45 anos da grande vergonha do Estudiantes: o mundial com o Milan em 69
Há dois meses, falamos do rebaixamento do Estudiantes em 1994, com os jovens Verón e Palermo (clique aqui). Não chegou a ser o primeiro rebaixamento do Pincha, mas nenhuma queda se compara ao episódio que protagonizou há exatos 45 anos, em 22 de outubro de 1969. Já era condenado no próprio país pelo estilo irritante, mas a carnificina da Taça Intercontinental de 1969 gravou a sangue na memória seletiva o rótulo de violento e brutal àquele elenco, cujo “antifutebol” até então se devia a outras razões.
45 anos da 1ª Libertadores do Estudiantes
45 anos do mundial do Estudiantes. Em Old Trafford
Há 45 anos, o Estudiantes festejava sua 2ª Libertadores
Quem ler os textos acima verá que aquele Estudiantes não deixava de ser aguerrido (violento e desleal na Intercontinental de 1968 foi o Manchester United, por exemplo), mas seu antijogo se devia às polêmicas táticas do técnico Osvaldo Zubeldía. A mais inovadora era a da linha de impedimento: até aqueles tempos, não era comum que os defensores se afastassem deliberadamente à frente dos atacantes adversários para deixa-los inabilitados na jogada. A medida paralisava frequentemente os lances ofensivos e, se ainda irrita hoje, na época era detonada por adversários e imprensa na própria Argentina. E os alvirrubros aproveitavam em cheio a paralisação para jogadas ensaiadas de bola parada. Tornaram costume praticar um futebol de resultados. Tudo na contramão do futebol-arte que se pregava no país.
O “problema” é que aquele tecnicamente limitado Estudiantes, com recursos do tipo, em abusar do proveito de brechas nas regras do jogo para burlar legalmente o espetáculo, se tornou cada vez mais vencedor. Especialmente na América do Sul, em tempos de menor comunicação entre os países e consequentemente adversários internacionais mais despreparados para as “novidades”. E cada novo título era um tapa na cara dos críticos. Essa catimba com o tempo viraria sinônimo do próprio futebol argentino, com o título mundial de 1986 e o vice em 1990 sob a condução técnica de Carlos Bilardo e de seu assistente Carlos Pachamé, ex-jogadores daquele elenco de La Plata. E a visão política, tão disseminada na Argentina, entraria no jogo também.
Apesar do futebol no geral mecânico e feio de 1986 e 1990, foram façanhas atreladas à redemocratização, enquanto o futebol mais bonito da taça de 1978 ficou para sempre ligado à ditadura. Em 1969, o ardiloso, mas não necessariamente violento Estudiantes encontrou um oponente à altura: o catenaccio do Milan. A tática retranqueira italiana havia anulado os argentinos em cinco encontros anteriores na Intercontinental (as três finais de 1964 e as duas de 1965, com a Internazionale derrotando o Independiente em ambas): os hermanos haviam marcado apenas um gol na soma de todas.
A marca negativa entrou para o sexto jogo em 1969, no San Siro. O Milan, reforçando a defesa para as jogadas ofensivas adversárias, ensaiadas ou não, e não dando espaço à linha de impedimento no ataque, venceu por 3-0. Não deu exatamente um baile como insinua o placar (seu craque Gianni Rivera foi anulado por Togneri), mas foi eficaz em aproveitar as chances mais claras que surgiram. O futebol argentino já vinha de grande decepção: havia acabado de não se classificar à Copa do Mundo de 1970, eliminado em casa pelo Peru apesar do jogo ter sido em La Bombonera.
Segundo relatos da época da El Gráfico, então fervorosa crítica dos métodos platenses, o Estudiantes em Milão dominou a bola por 60 dos 90 minutos, mas sem conseguir nada concreto e cometendo dois erros fatais em momentos capitais do jogo: um logo no início, onde bola cruzada por Prati passou pelo goleiro Poletti e por Medina que, indecisos, não interceptaram. O brasileiro Sormani cabeceou para baixo e abriu o placar aos 10 minutos. Os planos argentinos eram de não levar gol: aquela Intercontinental seria exatamente a primeira a levar em consideração o saldo de gols (até então se cada um vencesse um jogo uma partida extra teria de ser realizada, não importasse o placar). Ruíram cedo. Mas até o fim do primeiro tempo os pincharratas seguraram o ímpeto milanista, ainda que sem chegarem tanto ao ataque.
