Não há rivalidade no mundo como a rosarina, que há mais de 35 anos não conhece um vira-casaca, ao contrário de dérbis de fama feroz mundo afora. A rixa é tamanha que a cada 19 de dezembro a torcida do Rosario Central reencena o gol de peixinho em clássico válido pelas semifinais do Nacional de 1971 – os canallas adiante seriam campeões, algo inédito para um clube do interior, e sustentam que as seguidas reencenações fazem da Palomita de Poy o gol mais comemorado do mundo. Os auriazuis ainda levantaram novo título em 1973, mas o troco veio com juros. Ontem fez 45 anos do primeiro título argentino do Newell’s, garantido exatamente no Clásico Rosarino, superando em plena casa rival uma desvantagem de dois gols.
Herói da conquista, o armador Mario Zanabria dizia que, por ironia do destino, o elenco rubro-negro campeão era inferior àquele que parou diante do rival nas semifinais de 1971, ainda que a espinha dorsal fosse similar: conservava o baixinho centroavante Alfredo Obberti, que saíra em 1971 e chegara a passar pelo Grêmio (foi seu maior goleador estrangeiro no século XX), voltara exatamente no início de 1974 ao ataque leproso; Santiago Santamaría, ponta-direita que compunha o trio ofensivo com ambos, seguia no Parque Independencia exatamente desde 1971 e sairia apenas após aquele título, rumo ao futebol francês, voltando em 1979 para ser o maior artilheiro sangre y luto no clássico em tempos profissionais.
Santamaría e Obberti são inclusive o quarto e quinto maiores goleadores profissionais do Newell’s. Os dois elencos também tiveram o caudilho José Orlando Berta, volante destruidor com bom toque de bola que, sem ser de rifa-la, chegou a ser o recordista de jogos pelo clube (hoje é o quinto) e que defendeu o Ñuls entre 1970 e 1978 – assim como o raçudo lateral-direito Andrés Rebottaro, a se firmar de vez exatamente naquele torneio de 1974.
Diferentemente do time de 1971, o de 1974 tinha um futuros campeão mundial com a Argentina, embora ainda como opções de banco: o jovem Jorge Valdano, estreante no time adulto exatamente na última rodada de 1973 (poderiam ser até haver outro, Américo Gallego, mas Berta cumpria tão bem seu papel de volante que El Tolo estreou no time adulto ainda em 1974, mas já após a conquista); além de El Filósofo, outra opção nova de ataque era Sergio Robles, que chegara sem ruído naquele 1974 do Juventud Antoniana de Salta. Viraria um carrasco frequente do Central, mas passou aquele campeonato ainda na sombra do tridente Obberti, Zanabria e Juan Ramón Rocha, ponta-esquerda presente desde 1972 e que pôde superar naquele título algumas cornetas de quem criticava seu pouco faro de gol.
Silenciosamente, outra peça nova a fazer mais diferença imediata, como veremos, foi o zagueiro Armando Capurro, desde 1972 no time. Fez defesa sólida com outra novidade em relação a 1971: o aplicado zagueiro José Luis Pavoni, desde 1973 no Parque e que após sair em 1977 ganhou diversos títulos no River e a Libertadores de 1985 com o Argentinos Jrs. Também na defesa, o goleiro uruguaio Alberto Carrasco, que chegara em 1973, seria o homem com mais jogos na campanha, ao lado de Zanabria, Pavoni e Rebottaro: esteve em todos os 21 jogos, sem dar oportunidades a Juan Carlos Delménico, exatamente o último vira-casaca em Rosario (há 35 anos, em 1984). Pastor Barreiro completava o elenco, na lateral-esquerda.
