Ao menos entre as rivalidades mais conhecidas do mundo, não há dúvidas desse recorde ser do Clásico Rosarino. Além das rixas mais badaladas, com nomes em comum facilmente identificáveis pela internet, podemos elencar “traidores” mais recentes em rivalidades políticas como Lazio-Roma (Aleksandar Kolarov), religiosas como Celtic-Rangers (o célebre Mo Johnston), cinematográficas como Millwall-West Ham (Teddy Sheringham) e pelos também ferozes dérbis de Praga (Karel Poborský), Belgrado (o brasileiro Cléo) e Istambul (Emre Aşık, da Copa 2002, jogou nos três grandes turcos). Mas para achar o último doblecamiseta entre Newell’s x Rosario Central é preciso rebobinar a fita para tempos em que se rebobinavam fitas mesmo. O último sentiu isso em 19 de fevereiro de 1984, ou 35 anos atrás.
Naquela data, começou a primeira rodada do Torneio Nacional daquele ano, marcado pela última conquista do Ferro Carril Oeste, na época mais campeão do que o rival Vélez. E foi contra o próprio Vélez que a história foi feita, naquela ocasião. O time do bairro portenho de Liniers deixou um jovem Carlos Navarro Montoya no banco e, treinado por Roberto Rogel, alinhou-se com Jorge Bartero, Abel Moralejo, Pedro Larraquy, José Luis Cuciuffo e Juan Carlos Bujedo; Daniel Messina, Carlos Fren e Alejandro Nannini; Eduardo Hernández, Carlos Bianchi e Jorge Comas. Héctor López e Oscar Gissi também jogariam, substituindo Moralejo e o veteraníssimo Bianchi, o maior artilheiro do clube e que disputava o último campeonato argentino da carreira.
Mandando a partida ironicamente no estádio do Newell’s, o Rosario Central, treinado por Aurelio Pascuttini (antigo jogador campeão pelo clube nos Nacionais de 1971 e de 1973, os primeiros títulos argentinos dos canallas e do interior argentino), mandou a campo Juan Carlos Delménico, Juan Carlos Ghielmetti, Sergio Céliz, Daniel Kuchen e Alfredo Killer; Héctor Chazarreta, Daniel Sperandío e Eduardo Delgado; Gerardo González, Raúl Chaparro e Claudio Scalise. Também entraram Jorge Balbis e Jorge Taverna, saindo Chazarreta e Delgado. Os três gols do jogo saíram em espaço de quinze minutos: já no segundo tempo, Chaparro abriu o placar aos 20 minutos e o reserva Taverna ampliou aos 28. Aos 35, Larraquy (quem mais jogou pelo Vélez no século XX), de pênalti, descontou em um jogo violento: Sperandía, Messina e Fren viram o cartão vermelho.
Aquela era a estreia do goleiro Delménico pelo Central. E o mais incrível é que ele não é vira-casaca apenas em Rosario: é também em La Plata, outra rara cidade argentina em que a dupla local tem mais torcida que Boca e/ou River, como a própria Rosario, Santa Fe, Córdoba e Tucumán. Jogar pelos dois times platenses também é incomum, embora não tanto, com outro goleiro, Gastón Sessa, sendo um exemplo famoso mais recente. Delménico havia sido revelado pelo Newell’s, aparecendo em 1970 no time principal, mas sem jamais firmar-se na titularidade; naquele ano, foi relacionado em apenas três jogos, sem sair do banco. Em 1971 (3 partidas da campanha semifinalista, encerrada exatamente pelo Central, em clássico dos mais recordados) e em 1972 (8), foi usado apenas no Torneio Nacional, em tempos de titularidade absoluta de Carlos Fenoy.
Em 1973, ele conseguiu uma breve titularidade, com 19 jogos na parte inicial do Torneio Metropolitano, mas perdeu a posição para o uruguaio Alberto Carrasco até retoma-la rapidamente no fim do Torneio Nacional, onde atuou nove vezes. O primeiro elenco leproso campeão, em 1974, teve Carrasco em todos os minutos na posição, enquanto Delménico foi relacionado para figurar no banco em apenas cinco partidas. Não demorou a sair do clube, acertado com o Junior de Barranquilla. Enfim, fez história: esteve no primeiro elenco dos Tiburones a ser campeão colombiano, em time repleto de outros argentinos, em especial o craque Juan Ramón Verón. Pai de Juan Sebastián, o ponta chegou a ser jogador-treinador na reta final, substituindo o também argentino José Varacka.
De hermanos, havia ainda o ponta Camilo Aguilar, também ex-Estudiantes; o volante César Lorea, formado no Ferro Carril Oeste com passagens ainda por San Lorenzo e Boca; e Carlos Vidal, que vinha do Gimnasia; e Eduardo Solari, por sua vez pai do atual técnico do Real Madrid (e… ex-Rosario Central enquanto o irmão Jorge Solari havia jogado no Newell’s). Assim, em 1978 Delménico foi incorporado por um River que se desfalcaria de Ubaldo Fillol a partir de fevereiro, quando todos os convocados à Copa do Mundo iniciariam uma longa concentração com a seleção. Ainda assim, só defendeu o clube quatro vezes. Ainda em 1978, ele passou ao Gimnasia, onde tampouco seria titular: o clube seria rebaixado no Metropolitano de 1979 (onde Delménico fez apenas um de suas seletas seis partidas como tripero), mas com o titular sendo um firme Enrique Vidallé, que apesar do descenso chegou a ser levado à Copa América. Delménico então voltou ao Junior a tempo de vencer o segundo título colombiano da história da equipe caribenha, em 1980.
