Especiais

Como o golpe de Estado argentino tirou Cruijff da Copa de 1978

Desnecessária uma introdução sobre o imortal Johan Cruijff – de quem, pessoalmente falando, tenho orgulho de ter redigido a maior parte do verbete na Wikipédia lusófona a ponto de nos idos de 2011 ser considerado oficialmente “destacado” por lá. Incrível como o cumprimento da foto acima pôde repetir-se tão cedo em outros planos, diante da perda de Roberto Perfumo apenas duas semanas antes da partida do gênio holandês, a completar meia década nesse 24 de março de 2021. A lenda laranja poderia também ter em 1978 saudado Daniel Passarella ou Jorge Carrascosa, o capitão original que politicamente abriu mão da Copa. Mas o aperto de mão com um capitão hermano teria sido evitado por outro evento de um 24 de março, mas de exatos 45 anos atrás: o golpe de Estado que derrubou Isabelita Perón.

Se Cruijff possibilitou que a carreira de Messi existisse (o holandês foi o entusiasta da reformulação das categorias de base do Barcelona), por outro lado é possível que o futebol argentino tenha contribuído para aquele Carrossel. Uma das táticas da Laranja era o uso e abuso de forçar a linha de impedimento. Era uma tática já usada pelo Estudiantes de La Plata, manobra irritante que auxiliou na má fama antiesportiva daquele elenco tri seguido da Libertadores – e que enfrentou os holandeses do Feyenoord na Intercontinental de 1970. Comentamos aqui e aqui.

Cruijff chegou a jogar na Argentina, uma única vez: pelo Ajax contra o Independiente na Intercontinental de 1972, então uma obsessão à torcida do Rojo, que já havia perdido nas duas tentativas anteriores e vira o Racing vencer o torneio na única que o rival tivera, em 1967. A lenda holandesa marcou logo aos cinco minutos no empate em 1-1 em Avellaneda. E goleou a Albiceleste duas vezes em 1974. Antes dos 4-0 na Copa do Mundo (“Eu não renunciava nunca a jogar, mas nessa partida do mundial, o goleiro Carnevali foi rápido buscar uma bola quando perdíamos de 2-0. ‘Não te apresses’, lhe pedi. ‘Por quê?’, me disse. ‘Porque nos vão fazer dez, idiota’. Tive medo de que nos fizessem dez”, confessou Perfumo), o carrossel bailou com um 4-1 em amistoso pré-Copa.

Perón, cuja viúva foi derrubada há 45 anos (tal como os Underwood fizeram no seriado House of Cards, marido e mulher se elegeram presidente e vice em 1973, mas o general faleceu menos de um ano depois – durante a Copa de 1974, por sinal), aliás, contara ainda antes ao atacante José Sanfilippo que a Holanda deveria ser a campeã. “Eu queria me atirar embaixo da mesa de risada, mas Perón nos contou que vinha assistindo futebol na Europa e que jogavam muito bem e com grande técnica”, lembrou o maior artilheiro da história do San Lorenzo, referindo-se também ao exílio espanhol vivido pelos Perón até outra ditadura dar lugar a um governo civil em 1973.

amistoso
Cenas do amistoso com a Polônia ocorrido no dia do golpe. A Argentina ganhou por 2-1

Tiago de Melo Gomes, também saudoso, já contou na nota “A ditadura que nasceu aliada ao futebol” uma parte menos conhecida do golpe que derrubou Isabelita Perón: naquele mesmo dia, a seleção argentina enfrentaria fora do país a Polônia. O amistoso foi o único evento mantido na programação televisiva, demonstrando que a ditadura começou a aproveitar-se do futebol literalmente desde o primeiro dia. Os atacantes da seleção eram Mario Kempes e Héctor Scotta. Ambos teriam ficado destroçados com a notícia e rumariam imediatamente ao futebol espanhol, em tempos onde ir ao exterior mais atrapalhava do que ajudava em manter-se convocado.

O último jogo profissional de Cruyff no Barcelona foi contra o Valencia de Kempes
O último jogo profissional de Cruijff no Barcelona foi contra o Valencia de Kempes

Scotta, que em 1975 havia marcado um recorde individual de gols para uma única temporada na Argentina (60 pelo San Lorenzo: saiba mais), de fato, não faria companhia a Kempes (o único argentino do futebol estrangeiro na Albiceleste campeã, em função de suas artilharias no Valencia) na Copa de 1978.

Como já dito, ninguém menos que o capitão da seleção também ausentou-se: Jorge Carrascosa era o capitão do Huracán de 1973, um time de jogo refinado cujo título credenciara o técnico César Menotti a assumir a seleção no ano seguinte (entenda).

Carrascosa defendeu a Argentina pela última vez no início de 1978 e seu afastamento nunca foi totalmente esclarecido, ensejando versões de motivação política. Foi assim que Passarella assumiu a braçadeira. Outro argentino que deixou de vir ao mundial foi Juan Carlos Heredia.

