De todos os títulos já levantados pelo maior campeão argentino, é provável que nenhum teve trajetória tão sinuosa como o Nacional de 1981, cuja partida final completou ontem 35 anos. O River esteve longe de encantar naquele torneio, mas riu por último após quase cair na primeira fase e superar baixas polêmicas de dois ídolos históricos. Uma trajetória personificada pela grande estrela do campeão, um instável Mario Kempes. El Matador conseguiu ser decisivo mesmo em meio a lesões e suspensões. Foi o último brilho do craque, ao menos em campeonatos de alto nível.
Em setembro, contamos uma prévia dessa história. Foi nos 35 anos de um Superclásico em que Kempes terminou superior a Maradona: de falta, fez um dos gols da vitória millonaria por 3-2 em plena Bombonera, ainda que Dieguito tenha aberto o marcador com um antológico chute da linha lateral. A vinda de Kempes (e de dos esquecidos reservas René Houseman e Agustín Cejas) ao River foi uma resposta à contratação de Maradona pelo Boca, também naquele ano. Esportivamente, Diego vinha sendo um sucesso, campeão argentino (do Metropolitano) em agosto: lembramos aqui. Mario, às voltas com lesões no ombro e na coxa, não. Nem sempre poderia jogar e mesmo em campo não era sinal de espetáculo. O River foi péssimo no Metropolitano.
A nova resposta de Núñez foi trazer Alfredo Di Stéfano (e Julio Olarticoechea e Américo Gallego). O mito voltou ao velho clube, agora como treinador, para substituir o ex-colega Ángel Labruna. Labruna havia tirado em 1975 o clube de um jejum de dezoito anos, a perdurar desde quando ainda jogava, em 1957. De repente, o River virou uma máquina, com seis títulos argentinos entre 1975 e 1980. Só que o River falhava na Libertadores, cobrança aumentada após o Boca ter vencido o torneio pelas primeiras vezes, em 1977 e 1978 (em ambas, eliminando o rival). Em 1981, o time caiu vergonhosamente na primeira fase e assim foi boicotado pela própria torcida.
O Monumental mal recebia mil pagantes e Labruna saiu. Meses antes de falecer, em 1983, mostrou em entrevista à Placar ciúmes de Di Stéfano, não considerando-o um dos maiores jogadores sul-americanos. A Placar, aliás, mostrou ainda em junho de 1981 que a farra com os astros, contratados em dólar, já trazia consequências financeiras graves aos dois gigantes. Elas só aumentariam com a valorização da moeda ianque em 240%, com os desmandos econômicos da ditadura.
O Nacional começou em meados de setembro, com todos os clubes do Metropolitano – incluindo o rebaixado San Lorenzo (relembre a queda) – recebendo companhia de clubes de Córdoba, Tucumán, Mendoza, Mar del Plata, Jujuy, Salta, Posadas e de uma certa equipe de Olavarría, na Patagônia. Foram divididos em quatro grupos de sete cada, com os dois melhores de cada indo a mata-matas após turno e returno no interior dos grupos, além de dois jogos intergrupais – normalmente, os clássicos.
O Boca de Maradona, embora derrotado em casa naquele jogo intergrupal contra o rival, em meio a uma sequência de três derrotas, não teve maiores sustos a não ser problemas cardíacos do treinador Silvio Marzolini. Mesmo intercalando o campeonato com uma turnê pela Costa do Marfim para capitalizar o fenômeno Maradona, classificou-se com antecipação na chave que teve como surpresa o San Lorenzo: de rebaixado, quase se classificou. A outra vaga foi do Instituto de Córdoba, dois pontos à frente dos azulgranas e onde jogava Raúl Chaparro, artilheiro do Metro por La Gloria. Levou nos critérios de desempate contra o Estudiantes do destaque Patricio Hernández, que iria à Copa de 1982.
O Argentinos Jrs, sem Maradona, havia passado de vice em 1980 a quase rebaixado em 1981 no Metropolitano, livrando-se na ultima rodada ao vencer jogo direto contra o San Lorenzo. Como ele, também surpreendeu. Promovendo Sergio Batista e Pedro Pasculli, futuros campeões da Copa de 1986, perdeu por um ponto a classificação no seu grupo. Ela ficou com o Rosario Central (campeão em 1980) e outra surpresa, o Gimnasia de Jujuy. O Racing foi a decepção, na lanterna.
Racing bom era o Racing de Córdoba, treinado por sinal por Alfio Basile, ídolo do “original”. O time havia sido vice do Rosario Central em 1980 e mesmo não classificado deu trabalho, a dois pontos da classificação em seu grupo. Acabaria incluído no Torneio Metropolitano a partir do ano seguinte. As vagas ficaram com Independiente e Vélez, que importara da França o veterano Carlos Bianchi. Seu sucesso como técnico ofusca o goleador espetacular que era (entenda). Ele ainda é o maior artilheiro argentino em ligas nacionais. Com mais de 30 anos e já com cabelos brancos, foi o goleador do campeonato, por um clube de futebol ainda nanico, possuidor de um único título argentino.
E o River? Sequer foi líder em seu grupo, e sim o chato mas eficiente Ferro Carril Oeste. Os verdolagas já haviam sido vices por um único ponto para o Boca em agosto. Iniciando a fase mais brilhante de sua história, a equipe do bairro de Caballito venceu o River lá e no Monumental. A surpresa era o tal time de Olavarría, o valente Loma Negra de Armando Husillos (autor de gol da vitória em amistoso que o time fez contra a seleção soviética) e Félix Orte. O River era instável. Podia tanto ganhar do rival na Bombonera, de 4-0 do Guaraní Antonio Franco ou de 5-0 da decepção Talleres (justamente o novo clube de Labruna, quarto colocado com La T em 1974) como, após os 5-0, perder para o Ferro e depois empatar sem gols em casa com o Loma.
