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40 anos da única final argentina entre Boca e River

Para muitos a maior rivalidade do planeta, Boca e River já reservaram alguns clássicos como decisivos a títulos, mas carecem de finais propriamente ditas. Nos pontos corridos, o River já garantiu matematicamente o título argentino em Superclásicos em 1942 e 1955, e moralmente em 1994 (todos na Bombonera!), enquanto o Boca respondeu moralmente em 1962 e matematicamente em 1964 e 1969 (este, no Monumental). Mas final, mesmo, só existiu ainda a travada em 22 de dezembro de 1976. Melhor para o Boca, que festejou no pacote um bicampeonato anual seguido e passaporte para as primeiras Libertadores que ganhou. No torneio que rendeu a estreia oficial de Maradona.

Na época, já haviam dois campeões por ano. Entre 1967 e 1985, o campeonato argentino, que apesar do nome era restrito geograficamente à Grande Buenos Aires, La Plata, Rosario, Santa Fe e ocasionalmente Córdoba e Junín, foi apropriadamente renomeado Torneio Metropolitano. Nesse período, os melhores (às vezes, todos) os clubes do Metropolitano posteriormente disputavam o Torneio Nacional, travado contra os melhores times das ligas do interior. O primeiro clube a ganhar ambos os torneios na mesma temporada foi o San Lorenzo, em 1972. Foi seguido pelo River em 1975.

Esse bi anual do River, aliás, encerrou em alto estilo o maior jejum da história da instituição, dezoito anos que perduravam desde 1957 (a conquista foi retratada neste Especial). Foi o pontapé para uma das fases mais gloriosas do clube, campeão seis vezes entre 1975 e 1980. O único ano em branco foi aquele 1976. O Millo perdeu a final da Libertadores e viu o Boca abocanhar os dois torneios domésticos – o segundo deles, há exatos 40 anos, de um jeito similar ao qual a Banda Roja perdera a competição continental. O próprio título metropolitano, definido em agosto, já era para se festejar além do normal: enquanto o mundo se chocava com o acidente de Niki Lauda, o Boca encerrava um pequeno jejum de seis anos, ainda que graças a um regulamento esdrúxulo.

Os times foram divididos em grupos de onze, nos quais os quatro primeiros de cada avançavam a um octagonal final. Os auriazuis haviam terminado justamente em quarto na sua chave, doze pontos atrás do líder invicto Huracán. Na terceira rodada, eles se enfrentaram com o oponente ganhando de 2-1 e merecendo a seguinte análise da revista El Gráfico: “o Boca é todo um projeto. O Huracán, uma equipe”. Huracán que naquele ano ganhou todos os cinco clássicos contra o San Lorenzo, algo inédito em qualquer dérbi no país, ignorando a inferioridade histórica dos quemeros na rivalidade. O clube já havia sido semifinalista da Libertadores de 1974 e vice metropolitano do River em 1975.

Mastrángelo e Gatti no Unión, de onde vieram: eram ambos ex-River

O time do bairro de Parque de los Patricios mantinha a base campeã com belíssimo futebol em 1973, já possuidora de alguns futuros campeões do mundo em 1978 (Houseman, Larrosa e o técnico Menotti, cujo cargo agora era de Miguel Juárez) e reforçara-a com outros campeões em 1975 (Ardiles) e 1976 (Baley). Mesmo sofrendo o baque moral de perder o ídolo e mecenas Ringo Bonavena, assassinado em maio, o Globo manteve a invencibilidade até o início do octagonal. Somou 37 pontos na fase de grupos enquanto o líder da outra chave, o River, só acumulou 27. Mas na reta final decaiu e o Boca engrenou para a taça, ainda que tenha ganho o torneio acumulando nove pontos a menos que o vice (!).

Aquele Boca de fato era um projeto. Após três anos treinado pelo ex-goleiro Rogelio Domínguez, a falta de títulos pesou mais que o bom futebol apresentado e Domínguez foi substituído por Juan Carlos Lorenzo, técnico da seleção nas Copas de 1962 e 1966. Lorenzo havia sido o técnico daquele San Lorenzo bi anual de 1972 e repetiria a dose. Mas a credencial para o cargo era o ótimo trabalho recente no modesto Unión. O clube de Santa Fe havia sido 4º colocado no Metropolitano de 1975, sua melhor colocação até então. Daquele Unión, o Boca importou também dois ex-jogadores do River: o veterano goleiro Hugo Gatti e o ponta Heber Mastrángelo, ambos torcedores auriazuis na infância. Outro a vir do Unión era o lateral Rubén Suñé, que voltava ao Boca após quatro anos – guarde o nome dele.

