Negro (Sauco) os atacantes nunca chegavam inteiros”.
“Dos dois centrais, eu era o que saía para romper, enquanto que Figueroa jogava atrás de mim, varrendo. Mas quando havia que dar, dava sem problemas”, explicou Sauco. Além de Tremonti, os reforços buscados no futebol argentino incluíam Omar Asencio (Arsenal), Luis Díaz (San Lorenzo) e Luis Ciaccia (Gimnasia LP) – Díaz seria o artilheiro da campanha campeã, com 14 gols. O experiente Miguel Juárez, destaque do Rosario Central nos anos 50 e ex-jogador de seleção, veio brevemente do Central Córdoba: jogou só cinco vezes, lesionou-se e decidiu ir embora, devolvendo o dinheiro que lhe pagaram. À experiência caseira e internacional somaram-se promessas da base.
O meia-esquerda Mario Zanabria, futuro bi da Libertadores de 1977-78 pelo Boca, integrou o elenco, ainda que sem contribuir tanto – quem sim participou mais ativamente foi o irmão Ramón Zanabria, mas Marito foi indiferente a isso: “essa é uma das lembranças mais lindas que tenho do futebol. Era muito jovem e saí campeão no clube da cidade onde nasci”. O sangue tatengue também estava em Ángel Cabrol, pai do futuro ídolo Darío Cabrol (que participaria de outro acesso, trinta anos depois, em 1996). O volante Victorio Cocco viria a ser um dos maiores campeões pelo San Lorenzo. O ponta Mario Mendoza, que tinha só QUINZE anos, jogou pouco, mas “muito”: o Real Madrid quis contratá-lo para seu time B em 1967, mas entraves no passe impediram que fosse efetivado.
Já Orlando Ruiz foi o terceiro na artilharia do time, com nove gols. Era um ídolo instantâneo desde sua chegada em 1963, ano em que fora artilheiro da segundona, com 26 gols. Veloz, de cabeceio forte e habilidoso, seu oportunismo para aparições-surpresa ao marcar alguns deles rendeu-lhe o apelido de El Fantasma. Quando saiu, para defender justo o Colón, tinha o perdão de ser na época o maior artilheiro da história alvirrubra. Etchamendi impunha dois turnos diários de treino de segunda a quinta. Assim disciplinava os jogadores, condicionava-lhes o físico e lhes contagiava com a atmosfera de um clube bem organizado. “Não tinha muitas ilusões sobre que encontraria em um clube de segunda divisão, mas a surpresa foi gratíssima. Encontrei uma grande instituição e uma imensa família”, reconheceria Sauco.
Foram 24 jogos ganhos, dez empatados e só oito perdidos. Pobre Argentino de Quilmes: também venceu 24 vezes, mas perdeu mais e ficou a seis pontos; outrora um time importante (nos anos 10), o Argentino, primeiro clube do país fundado por latinos (daí o nome), nunca mais chegou tão perto de voltar à elite e hoje está na quinta divisão, sendo um dos únicos a conhecer todas as divisões do campeonato argentino – o outro, na via inversa, foi o Arsenal, fundado menos de dez anos antes e, após ascensão meteórica, também participante daquela segundona de 1966.
Foi uma campanha marcada mais pela raça (“nesses anos, era bravo ir jogar em Buenos Aires. Em alguns campos, El Pulpa Etchamendi me mandava descer primeiro do ônibus, para que freasse os torcedores que nos atiravam de tudo. Queria que os mais jovens não passassem por essa situação”, declarou Tremonti) e regularidade do que pelo espetáculo. Mas houve bons episódios: um 3-1 fora de casa no El Porvenir (gols de Ciaccia, Mansilla e Juan Lapalma); um 3-0 no All Boys (dois gols de Omar Asencio e um de Luis Díaz); um 4-0 fora de casa no San Telmo (dois de Mansilla, um de Sauco e outro de Asencio); um 4-1 fora de casa no Talleres de Escalada (dois de Ruiz, um de Julio Fernández e um de Asencio); um 3-0 no Tigre (Jorge “Nene” Gómez, Díaz e Fernández); 4-0 no Sarmiento (Ruiz, Asencio e dois de Mansilla); e 3-0 em reencontro com o lanterna Talleres no jogo do título.
Nesse jogo, o ídolo Fantasma Ruiz fez dois gols. O outro foi justamente o primeiro da carreira do “Nene” Cocco, que futuramente se tornaria um volante-artilheiro: somou onze gols pelo Unión, nove deles apenas no ano de 1975, quando voltava de sua excelente fase em período áureo do San Lorenzo. Fora brilhar lá mesmo após ser rebaixado em 1967; o carnaval, de fato, durou pouco para o Tatengue (apelido originalmente pejorativo para “filhinhos de papai” e abraçado pela torcida justamente nos anos 60) no campeonato “metropolitano”, novo e apropriado nome que o velho campeonato “argentino” receberia entre 1967 e 1984, quando dividiu o calendário com o Torneio Nacional – que reunia os melhores do metropolitano com os campeões do interior.
Iô-iô, o Unión foi logo rebaixado, subindo de novo em 1968 para cair já em 1970 (Tremonti, Figueroa, como Ruiz, também viraram a casaca nesse período) e retornar só em 1974. Mas 1966 não deixou de ser reconhecido como o primeiro capítulo da importância que seria acumulada a médio prazo. Seja por polir campeões mundiais em 1978 (o atacante Leopoldo Luque com a seleção, o técnico Juan Carlos Lorenzo, o goleiro Hugo Gatti, o defensor Rubén Suñé, o ponta Heber Mastrángelo e Mario Zanabria com o Boca), seja pelo vice-campeonato nacional em 1979 – auge de um clube cujo goleiro era Nery Pumpido, outro campeão mundial pela Argentina (e pelo River), em 1986.
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