Desnecessária uma introdução sobre o imortal Johan Cruijff – de quem, pessoalmente falando, tenho orgulho de ter redigido a maior parte do verbete na Wikipédia lusófona a ponto de nos idos de 2011 ser considerado oficialmente “destacado” por lá. Incrível como o cumprimento da foto acima pôde repetir-se tão cedo em outros planos, diante da perda de Roberto Perfumo apenas duas semanas antes da partida do gênio holandês, a completar meia década nesse 24 de março de 2021. A lenda laranja poderia também ter em 1978 saudado Daniel Passarella ou Jorge Carrascosa, o capitão original que politicamente abriu mão da Copa. Mas o aperto de mão com um capitão hermano teria sido evitado por outro evento de um 24 de março, mas de exatos 45 anos atrás: o golpe de Estado que derrubou Isabelita Perón.
Se Cruijff possibilitou que a carreira de Messi existisse (o holandês foi o entusiasta da reformulação das categorias de base do Barcelona), por outro lado é possível que o futebol argentino tenha contribuído para aquele Carrossel. Uma das táticas da Laranja era o uso e abuso de forçar a linha de impedimento. Era uma tática já usada pelo Estudiantes de La Plata, manobra irritante que auxiliou na má fama antiesportiva daquele elenco tri seguido da Libertadores – e que enfrentou os holandeses do Feyenoord na Intercontinental de 1970. Comentamos aqui e aqui.
Cruijff chegou a jogar na Argentina, uma única vez: pelo Ajax contra o Independiente na Intercontinental de 1972, então uma obsessão à torcida do Rojo, que já havia perdido nas duas tentativas anteriores e vira o Racing vencer o torneio na única que o rival tivera, em 1967. A lenda holandesa marcou logo aos cinco minutos no empate em 1-1 em Avellaneda. E goleou a Albiceleste duas vezes em 1974. Antes dos 4-0 na Copa do Mundo (“Eu não renunciava nunca a jogar, mas nessa partida do mundial, o goleiro Carnevali foi rápido buscar uma bola quando perdíamos de 2-0. ‘Não te apresses’, lhe pedi. ‘Por quê?’, me disse. ‘Porque nos vão fazer dez, idiota’. Tive medo de que nos fizessem dez”, confessou Perfumo), o carrossel bailou com um 4-1 em amistoso pré-Copa.
Perón, cuja viúva foi derrubada há 45 anos (tal como os Underwood fizeram no seriado House of Cards, marido e mulher se elegeram presidente e vice em 1973, mas o general faleceu menos de um ano depois – durante a Copa de 1974, por sinal), aliás, contara ainda antes ao atacante José Sanfilippo que a Holanda deveria ser a campeã. “Eu queria me atirar embaixo da mesa de risada, mas Perón nos contou que vinha assistindo futebol na Europa e que jogavam muito bem e com grande técnica”, lembrou o maior artilheiro da história do San Lorenzo, referindo-se também ao exílio espanhol vivido pelos Perón até outra ditadura dar lugar a um governo civil em 1973.
Tiago de Melo Gomes, também saudoso, já contou na nota “A ditadura que nasceu aliada ao futebol” uma parte menos conhecida do golpe que derrubou Isabelita Perón: naquele mesmo dia, a seleção argentina enfrentaria fora do país a Polônia. O amistoso foi o único evento mantido na programação televisiva, demonstrando que a ditadura começou a aproveitar-se do futebol literalmente desde o primeiro dia. Os atacantes da seleção eram Mario Kempes e Héctor Scotta. Ambos teriam ficado destroçados com a notícia e rumariam imediatamente ao futebol espanhol, em tempos onde ir ao exterior mais atrapalhava do que ajudava em manter-se convocado.
Scotta, que em 1975 havia marcado um recorde individual de gols para uma única temporada na Argentina (60 pelo San Lorenzo: saiba mais), de fato, não faria companhia a Kempes (o único argentino do futebol estrangeiro na Albiceleste campeã, em função de suas artilharias no Valencia) na Copa de 1978.
Como já dito, ninguém menos que o capitão da seleção também ausentou-se: Jorge Carrascosa era o capitão do Huracán de 1973, um time de jogo refinado cujo título credenciara o técnico César Menotti a assumir a seleção no ano seguinte (entenda).
Carrascosa defendeu a Argentina pela última vez no início de 1978 e seu afastamento nunca foi totalmente esclarecido, ensejando versões de motivação política. Foi assim que Passarella assumiu a braçadeira. Outro argentino que deixou de vir ao mundial foi Juan Carlos Heredia.