Dentre outros, as novas contratações incluíam ainda outro ex-pupilo de Lorenzo, o atacante Carlos Veglio, do San Lorenzo de 1972; e também Francisco Sá, zagueiro participante do recordista tetra seguido do Independiente na Libertadores entre 1972-75 (Pancho Sá, ao vencer o torneio pelo Boca em 1977-78, viraria o jogador mais vezes campeão da Libertadores). Mas esse pacotão não engrenou logo de cara, como sugere a 4ª colocação na fase inicial do Metropolitano, após resultados que incluíram derrota de 1-0 no Superclásico (quase custando o emprego de Lorenzo), um 5-1 para o Rosario Central com três gols de Mario Kempes e o chocante 3-1 para o nanico e rebaixado San Telmo, que estreava na elite. A boa fase veio na hora certa. A ponto de o título metropolitano se garantir ainda na penúltima rodada do octagonal, justo contra o Unión.

O jogo e volta olímpica, por sinal, foram no Monumental, com o técnico Pepe Lorenzo declarando que o estádio do arquirrival “nos dá boa sorte, jogamos como se fôssemos o time da casa”. Em setembro, então, começou o Torneio Nacional, após um mês de indefinição: problemas econômicos ameaçavam, mas a empresa Nobleza Piccardo ofereceu patrocínio. Dois grupos de oito cada e outros dois de nove cada fizeram turno e returno no interior das chaves, com dois jogos intergrupais (normalmente, os clássicos). Os dois melhores de cada chave avançaram aos mata-matas. No Boca, a novidade era o meia-esquerda Mario Zanabria, herói do primeiro título argentino do Newell’s (fez o gol da conquista justo em clássico contra o Rosario Central na casa adversária).

Passarella e Mastrángelo, autores dos gols das semifinais, e a famosa defesa de Gatti

O River, após perder a Libertadores, reforçou-se com dois futuros ídolos históricos, Emilio Commisso e Eduardo Saporiti, ambos do Racing de Córdoba; além do volante-artilheiro Nicolás Cocco, curiosamente ex-pupilo de Pepe Lorenzo no San Lorenzo e no Unión. A principal dupla do país venceu suas chaves, ambos com dez vitórias em dezesseis jogos. Na trajetória do Boca, destaque a um 5-0 fora de casa sobre o Temperley em um grupo embolado: a duas rodadas do fim, ambas vencidas, era o terceiro, atrás de Quilmes e Independiente. Já o River, mais tranquilo, venceu ambos os jogos contra o Racing (4-2 no Monumental e 1-0 em Avellaneda), fez 3-0 fora de casa no Atlético Ledesma e massacrou o San Telmo com um 7-1 no Monumental e um 5-2 fora de casa.

Juntaram-se aos mata-matas àqueles bons times do Huracán e do Unión, além de Banfield, Newell’s, Quilmes e Talleres. Nessa fase, iniciada já na segunda quinzena de dezembro, os jogos foram em turno único em campo neutro. O Superclásico poderia ter ocorrido já no primeiro mata-mata. Isso porque Boca e Quilmes haviam terminado empatados no seu grupo. Assim, precisaram fazer um jogo-extra a 48 horas das quartas-de-final, e quem perdesse pegaria o Millo. O Boca escalou seus reservas, mas ainda assim ganhou e pegou o Banfield, que ofereceu jogo duríssimo no estádio do Racing. Darío Felman e Juan Taverna, ex-jogador do oponente contratado exatamente naquele 1976 (Taverna entrou para a história pelo recorde de gols em um só jogo do campeonato argentino ao fazer sete pelo Banfield no 13-1 sobre o Puerto Comercial em 1974) assinalaram a vitória por 2-1 sobre o Taladro.

O mesmo placar de 2-1 foi feito pelo River (o veterano Oscar Más fez ambos os gols millonarios) no estádio do Huracán. Huracán que esteve novamente no páreo ao eliminar o Newell’s (2-0, em La Bombonera). Já o Talleres surrou por 4-0 o Unión. Nas semifinais, o Boca teve o Huracán de novo pela frente em 1976. Mastrángelo fez o único gol no estádio do Independiente após uma partida toda controlada pelos xeneizes. Já em La Bombonera, também por 1-0 (gol de pênalti de Daniel Passarella, que fez simplesmente dez gols no torneio mesmo sendo zagueiro), o River bateu o Talleres, outro timaço daqueles tempos: La T só teve menos jogadores que o próprio River na seleção campeã de 1978.