Após outra temporada em Barranquilla, ele virou pela primeira vez a casaca: aportou em 1982 no Estudiantes. Foi o goleiro da conquista do Metropolitano de 1982, o primeiro troféu pincharrata desde a Libertadores de 1970. O Estudiantes conseguiu um bi seguido com o Torneio Nacional de 1983 (o único bicampeonato do time no campeonato argentino, aliás), mas àquela altura o goleiro titular já era Carlos Bertero. Assim, no campeonato seguinte Delménico já figurava no Instituto de Córdoba, pelo qual terminou em décimo no Torneio Metropolitano, embora a três pontos do quinto colocado. Com 30 anos recém-completados em 9 de dezembro de 1983, o goleiro foi então contratado pelo Rosario Central. E embora não tenha comprometido, ficaria marcado pelo rebaixamento ao fim do ano, já no Torneio Metropolitano. Penduraria as luvas no Quilmes, em 1985.
O peso da queda, porém, parece ter criado uma inibição cada vez mais sedimentada contra futuros doblecamisetas em Rosario. Pois até então os troca-trocas vinham sendo até volumosos. Dividia famílias, mas também juntava: os irmãos Daniel e Mario Killer defenderam ambos os dois nos anos 70. E “ambos os dois” não é redundância: presentes naqueles títulos do Central em 1971 e 1973, os Killer destacaram-se mais como canallas, jogando a Copa América de 1975, promovidos por César Menotti – um jogador e torcedor fervoroso do Central que ainda guarda resquícios de tempos menos violentos; declarou que, exceto nos clássicos, o seu bairrismo rosarino o faz torcer pelo Newell’s também, tendo sua primeira experiência técnica exatamente como auxiliar leproso em 1970.
Após a Copa América de 1975, El Colorado Mario (era ruivo) foi ao futebol espanhol e na época isso mais ajudava do que atrapalhava, saindo do radar da seleção. El Caballo Daniel, por sua vez, seguiu chamado pela Albiceleste e foi um reserva na vitoriosa Copa do Mundo de 1978, mesmo já como jogador de um Racing em crise. Eles se juntaram no Newell’s em 1979. Citado na escalação de 35 anos atrás, Alfredo Killer é outro irmão, mas nunca entrou em campo pela seleção – ainda que houvesse sido convocado na primeira chamada de Carlos Bilardo, em 1983. Mario Killer seria depois um dos pouquíssimos a ir e voltar em Rosario: após uma passagem agridoce pelo Independiente (chegou a ser capitão no Rojo, mas já era reserva quando foi enfim campeão, em 1983), regressou ao Central exatamente em 1984, atuando com Alfredo. Daniel Killer, por sua vez, destacou-se ligeiramente no rival, integrando o elenco semifinalista de 1980, eliminado exatamente no clássico tal como em 1971.
Já a mencionada família Solari é um caso diverso. Jorge El Indio Solari foi revelado pelo Newell’s nos anos 60 e ainda passou pelo Vélez antes de jogar a Copa de 1966 como jogador do River. Seu irmão Eduardo Solari, por sua vez, foi colega dos Killer naqueles primeiros títulos do Central, em 1971 e 1973, e como eles estreou pela seleção em 1975 – mas jogando uma só vez. Santiago Solari, filho de Eduardo e sobrinho de Jorge (que voltaria mais de uma vez à Lepra como treinador, inclusive na curta passagem de Maradona pelo clube, em 1993), profissionalizou-se no River, mas começou nos infantis do Newell’s. Era o clube do coração dele e de sua mãe, conforme detalhou em 2011 à revista El Gráfico, e do tio, de quem herdou o apelido de El Indiecito. Outra família envolvida é a dos Luna, revelada pelo surpreendente título de Santiago del Estero no antigo campeonato argentino de seleções regionais, em 1928: Nazareno e Ramón Luna viraram canallas (assim como outro daquela conquista, Teófilo Juárez, que defenderia São Paulo e Palmeiras) enquanto Segundo Luna, figurante nas Olimpíadas daquele mesmo ano, tornou-se leproso.
E quem mais também jogou por Newell’s e Central? Comumente se diz que outros treze fizeram a travessia além de Delménico e dos dois Killer, uma inverdade: essa estatística só computa os tempos de profissionalismo. Juan Carlos Cámer, atacante, defendeu a Lepra entre 1943 e 1944, esteve no Racing e em 1946 virou canalla. O meia Miguel La Rosa defendeu o Central de 1952 a 1959 e virou a casaca em 1960, sendo rebaixado tal como Delménico (é o único descenso leproso). O atacante Elio Montaño foi profissionalizado no Newell’s em 1949, passando então por Boca, Internacional e Peñarol antes de chegar já em 1962 ao Central antes de defender ainda o Sporting Lisboa.