Heredia não jogaria pela Argentina, e sim pela Espanha (que veio com outro hermano, Rubén Cano, do Atlético de Madrid, sem parentesco com o vascaíno e autor do gol da classificação).
Em uma geração argentina dourada, havia craques aos montes inclusive no interior – algo que Menotti não deixara de perceber, tendo sido o único treinador a apostar largamente em atletas de clubes nacionais longe da Grande Buenos Aires. Nem o Barcelona, que nos anos 70 importara a dupla ofensiva Milonguita Heredia e Bernardo Cuchi Cos do Belgrano de Córdoba, e o defensor Rafael Zuviría, do Unión de Santa Fe: saiba mais. O Real Madrid, por sua vez, teve um ídolo em outro ex-Belgrano, o ponta Carlos Guerini.
O apelido de Heredia era Milonguita pois seu pai, também chamado Juan Carlos Heredia (ex-ponta-direita do Rosario Central e da seleção argentina vice-campeã da Copa América de 1942), era apelidado de Milonga. Heredia filho contou em fevereiro de 2014 à El Gráfico as razões pelas quais não voltou à terra natal jogar a Copa pela Furia. Alguns anos antes, seu colega Cruijff teria esclarecido que não foi apenas em protesto à ditadura argentina que teria abdicado da convocação à Copa de 1978.
Houve uma soma de fatores, desde o receio de nova crise conjugal como a que o craque tivera logo antes da final de 1974 a um quase sequestro meses antes do novo mundial. Heredia sustenta que a versão clássica também pesou. Clique aqui para acessar a íntegra. Abaixo, o trecho que interessa:
“Eu ia jogar o mundial pela seleção da Espanha. Um mês antes do Mundial, os militares vieram à minha casa. Puseram minha mãe contra a parede e levantaram meu pai, que estava em cama doente com 40 graus de febre. O cobriram só com um lençol e meu pai lhes perguntou por que não o deixavam vestir-se, lhes contou que tinha muita febre. ‘Para onde vais, não precisarás de roupa’, lhe disse um milico. Sim, lhe disseram isso. E começaram a buscar coisas, reviraram tudo, inclusive lhe roubaram um isqueiro de ouro que eu havia presenteado a meu velho, com suas iniciais.
Já o levavam e nisso entrou outro militar, de patente maior. Se pôs a observar e viu que na sala de estar havia muitas fotos minhas, de quando jogava no Belgrano e no Barcelona. Então esse milico pergunta se eram fanáticos pelo Milonguita. Minha mãe respondeu que sim, porque eram os pais do Milonguita. ‘Você é, então, o Milonga?’, perguntou o cara. ‘Sim’, respondeu meu pai. ‘Nos equivocamos’, disse o militar. Pediu desculpas, explicou que havia sido um erro, e saíram dizendo que esperassem uns minutos para acender a luz. Quando acenderam a luz, chegaram os vizinhos e contaram que a casa havia sido rodeada.
Três dias depois, meu velho, já recuperado, vai trabalhar, e se encontra com um advogado que sabia o que havia ocorrido e lhe contou que na lista negra havia um Juan Carlos Heredia. Se não viesse esse outro milico, o levavam e o matavam. Eu ligava para minha casa desde Barcelona a cada 15 dias mais ou menos. Então meu pai me contou o que havia passado. Fui falar com Ladislao Kubala, que era o técnico da Espanha, e lhe disse tudo, lhe contei com riqueza de detalhes. Não queria ir ao Mundial.
Meu pai me disse que aguentava, que não me esquecesse que o topo máximo era jogar um Mundial, mas para mim o topo máximo era minha família. Então não vim. Cruijff falou comigo. Queriam convencer Johan na Holanda (a ir à Copa) e disse que não. Não jogava onde houvesse um regime militar. Ele sabia o que me havia acontecido”.
Por fim, indagado se não teria ficado entalado por não ter jogado uma Copa, Heredia frisou, dando mais detalhes sobre a escolha de Cruijff: “não. Nunca me arrependi de cuidar da minha família. Eu intuía que algo poderia acontecer. Sem ter nada a ver, quase acontece! Imagine se viesse ao Mundial e tivesse que jogar com a Espanha uma final contra a Argentina! Ia chutar para cima, era difícil. Cruijff havia vindo em 1972 com o Ajax jogar contra o Independiente e teve que dormir com policiais porque chegavam ameaças de que o iam matar. Não pôde sair do hotel. Então, se nessa época já era sofrido, ele imaginava que em 1978 ia ser pior”.
Que fique a lição a saudosos do chumbo. E obrigado, Johan!
Nota originalmente publicada no dia da morte do holandês (e dos 40 anos do golpe), em 2016. Agradecimentos à revista Un Caño também.
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