O craque do Estudiantes, grande herói das taças anteriores, era Juan Ramón Verón (pai de Juan Sebastián). Não estava em noite inspirada. Bem marcado por Anquilletti, não aportou as surpresas de costume e tornou a ofensiva argentina um tanto previsível. As únicas tentativas ao gol de Cudicini foram uma de Togneri e duas de Flores. Ambas de fora da área, tal a eficiência da defesa italiana em afastar tudo, mesmo que toscamente. O segundo gol veio em outro momento impropício: perto de irem descansar com algum consolo no intervalo, os argentinos levaram o segundo gol nos acréscimos. Aguirre Suárez deixou a bola ficar livre para Néstor Combín ficar sozinho frente a Poletti e praticamente liquidar a vitória. Combín era argentino, mas jogava pela França, país onde foi residir com 17 anos.
O terceiro foi outro de Sormani, um golaço após girar dentro da área adversária. Se Rivera não aparecia, o brasileiro (que por sua vez defendera a Itália) compensava. Duas semanas depois, jogou-se na Bombonera o reencontro. E Rivera enfim apareceu: Manera deu um passe ruim a Madero, Combín interceptou e serviu a Rivera, que galopou sozinho rumo à meta de Poletti, driblou-o e abriu o placar. Mas, no primeiro tempo, o Estudiantes soube reagir na bola. O que aumentou a vergonha platense é que, quando buscou futebol, o time conseguiu rapidamente gols, pois os alvirrubros viraram o jogo com dois em 70 segundos: o primeiro, com Conigliaro cabeceando no contrapé de Cudicini após bola má rechaçada por Malatrasi. E depois em um golaço de Aguirre Suárez.
O descontrole de um time que um ano antes reconhecera dignamente derrota na final argentina para o San Lorenzo, aplaudindo-o (veja aqui), teria vindo no segundo tempo, quando o tempo passava e os argentinos sentiam que não conseguiriam a reviravolta necessária no placar. Não propriamente todos se descontrolaram, mas especialmente o goleiro Poletti e os beques Aguirre Suárez e Luján Manera. Aguirre golpeava Sormani com a e sem bola em disputas aéreas, lesionou Prati (em seguida pisado por Poletti) e soltou o cotovelo no “traidor da pátria” Combín, fraturando-lhe o nariz e inchando-lhe o olho por dias. A imagem de Combín empapado em sangue e desfigurado foi o grande símbolo da noite. Rivera, após falta dura em Echecopar, foi agredido pelo ensandecido Aguirre Suárez, ali enfim expulso. O mesmo Rivera, ao fazer cera, tirou do sério Manera, que lhe desferiu um soco e também foi avermelhado pelo juiz.
O último ato do trio de horrores veio após o fim da partida: um dos alvirrubros lúcidos, o garoto Romeo, foi cumprimentar o milanista Lodetti, e de repente Poletti interrompeu o gesto, correndo desde sua meta para agredir Lodetti. A bastante crítica El Gráfico fez essa ressalva: “é responsável o técnico pelos excessos de seus jogadores? Duvidamos. Nem todos os jogadores procederam da mesma forma”. Zubeldía assinalou: “nunca mandei golpear. Ao contrário, no intervalo insisti em pedir-lhes serenidade”, mas aquela final meio que o associou aos leigos a uma imagem de Dick Vigarista, até por declarações neste sentido do goleiro Cudicini e do técnico Nereo Rocco.
Treinado por Zubeldía e Bilardo no San Lorenzo, Jorge Olguín, zagueiro campeão mundial em 1978, afirmou em recente entrevista à mesma El Gráfico que “Zubeldía era outra coisa (…). Tudo o que atribuem a Zubeldía, na realidade ocorria com Bilardo: as arapucas, tirar vantagens…”. Curiosamente, naquela noite a atuação de Bilardo estava entre as especialmente elogiadas, juntas das de Malbernat e Togneri. Mas a revista foi categórica na introdução do relato do jogo: “Não, Estudiantes… isso não foi hombridade, não foi temperamento, não foi garra… isto foi a apologia da brutalidade e da loucura…isto nos envergonhou a todos e deve envergonhar aos responsáveis. Se realmente queremos resgatar algo para seguir acreditando no futuro, comecemos por repudir esse episódio lamentável…”.