Heredia não jogaria pela Argentina, e sim pela Espanha (que veio com outro hermano, Rubén Cano, do Atlético de Madrid, sem parentesco com o vascaíno e autor do gol da classificação).

Em uma geração argentina dourada, havia craques aos montes inclusive no interior – algo que Menotti não deixara de perceber, tendo sido o único treinador a apostar largamente em atletas de clubes nacionais longe da Grande Buenos Aires. Nem o Barcelona, que nos anos 70 importara a dupla ofensiva Milonguita Heredia e Bernardo Cuchi Cos do Belgrano de Córdoba, e o defensor Rafael Zuviría, do Unión de Santa Fe: saiba mais. O Real Madrid, por sua vez, teve um ídolo em outro ex-Belgrano, o ponta Carlos Guerini.

O apelido de Heredia era Milonguita pois seu pai, também chamado Juan Carlos Heredia (ex-ponta-direita do Rosario Central e da seleção argentina vice-campeã da Copa América de 1942), era apelidado de Milonga. Heredia filho contou em fevereiro de 2014 à El Gráfico as razões pelas quais não voltou à terra natal jogar a Copa pela Furia. Alguns anos antes, seu colega Cruijff teria esclarecido que não foi apenas em protesto à ditadura argentina que teria abdicado da convocação à Copa de 1978.

Houve uma soma de fatores, desde o receio de nova crise conjugal como a que o craque tivera logo antes da final de 1974 a um quase sequestro meses antes do novo mundial. Heredia  sustenta que a versão clássica também pesou. Clique aqui para acessar a íntegra. Abaixo, o trecho que interessa:

Cruyff Heredia
Cruijff deixando Avellaneda e Heredia com a camisa da Espanha

“Eu ia jogar o mundial pela seleção da Espanha. Um mês antes do Mundial, os militares vieram à minha casa. Puseram minha mãe contra a parede e levantaram meu pai, que estava em cama doente com 40 graus de febre. O cobriram só com um lençol e meu pai lhes perguntou por que não o deixavam vestir-se, lhes contou que tinha muita febre. ‘Para onde vais, não precisarás de roupa’, lhe disse um milico. Sim, lhe disseram isso. E começaram a buscar coisas, reviraram tudo, inclusive lhe roubaram um isqueiro de ouro que eu havia presenteado a meu velho, com suas iniciais.

Já o levavam e nisso entrou outro militar, de patente maior. Se pôs a observar e viu que na sala de estar havia muitas fotos minhas, de quando jogava no Belgrano e no Barcelona. Então esse milico pergunta se eram fanáticos pelo Milonguita. Minha mãe respondeu que sim, porque eram os pais do Milonguita. ‘Você é, então, o Milonga?’, perguntou o cara. ‘Sim’, respondeu meu pai. ‘Nos equivocamos’, disse o militar. Pediu desculpas, explicou que havia sido um erro, e saíram dizendo que esperassem uns minutos para acender a luz. Quando acenderam a luz, chegaram os vizinhos e contaram que a casa havia sido rodeada.

Três dias depois, meu velho, já recuperado, vai trabalhar, e se encontra com um advogado que sabia o que havia ocorrido e lhe contou que na lista negra havia um Juan Carlos Heredia. Se não viesse esse outro milico, o levavam e o matavam. Eu ligava para minha casa desde Barcelona a cada 15 dias mais ou menos. Então meu pai me contou o que havia passado. Fui falar com Ladislao Kubala, que era o técnico da Espanha, e lhe disse tudo, lhe contei com riqueza de detalhes. Não queria ir ao Mundial.

Meu pai me disse que aguentava, que não me esquecesse que o topo máximo era jogar um Mundial, mas para mim o topo máximo era minha família. Então não vim. Cruijff falou comigo. Queriam convencer Johan na Holanda (a ir à Copa) e disse que não. Não jogava onde houvesse um regime militar. Ele sabia o que me havia acontecido”.

Por fim, indagado se não teria ficado entalado por não ter jogado uma Copa, Heredia frisou, dando mais detalhes sobre a escolha de Cruijff: “não. Nunca me arrependi de cuidar da minha família. Eu intuía que algo poderia acontecer. Sem ter nada a ver, quase acontece! Imagine se viesse ao Mundial e tivesse que jogar com a Espanha uma final contra a Argentina! Ia chutar para cima, era difícil. Cruijff havia vindo em 1972 com o Ajax jogar contra o Independiente e teve que dormir com policiais porque chegavam ameaças de que o iam matar. Não pôde sair do hotel. Então, se nessa época já era sofrido, ele imaginava que em 1978 ia ser pior”.

Que fique a lição a saudosos do chumbo. E obrigado, Johan!

Nota originalmente publicada no dia da morte do holandês (e dos 40 anos do golpe), em 2016. Agradecimentos à revista Un Caño também.

heredia
Os Heredia ao meio. À esquerda, o pai à frente do técnico Guillermo Stábile na Argentina de 1942. À direita, o filho com Cruijff no Barcelona

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

6 thoughts on “Como o golpe de Estado argentino tirou Cruijff da Copa de 1978

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

20 + dezessete =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.