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30 anos sem Natalio Pescia, o ídolo xeneize que nomeia o reduto de La 12

Pescia em imagem de 1943, ano em que se firmou no Boca

Barrabravas, ultras, organizadas, como queiram chamar: provavelmente nenhuma no mundo é tão influente como La 12, tanto na faceta mafiosamente podre como na inegável entrega fiel e animada ao Boca até diante de momentos e resultados adversos. Nesse sentido, poucos lugares cairiam tão bem como reduto dela em La Bombonera como a arquibancada denominada de Natalio Agustín Pescia, um dos grandes exemplos de entrega e amor à camisa que o clube teve: esse misto de volante e lateral foi reconhecido pela raça e aplicação exibidas sem carnificina diante de diversos adversários da geração dourada que o futebol argentino teve nos anos 40 – impedindo títulos até da versão mais famosa da célebre La Máquina do arquirrival. Um dos três únicos a atravessar quinze anos ininterruptos servindo ao time em campo, El Leoncito faleceu há exatos trinta anos.

Pescia nasceu no primeiro dia de 1922, em Isla Maciel, ao sul do bairro de La Boca. No ano anterior, aquela localidade foi descrita como “uma área sombria, terreno de prostitutas, marginalidade, imigrantes que falam em genovês e ovelhas que pastam no gramado do estádio”, e o “turismo” no local rodeado pelas águas imundas do Riachuelo seguia desaconselhado em anos recentes. Terreno apropriado para talhar aquele beque, surgido inicialmente no clube Viena de Dock Sud, naquelas redondezas, até chegar ao Boca ainda nos juvenis. Seu transporte para La Boca? Um barco de um senhor de fato genovês. Essa comunidade era tão numerosa que originaria o apelido de xeneize (corruptela de zeneise, que significa “genovês” no dialeto de Gênova) assumido pelos auriazuis.

Ele estreou no time adulto em 30 de agosto de 1942, uma ingloriosa derrota de 2-1 para o Chacarita. Foi sua única exibição no campeonato, vencido pelo arquirrival River – que, por sua vez, promovia em paralelo o ponta-esquerda Félix Loustau, a última engrenagem a se juntar ao quinteto mais famoso do futebol argentino: o ponta-direita Juan Carlos Muñoz, o meia-direita José Manuel Moreno, o falso 9 Adolfo Pedernera, o meia-esquerda Ángel Labruna e Loustau formariam a versão mais famosa do ataque do elenco riverplatense apelidado de La Máquina, já nomeado assim desde 1941. Loustau pegando quase que literalmente La Máquina andando e só viria a se firmar em 1943, ano em que Pescia enfim veio a ganhar uma primeira sequência de jogos na liga, em abril. Escalado inicialmente pelo meio, tinha uma concorrência desleal com Ernesto Lazzatti, outra figura longeva no clube.

Pescia chegou a ficar de fora do time entre o fim de abril e meados de agosto, quando voltou, mais escalado na lateral-esquerda para que ele e Lazzatti pudessem atuar juntos. Isso significou o afastamento de outro ídolo auriazul naquela lateral, Pedro Suárez, veterano da Copa de 1930. Mas, deu bingo. Pescia só deixou de ser usado em um domingo até o fim do certame, o que incluiu um 2-1 em seu primeiro Superclásico, decisivo para os auriazuis terminarem um ponto à frente do rival – e campeões. Em 1944, veio o bicampeonato, agora com dois pontos a mais. Um título agridoce para Pescia: uma rara tarde onde marcou gol, em empate em 2-2 com o Platense foi também seu último jogo na campanha, ainda em 12 de novembro. Ele atuou nos 90 minutos, mas incidentes enérgicos da torcida contra gols anulados acarretaram na suspensão dele, do goleiro Claudio Vacca, do talismã Severino Varela e da própria Bombonera para a reta final.