A excitação por uma final de Superclásico e à beira do natal foi enorme. Além de estimados 90 mil presentes, uma enormidade para os padrões argentinos (os pagantes foram 70 mil), rendeu anedota do árbitro Arturo Ithurralde. Embora fosse o melhor do país, não era, como seus colegas, profissional; sua renda vinha de trabalho no Banco de la Nación: “desde que cheguei, estava rodeado pelos meus companheiros, que vinham me perguntar coisas da partida. O gerente, que muito não sabia de futebol, perguntou a meu chefe: ‘que acontece no escritório de Ithurralde?’. Então lhe explicaram sobre o jogo dessa noite. A resposta do gerente não se fez esperar: ‘que Ithurralde vá a sua casa, ponha música e descanse. E amanhã tampouco o quero ver, mandem-lhe o arquivo. Prefiro perder um empregado por dois dias a ter todo o setor sem trabalhar'”.

A cobrança de Suñé e ele erguido por Tarantini

A dupla já havia se enfrentado duas vezes pela competição, ambas nos jogos intergrupais. O primeiro terminou em 1-1 e foi marcado pela polêmica suspensão prévia do goleiro Gatti por trajar-se com bandana e bermuda. No outro, o Boca venceu por 2-0, em sua primeira vitória sobre o rival naquele 1976, na quarta tentativa. Já naquela final, as excentricidades de Gatti, que não se resumiam ao visual, quase custaram caro. O goleiro gostava de jogar adiantado e precisou correr muito para realizar a que considera a melhor defesa de sua vida, espalmando uma tentativa do meio-campo do habilidoso volante Juan José Jota Jota López. Outro jogador boquense arriscado era Mastrángelo: lesionado na semifinal, foi mantido pela raposa Pepe Lorenzo apenas para ocupar a marcação de Passarella. A torcida do River se concentrou em todo o anel inferior do Cilindro, e a do Boca, em todo o superior.

O River já havia perdido a Libertadores por um gol-surpresa de falta de Joãozinho, antes que o juiz apitasse a autorização e com a barreira ainda sendo formada – não anulou pois o próprio River usara do mesmo expediente naquela partida. Essa necessidade de autorização foi derrubada na Argentina na semana da final. O árbitro a comunicou previamente aos capitães de ambos, Roberto Perfumo e El Chapa Suñé, no cara e coroa (realizado ainda no vestiário tamanha a gritaria). Perfumo inclusive aprovou, pois assim o jogo correria mais solto. O Boca era só confiança: “tínhamos uma mescla de garra e bom futebol. (…) Em campos e situações difíceis também nos impúnhamos. Fomos nos acostumando a esse estilo de jogo. (…) Tínhamos muita segurança enquanto os outros, ante determinadas situações, no melhor ficavam nervosos”, declarou Suñé neste mês à El Gráfico.

Aos 27 do segundo tempo, com um 0-0 truncado, Suñé se aproveitou após Passarella fazer falta em Jorge Ribolzi. Não era o cobrador oficial. Pediu licença ao juiz e ao colega Carlos Veglio enquanto Ubaldo Fillol (que não havia jogado a final da Libertadores, e sim Luis Landaburu) ainda armava a barreira – o técnico Lorenzo, ciente da nova regra, havia avisado que Fillol costumava se demorar nisso. O goleiro apenas olhou a bola entrar no ângulo. Não podia haver melhor autor: Suñé havia estreado pelo Boca em 1967 e foi jogador mais vezes campeão do clube no século XX. O que não o impediu de uma tentativa de suicídio em 1984, tomado pelo vazio da aposentadoria. Vazio de quem declarou que se não fosse o fosso entre campo e arquibancadas, teria subido até a plateia auriazul. De quem hoje, exatos quarenta anos depois, virou estátua no museu boquense anexo à Bombonera.

Cinco dias depois da final, o River bateu o Huracán por 4-1 em um tira-teima de vices do Boca, estando em jogo a outra vaga argentina na Libertadores de 1977. Mas não teve o que festejar: no próprio torneio continental, caiu na primeira fase enquanto o arquirrival adiante venceu La Copa pela primeira vez (e, adiante, seu primeiro Mundial), por sinal contra o Cruzeiro. A festa xeneize estava completa, ainda que um novo título argentino exigisse mais meia década de jejum doméstico. Encerrado em alto estilo com Maradona em 1981 (logo ele, que fez sua estreia no futebol adulto exatamente naquele Torneio Nacional de 1976, ainda aos 15 anos de idade). Uma outra história, que retratamos aqui.

Atualização em 7 de março de 2017: clique aqui para acessar Especial dedicado a Suñé, no dia em que completou 70 anos.

O gol da final. Incrivelmente, não há registros dele em vídeo

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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