A faceta medonha não se encerrou com o apito final. Combín foi encaminhado a um hospital policial para tratar-se porque simplesmente foi por dez horas preso, sob ordem de alguma autoridade rasa, pois o próprio presidente argentino Onganía interviu pessoalmente para liberar o jogador. A alegação é que o atacante tinha desde 1963 uma acusação de deserção do exército argentino, alheia ao fato de que um tratado do país com a França anularia isso caso quem tivesse as duas cidadanias cumprisse o serviço militar em um dos dois – Combín o fizera no exército francês.
Onganía, extremamente moralista (foi quem suspendeu Doval por quase um ano após acusação de assédio a uma aeromoça), decretou prisões, mas de alvirrubros. O trio Manera, Aguirre Suárez e Poletti foi detido, com o goleiro tendo de passar um mês na penitenciária de Villa Devoto e sendo banido do futebol inicialmente pelo resto da vida, algo inédito no país. Aguirre Suárez o foi por 30 jogos locais e cinco anos de jogos internacionais. Manera, por 20 e três. Os acontecimentos repercutiram muito na Europa, onde a final foi transmitida via satélite ao vivo, e mesmo no Brasil, onde o Jornal do Brasil ressaltou que “alguns comentaristas esportivos declararam-se impressionados com a solidariedade do povo argentino à equipe do Milan” e até opinou que “o governo argentino exagerou na dose do castigo aos brigões do Estudiantes, que deviam ser punidos em nível talvez menos rigoroso”.
De fato, Poletti foi perdoado após o fim do governo militar de Onganía, sete meses depois, voltando a jogar. Ao jornal espanhol As em 2005, ele deu sua versão: “lembro que antes do jogo de volta com o Milan desceu ao vestiário um sacerdote, o monsenhor das Forças Armadas da Argentina, e nos disse: ‘ganhar ou morrer’. Nós éramos jovens, eu tinha 23 anos… (…) Queriam que ganhássemos porque no país havia revoltas de trabalhadores, greves… e queriam tapar”. Indagado se teria revisto Combín, disse que “não, mas o chamei uma vez por telefone e falamos de futebol, sem rancores”.
Mas o fim das disputas da Intercontinental chegou a ser sugerido pela própria imprensa argentina: “parece ter chegado o momento de as autoridades internacionais cogitarem sobre se tais torneios devem continuar sendo disputados, visto que não se assiste a um espetáculo esportivo mas a uma guerra onde o jogador perde sua condição como tal para transformar-se num ser pouco acima do irracional”, reportou o La Nación. Zubeldía e o Estudiantes se desculparam publicamente. O treinador preferiu seguir no clube. A relação seguiria polêmica e vitoriosa, com novo título de Libertadores em 1970 e vice em 1971: “eu me fiz graças a todos os jogadores da equipe, incluindo os que agora estão detidos e sancionados de forma muito dura (…). Agora, que chegou o mal momento, não posso ser ingrato. (…) Renunciar seria uma covardia. E eu não abandono meus jogadores. Morro com eles”, declarou pouco após o desastre de 1969.
Estudiantes: Alberto Poletti, Eduardo Luján Manera, Ramón Aguirre Suárez, Raúl Madero e Oscar Malbernat, Carlos Bilardo (Juan Echecopar), Daniel Romeo e Néstor Togneri, Marcos Conigliaro, Juan Taverna e Juan Ramón Verón. T: Osvaldo Zubeldía. Milan: Fabio Cudicini, Saul Malatrasi (Aldo Maldera), Angelo Anquilletti, Romano Fogli e Roberto Rosato, Karl-Heinz Schnellinger, Giovanni Lodetti e Gianni Rivera, Ângelo Sormani, Néstor Combín e Pierino Prati (Giorgio Rognoni). T: Nereo Rocco. Árbitro: Domingo Massaro (PER). Gols: Rivera (31/1º), Conigliaro (43/1º) e Aguirre Suárez (44/1º).
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