Pescia no Boca em 1944, já com bem menos cabelos, e pela outra única camisa que defendeu como adulto: a da seleção

O Boca fez dos limões uma limonada: o jogo que garantiu o bi, contra o Racing, foi mandado no próprio Monumental, permitindo aos auriazuis uma primeira volta olímpica na casa rival. Além disso, a despeito da fama daquele quinteto de La Máquina, aqueles cinco só atuaram oficialmente dezoito vezes juntos, desconsiderando amistosos. A grande maioria dessas partidas se deu exatamente em 1943 e 1944 (pois ainda em 1944 o craque Moreno partiu para o México, e embora voltasse em meados de 1946 não tardou para que o maestro Pedernera deixasse o clube meses depois), mas foram paradoxalmente incapazes de superar os xeneizes naqueles dois anos. Os auriazuis simplesmente emendaram uma invencibilidade de 26 jogos em meio àquela torneio, a maior registrada no profissionalismo argentino até ser batida em 1966 pelo Racing. Quando a sequência foi interrompida, seguiu-se outra de formidáveis 17 jogos, sem nenhuma derrota na Bombonera.

Se não pôde estar em campo no jogo do título, Pescia foi enfim reconhecido pela seleção, convocado à Copa América de 1945 – ainda que uma apendicite inoportuna o impedisse de ser usado na competição, travada no início do ano. Sem um futebol tão encantador, o River foi o campeão de 1945 quatro pontos à frente do vice Boca e ambos cederam cinco jogadores cada à Copa América realizada na própria Argentina na virada de janeiro para fevereiro de 1946. O melhor momento pesou para o Millo ter mais titulares, com Pescia e o goleiro Vacca sendo os xeneizes no time-base. O lateral ficou de fora somente do jogo inicial, “roubando” então o posto do millonario José Ramos. O Boca ainda emendaria dois vice-campeonatos argentinos em 1946 e 1947 (ambos anos sem nenhuma derrota na Bombonera), ano de uma terceira Copa América consecutiva, agora em dezembro. Pescia. Novamente, só veio a se ausentar de um jogo e terminou campeão.

Aquele tri seguido ainda é um recorde exclusivo da Albiceleste na competição e, embora tenha vindo em anos seguidos, só cinco jogadores estiveram nas três convocações. Um deles foi Loustau, inclusive. E Pescia foi outro… em 1948, todavia, era a hora de começar a viver las malas. Foi o ano da longa greve de jogadores no futebol argentino. Sem ele e diversos outros sindicalizados, o Boca caiu para 8º. Embora solucionada em 1949, a resolução não agradou a classe e muitos se mandaram para o lucrativo Eldorado Colombiano ou para a prestigiada Serie A – caso do artilheiro auriazul, o ponta Mario Boyé (outro dos cinco presentes em todo o tri na Copa América). Já retornando ao posto de volante central, Pescia foi a salvaguarda da defesa de um time que simplesmente brigou contra o rebaixamento até a última rodada, turbulência jamais ocorrida antes ou depois na história xeneize.

De todo modo, não havia como ir à Copa do Mundo: a AFA estava rompida com a CBD desde tumultos na final da Copa América de 1946 e já não havia vindo ao Brasil para a própria Copa América de 1949. A imprensa de cada país puxou a sardinha para o próprio lado quanto à responsabilidade, com a brasileira destacando que os tupiniquins teriam precisado se refugiar no vestiário sem que o ponta Chico chegasse a tempo, terminando espancado coletivamente – ao passo que os hermanos, já irritados com fraturas de dois jogadores, destacaram que o próprio Chico incitara tudo ao covardemente acertar por trás exatamente Pescia. O desfalque de tantos craques para o exterior foi a pá de cal e os hermanos sequer jogaram as eliminatórias. O Boca, em paralelo, retomou força em 1950, reforçado com aquele histórico José Manuel Moreno que tanto brilhara em La Máquina rival. De quase rebaixado em 1949, os bosteros saltaram para o segundo lugar e Pescia reapareceu na seleção em maio de 1951, em ocasião à altura: a primeira visita argentina a Wembley, para enfrentar a seleção que, com a Copa do Mundo ainda em seus primórdios, era então vista como a maior do esporte, a Inglaterra.