Inversamente, das baixas em relação aos nomes de 1971 que não seguiam em 1974, a mais sentida a princípio seria a do classudo volante Juan Carlos Montes. Uma lesão abreviou-lhe a carreira em 1973, mas ele seguiu no elenco, agora como treinador, função na qual entraria para a história como o comandante que, já no Argentinos Jrs, estreou Maradona no futebol adulto. “O que nunca consegui como jogador, consegui hoje como técnico”, desabafaria emocionado há 45 anos. Trinta anos depois, em 2004, Montes relembrou em mais detalhes ao Clarín:
“Nem bem terminei minha carreira no Newell’s a fins de 1973, o presidente do clube, Armando Botti, se reuniu comigo e me ofereceu a direção técnica da equipe. Eu acabava de deixar de jogar, de modo que todos os integrantes do plantel eram meus amigos. Antes de aceitar o cargo, me juntei com eles e lhes perguntei se confiavam em mim. A reação foi instantânea: ‘agarre Juan, agarre que nós te apoiamos’. E com essa resposta, terminaram de me decidir por sentar no banco. Não me esqueço mais que, nos primeiros jogos, aí na beira [do gramado], minhas pernas eram de papel. Começamos o torneio com um clima difícil. Rosario é uma cidade em quem não é Newell’s é Central…”.
O Metropolitano de 1974 dividira nove times em dois grupos, com os dois líderes avançando a um quadrangular final. Haveriam jogos de ida e volta no interior dos grupos, além de dois jogos intergrupais, reservados normalmente aos clássicos. Inicialmente, o Newell’s seguiu na sombra das glórias do rival; só foi vencer já na quarta rodada, um 1-0 sobre o Estudiantes. Mas na partida seguinte já carimbava a faixa do Central com um 4-2, gols de Zanabria, Berta e dois de Santamaría. Ao fim do turno de ida, o time já estava bem estabelecido, emendando uma série de vitórias. Segundo aquele relato de Montes em 2004, “estivemos concentrados durante dois meses e meio. Quando os resultados começaram a aparecer, os jogadores, por uma questão de superstição, nos pediam para seguir concentrando. Nem a rouba de baixo queriam trocar”.
A série de bons resultados foi a princípio encerrada do pior jeito: um sonoro 3-0 no Clásico Rosarino já pelo segundo turno, no Gigante de Arroyito… as dúvidas voltaram e por isso o gol de Obberti na vitória mínima fora de casa sobre o Chacarita foi gritado além do normal. E a partir dali o time só teve mais um tropeço, contra o Argentinos Jrs, fora de casa – pois seu Coloso del Parque era território inexpugnável, sem ver uma derrota caseira desde o novembro de 1973 até março de 1975. Em uma chave parelha, em que quatro pontos terminaram separando o líder do quinto colocado, chegou na liderança de sua chave na rodada final e assim se manteve ao bater por 2-1 o San Lorenzo. Com 24 pontos, os leprosos de juntariam no quadrangular com Boca, o timaço do Huracán que em paralelo ia às semifinais da Libertadores e o time de melhor campanha naquela primeira fase.
E quem era o melhor time da fase inicial? O Rosario Central, que por outro lado não contaria com seu matador Mario Kempes e com o talismã Aldo Poy (o homem daquele gol de peixinho em 1971, jogada que os argentinos descrevem como Palomita, “pombinha”), ambos ocupados com a seleção na Copa do Mundo. O quadrangular se desenrolou em turno único com ideia de campos neutros. A primeira rodada ocorreria em Rosario, com o Newell’s jogando na casa do Central e vice-versa, respectivamente contra Huracán e Boca. A segunda rodada, em Buenos Aires, veria o Boca recebendo o Newell’s na canha do Huracán e este usando La Bombonera para pegar o Central.
Na rodada derradeira, Huracán e Boca duelariam na capital no estádio do Vélez. Rosario, cuja terceira força (o Central Córdoba) não tinha estrutura à altura, veria o estádio para o clássico ser definido por sorteio. Deu Gigante de Arroyito, que desde 1965 não via triunfos do Ñuls no dérbi… Contra o Huracán treinado por César Menotti (torcedor canalla notório), o Newell’s já viveu certa montanha russa em 26 de maio. Arsenio Ribeca, que substituía Obberti, abriu o placar no meio do primeiro tempo, mas Quiroga empatou rapidamente. Santamaría e Obberti assinalara um 3-1 já no segundo tempo, mas os visitantes descontaram perto do fim com Scalise, sem que a pressão subsequente pudesse alterar novamente o resultado. Em paralelo, o Central fazia 3-1 no Boca.