Esse empate, na penúltima rodada, manteve o visitante um ponto à frente. Para piorar, o astro Kempes foi suspenso por seis rodadas por insultar o árbitro – o que significava que só voltaria a campo em um hipotético segundo jogo final. Na última rodada, o River jogaria fora contra o Sarmiento. E o Loma pegaria em casa aquele Talleres… além da campanha ruim dele, corria a percepção que Labruna facilitaria em uma vingança contra a diretoria que o demitira do River. Mas não foi o que ocorreu. O Loma, que havia começado com tudo, vinha decaindo desde o início do returno.
Os novos comandados de Labruna seguraram o 0-0 em Olavarría enquanto os antigos, com os obscuros Roberto Gordon e Pedro Vega, bateram por 2-0 o Sarmiento em Junín. Nos critérios de desempate, o cambaleante River, com saldo de gols +14 contra +5 do concorrente, pôde avançar. No mata-mata, o Ferro tirou o Gimnasia de Jujuy com dois 1-0. O Independiente segurou o 0-0 em Avellaneda contra o Instituto após batê-lo por 2-1 em Córdoba. Roteiro semelhante para River x Rosario Central: 2-1 em Rosario e depois 0-0 no Monumental. Já Boca x Vélez foi um escândalo. Na Bombonera, deu Boca 2-1.
Só que o triunfo foi agridoce: Maradona terminou sendo um dos três expulsos de cada lado (todos os seis, no primeiro tempo!). Aquela partida terminou sendo o último jogo de Diego no campeonato argentino até o craque vir ao Newell’s em 1993. No bairro de Liniers, Bianchi fez um dos gols nos 3-1 que eliminaram sua futura outra casa. Maradona, em sua primeira passagem pelo Boca, só jogaria mais alguns amistosos antes de iniciar em fevereiro de 1982 sua concentração com a seleção para a Copa – esse planejamento de reunir os convocados desde fevereiro havia dado certo em 1978.
As duas semis tiveram cartaz. River e Independiente fariam o duelo de gigantes enquanto Ferro e Vélez travariam o mais importante Clásico del Oeste. O Ferro deixou para lá sua histórica inferioridade na rivalidade e venceu por 2-1 dentro de Liniers. Em Caballito, El Virrey Bianchi marcou, mas ficou no 1-1. Carlos Arregui, que fez gol nos dois dérbis, foi o herói da ocasião. O River também jogou a segunda semifinal com o regulamento no braço. Avançou só pelo gol fora de casa após sair de Avellaneda com um 1-1 para segurar o 0-0 em Núñez. Já para a decisão, em reencontro contra o Ferro, seria em casa a primeira partida. O Millo jogou desfalcado de Kempes e dos lesionados Tolo Gallego e Norberto Alonso. Ainda assim, venceu, 1-0 com gol de El Vasco Olarticoechea.
Mas nem isso tranquilizou o ambiente. A dois dias da segunda final, o ídolo Beto Alonso explodiu contra Di Stéfano, que avisara-lhe de antemão que continuava a avaliá-lo sem condições de jogo. Desde 1971 no clube, o habilidoso camisa 10 teve peito de usar “ou ele ou eu” com o presidente millonario Rafael Aragón Cabrera. Que preferiu o treinador. Cujo trabalho irregular fez a torcida, ao contrário, se posicionar pelo meia: a plateia visitante em Caballito soltou com frequência os gritos “Alooon, Alooon…” (no característico jeito de entoar os ídolos subtraindo a última sílaba).
Ainda assim, Di Stéfano fez história. Todas as suas peripécias como jogador ofuscam que ali ele virou o primeiro – e ainda único – técnico campeão argentino por River e Boca, onde trabalhara no título de 1969. História possibilitada por seu velho pupilo no Valencia, Mario Kempes. Ele voltou a ser El Matador na hora mais oportuna, cabeceando em cruzamento de José Vieta para dar o título ao River. Os verdolagas pressionaram, mas a sólida dupla defensiva entre Daniel Passarella e Alberto Tarantini neutralizou-os firmemente. Foi o canto do cisne de Kempes, que se já não era tão implacável como antes manteve números respeitáveis em Núñez: 16 gols em 32 jogos, o que resulta em média exata de meio por jogo – e por um atleta bichado. E que era torcedor do Boca na infância…
Epílogos: aquela foi também a virtual despedida de Kempes do futebol doméstico. Como Maradona, ele também juntou-se em fevereiro à longa concentração da seleção para a Copa. A Guerra das Malvinas pioraria ainda mais a crise econômica e os dois astros dolarizados não puderam ser segurados da Europa. O Boca entraria em seu maior jejum doméstico, até 1992. O River, em seu segundo maior, até 1986 – ano dourado para o regressado Alonso e o clube, como explicado na semana passada. Sem a dupla no páreo e as camisas pesadas de San Lorenzo (1981), Racing (1983), Rosario Central (1984) e Huracán (1986) sofrendo rebaixamentos, clubes “alternativos” passaram a concorrer com o gigante Independiente. Como o bivice Ferro, a enfim ganhar a taça em 1982, e de forma invicta, e em 1984, fazendo na final 3-0 em meia hora no próprio Monumental em revanche contra o River. Outra histórias, contadas neste outro Especial (1982) e neste (1984).
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