Em 1953: melancolia do jejum que ainda tardaria um ano para acabar, sendo ele o solitário remanescente do elenco campeão anterior

Foi justamente a única vez em que Pescia terminou derrotado pela Argentina, em um honroso 2-1 de virada que consagrou exatamente a retaguarda sul-americana ante a ineficiência de seu ataque e ao bombardeio frenético dos britânicos – que jamais haviam sido derrotados em casa até então por uma seleção de fora das Ilhas. Só que o Boca parecia ter desaprendido a ganhar. Terminou em 6º em 1951, em 10º em 1952 e em 7º em 1953. Veio o ano de 1954, altura em que Pescia, com cada vez menos cabelos, já era o único remanescente em campo do último elenco xeneize campeão argentino, dez anos antes – Lazzatti estava ali também, mas como treinador. Não foi um jejum absoluto; o time levantou a Copa Británica em 1946 e as Copas Confraternidad em 1945 e 1946. Ainda assim, era àquela altura a maior seca nacional do então maior campeão argentino. O time então preparou-se ainda a partir de fins de 1953, excursionando de modo invicto à Europa. Pescia esteve em especial em um 6-3 no combinado de Paris, no 4-0 sobre o Sporting Lisboa (então o maior campeão português), no 1-0 sobre o Benfica e no 2-2 com o Atlético de Madrid (então o time madrilenho mais vezes campeão).

Na 8ª rodada do campeonato de 1954, já se notava uma diferença no ar: foi a primeira rodada em que o time experimentou a liderança desde 1946. Com média de público no dobro da média geral, o clube sentiu o desjejum na penúltima rodada, no início de novembro. Nesse embalo, Pescia reapareceu na seleção. Excetuando aquele jogo em Wembley em 1951, ele não defendia a Argentina desde a Copa América de 1947. Em 21 de novembro, jogou o primeiro tempo de um 7-2 contra uma seleção do interior para em 28 de novembro participar de um 3-1 sobre Portugal dentro de Lisboa, sua última partida pela Albiceleste, que alinhou a retaguarda inteira dos campeões: o goleiro Julio Musimessi, os zagueiros Juan Carlos Colman e Federico Edwards, o volante Eliseo Mouriño, Pescia e o outro lateral, Francisco Lombardo. El Leoncito ainda foi titular nas duas temporadas seguintes do Boca, ambas no terceiro lugar, chegando a liderar o primeiro turno de 1955 (incluindo um 4-0 sobre o River, que, porém, terminaria campeão).

Deixando a vaga de volante para o novato Antonio Rattín (o outro único que, como Pescia e José Marante, defendeu o Boca por quinze anos ininterruptos), ele ainda participou da pré-temporada de 1957, mas já não foi usado no campeonato. Pendurou as chuteiras após dois amistosos em abril de 1957, derrotado por 4-1 pelo Nacional em Montevidéu e igualado em 3-3 com o Olimpia no Defensores del Chaco. Sua saída deveu-se mais por bate-bocas com o cartola Alberto Jacinto Armando do que por declínio técnico e, considerando um pecado defender outro clube, preferiu parar, quando faltavam-lhe somente dezesseis jogos para ultrapassar o ex-colega Lazzatti como recordista de partidas oficiais pelo clube – hoje é o décimo. Saiu, mas não se afastou: chegou a concorrer às eleições presidenciais de 1960, enfrentando o próprio Armando – exatamente por quem dá nome oficial à Bombonera, por sinal (venceria o pleito e presidiria o clube até 1980).

Quando Pescia faleceu em 1º de novembro de 1989, via um time em crise. Campeão argentino em 1981, o clube suportaria um jejum nacional ainda maior que o de 1944-1954; seria finalizado em 1992 a seca de onze anos, ainda a recordista no cenário doméstico. Pois, internacionalmente, foi possível desafogar-se um pouco exatamente naquele novembro, logrando no fim daquele mês a Supercopa Libertadores – dentro de Avellaneda contra o Independiente. Talvez empurrado desde acima por quem nunca baixava os braços no gramado – e a quem elegemos em 2015 tanto para o time dos sonhos dos 110 anos do Boca como também para o time dos sonhos da seleção argentina na Copa América.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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