O defensor José Poi (sem parentesco com o goleiro são-paulino José Poy, revelado no Central) foi promovido pelo Central em 1956, chegando em 1958 ao Boca. Em 1959, voltava a Rosario para defender o rival. O atacante Jorge Wetscha não marcou gols em oito jogos que fez pelos auriazuis ao longo de 1961 a 1962, ano em que fez a travessia para marcar sete vezes em doze partidas da segunda divisão, embora o acesso não viesse. Como Poi, os atacantes Juan Alberto Castro e Ricardo Giménez e o goleiro Juan Carlos Bertoldi foram lançados pelos canallas em 1956. Castro ficou até 1960 e chegou ao Newell’s em 1964, após ter defendido Huracán e Atlanta; marcou só um gol em sete jogos como leproso. Já Giménez saíra ainda em 1959 para o Independiente, virando a casaca em Rosario em 1966, tal como Bertoldi – que após sair do Central em 1960 ainda defendeu outra dupla rival, Huracán e San Lorenzo.
Hugo Rosales fez só um jogo oficial pelo Central, em 1967, virando a casaca dois anos depois após passagens por Chaco For Ever e Huracán de Bahía Blanca; Rogelio Poncini, por sua vez, esteve no elenco centralista de 1966 e se incorporou ao rival no biênio 1970-71. O defensor Rolando Pierucci, como Wetscha, conseguiu defender a dupla em um mesmo ano, em 1971, sendo eliminado pelos ex-colegas naquela semifinal histórica. Já o meia Oscar Coullery e Sergio Robles, como Mario Killer, foram e voltaram. Coullery foi leproso de 1973 a 1976, “traiu” em 1977 e regressou em 1981. Robles era um recém-chegado quando foi seu colega no Ñuls campeão pela primeira vez (em 1974). Esteve em Arroyito em 1982, voltando ao Parque Independencia em 1983.
Considerando ainda a função de técnico, são válidas menções a Miguel Juárez e Ángel Tulio Zof. El Gitano Juárez foi ídolo auriazul nos anos 50, sendo colega de um jovem Menotti, e era justamente o comandante do Newell’s que abrigou a primeira experiência técnica de Menotti, seu auxiliar na Lepra em 1969. Zof, por sua vez, comandou primeiro os rojinegros, em 1965, para depois virar o técnico mais importante dos auriazuis, comandante dos títulos argentinos de 1980, 1987 e da Copa Conmebol de 1995 – além de promover Ángel Di María já nos anos 2000. Mas desde Delménico o mais próximo vira-casaca foi o obscuro Carlos Gastaldi, de brevíssima trajetória profissional: subiu da base canalla em 1992 e foi-se ao rival em 1993, mas só apareceu no time B. Em 1994, jogou no Tigre e deu a carreira por encerrada.
No amadorismo, também houve vira-casacas, mas os registros são mais escassos. O mais célebre foi Julio Libonatti, muito mais célebre no Newell’s: representava-o quando foi protagonista do primeiro título da Argentina na Copa América, em 1921, e foi o primeiro formado no futebol argentino a ser contratado pelo europeu, sendo o artilheiro do primeiro título italiano do Torino e defendendo também a Azzurra. E é do amadorismo o único atleta a defender a Albiceleste como leproso e como canalla: o ponta-esquerda Juan Francia, que teve idas e vindas entre os dois. El Mono começou no Provincial, nos infantis. Ainda como juvenil, passou pelo Belgrano, River Plate, Puerto Belgrano (todos times rosarinos) até chegar à primeira divisão municipal em 1917, com o Tiro Federal. Sua primeira passagem pelo Newell’s deu-se em 1918, aos 21 anos, quando estreou pela seleção – em 15 de agosto: 0-0 com o Uruguai.
Francia seguia no Ñuls em 1919, quando fez em 18 de julho sua segunda aparição pela Argentina, derrotada por 4-1 pelo Uruguai. Em 1920, Francia já estava de volta ao Tiro Federal, chegando inclusive a ser detido após trocar sopapos com o Newell’s, convivendo com a fama de jogador temperamental por um bom tempo. Em outubro daquele ano, virou centralista, sendo empregado na ferrovia que originara o clube (denunciando o salário ruim e o trabalho pesado em 1924 à El Gráfico). Seguia auriazul à altura de 1922, quando voltou à seleção para mais seis jogos, incluindo a Copa América e a Copa Roca contra o Brasil (marcando gol na derrota de 2-1). Em 1926, já reaparecia na Lepra – marcando em 1928 um dos gols da recordada vitória de 4-0 sobre o Real Madrid. É justamente Francia quem fecha o Top 10 de goleadores rojinegros no amadorismo.
Atualização em 31-07-2019 – os 35 anos se encerraram: o Newell’s anunciou a vinda, sob empréstimo junto ao Vélez, do atacante Rodrigo Salinas, que havia defendido sete vezes o Rosario Central na segunda divisão de 2011-12 emprestado pelo Godoy Cruz.
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