A reviravolta veio em 29 de maio, quando Obberti garantiu a vitória leprosa sobre o Boca em Buenos Aires, enquanto o Huracán, pelo mesmo placar, batia o Central. Os rubro-negros somavam então quatro pontos (as vitórias valiam dois, na época), contra dois pontos de Central e Huracán e nenhum do Boca, já sem chances. Assim, para a rodada final o empate bastava à Lepra; caso perdesse, ficaria à mercê de um jogo-desempate, seja contra o rival ou contra o Huracán – ou talvez a um triangular extra com ambos, caso estes vencessem. Os dois jogos do dia 2 de junho seguiam no 0-0 até o fim do primeiro tempo, quando Gabriel Arias converteu um pênalti para pôr os canallas à frente, após Pavoni ter tocado em Roberto Cabral. A torcida do Huracán estava de olho, ou melhor, de ouvido atento, em tempos incipientes da televisão.
Aos 5 minutos do segundo, porém, o Boca abriu o placar contra o Huracán e praticamente tirou o Globo do páreo ao anotar o 2-0 aos 24 minutos. Também aos 24 minutos, o 2-0 era igualmente assinalado no Gigante, através de Carlos Aimar. Um novo Clásico Rosarino como jogo-desempate estava à vista, o que poderia ser algo justo para realçar nacionalmente a expressividade dos rosarinos: um combinado com cinco jogadores de cada rival somado a um elemento extra do Central Córdoba (o folclórico Tomás Carlovich) havia batido por 3-1 a própria seleção argentina em amistoso pré-Copa dela em 17 de abril. Mas o jogo-desempate seria naturalmente um cenário com toda uma maré desfavorável recente para o Newell’s. Mas dois minutos depois o zagueiro Capurro recolocou os visitantes no jogo, em cabeceio que encobriu o goleiro auriazul Carlos Biasutto (“quando o Central colocou 2-0, pensei que tudo nos escapava, mas reagimos em seguida e tivemos personalidade”, declararia o treinador Montes).
Ao mesmo tempo, o Huracán dava adeus de vez às suas pretensões ao sofrer o 3-0 do Boca; haveria um solitário desconto a doze minutos do fim. Mesmo lutando contra o relógio, o Newell’s não renunciou à proposta de jogo pregada pelo técnico Montes, com passes e bola no chão. Faltando dez minutos, então, Rebottaro disputou uma bola pela direita e passou a Carlos Picerni, volante central que já estava mandado ao ataque àquela altura. Picerni então cruzou para Rosendo Magán (que substituíra Rocha aos 22 minutos da segunda etapa), e este ajeitou de cabeça para a bola chegar ao camisa 10: espécie de Riquelme dos anos 70, pois logo reforçaria o Boca campeão de suas primeiras Libertadores (no bi de 1977 e 1978), Marito Zanabria então disparou um míssil com sua hábil canhota para marcar no ângulo o mais importante de seus 57 gols em 264 jogos como leproso e desatar uma lembrança “difusa”, nas palavras do Clarín:
“Para alguns foi abraço, para outros, avalanche, talvez pranto. Mas para todos foi gol e empate, foi revanche e desafogo. Para todos os torcedores do Newell’s, foi a inesquecível possibilidade de gritar pela primeira vez ‘dale campeón’, com tudo o que há de direito”. Não que tenha sido tão bonito: a dois minutos do fim, o jogo precisou ser suspenso com invasão de campo das duas torcidas – a leprosa então tentou forçar a volta olímpica e a canalla, impedir. A confirmação do 2-2 nos tribunais ainda tardaria até 14 de junho. Mas para a galera do Parque, a data da independência sempre será aquele 2 de junho de 1974, ainda que tardassem até a Era Bielsa para se igualar à quantidade de títulos dos vizinhos. Capítulo de outras histórias, contadas aqui, mas nenhuma tão saborosa como um bomba diretamente na cara (ou no ângulo) rival.
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