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30 anos do pior momento do Boca

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Se hoje Ricardo Gareca soma derrotas treinando o Palmeiras, há três décadas ele, ainda como um bom centroavante, vivenciava o pior momento do Boca, com desenrolar que o faria perder a condição de ídolo auriazul inclusive, embora não tivesse jogado em um dos episódios-símbolo da crise: os 9-1 que o clube levou do Barcelona há exatamente 30 anos, em 21 de agosto de 1984. Esta é até hoje a derrota mais elástica sofrida pelos xeneizes, contando jogos amistosos e não-oficiais também.

O mais perto que o Boca chegou a ser ameaçado de rebaixamento foi em 1949, quando foi salvo por um ponto. Mas, por mais que o clube tenha passado dez anos de jejum entre 1944 e 1954, aquele momento foi um ponto fora de curva: de 1945 a 1947 foi trivice seguido e voltaria a ser vice já em 1950. Há 30 anos, foi diferente: os boquenses sofreram por quase todos os anos 80, com um jejum nacional até maior, pois não venceram o Argentinão entre 1981 e 1992. 1984 foi o ápice de um crise formada ainda em 1981, por sinal, quando desacordos salariais impediram a renovação com o técnico campeão Silvio Marzolini, ídolo desde os tempos de lateral.

O clube não era campeão argentino desde 1976 e desde então vira o River empilhar troféus. Respondeu contratando por empréstimo o astro Maradona junto ao Argentinos Jrs. A chegada de Maradona, aliás, empurrou o jovem Gareca para um empréstimo ao Sarmiento de Junín. Dieguito jogou muito e o time foi campeão. Gareca também se saiu bem e retornou para ocupar a vaga que haviam tentado deixar para o experiente Carlos Morete, tosco mas um dos maiores carrascos que o Boca já teve (especialmente quando jogava no River, no início dos anos 70) mas que não emplacou com a azul y oro.

Em 1982, os pré-convocados ao mundial da Espanha se concentraram com muita antecedência à seleção, repetindo a preparação vencedora de 1978, iniciada no início de fevereiro. Assim, sem saber, Maradona despediu-se do Boca em amistosos de verão em janeiro de 1982. Queriam mante-lo, mas a crise econômica já vivida no governo militar foi acentuada com a Guerra das Malvinas. O preço de Maradona havia sido estipulado em dólares e a moeda dos EUA valorizou nada menos que 240%. Dieguito, ainda antes do mundial, já assinava com o próprio Barcelona. A esperança Morete, o ídolo Marcelo Trobbiani e a promessa Ariel Krasouski também haviam custado em dólares.

Até 1984, o clube tentou trazer outros astros. No segundo semestre de 1982, foi a vez de Héctor Scotta, que ainda detém um recorde de gols em uma única temporada na Argentina (marcara 60 pelo San Lorenzo em 1975). Não vingou. Em 1983, um dos emblemas do River dos anos 70, o volante Juan José López, foi um nome importante mas não empolgou de forma duradoura. Foi também o ano em que as camisas passaram a estampar patrocinadores, mas os Vinos Maravilla não foram tão auspiciosos. O clube chegou a perder seis mandos de campo após um rojão de sua torcida matar um torcedor do Racing.

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O dia da camisa borrada

Em 1984, a aposta da vez era em Fernando Morena, uma das maiores glórias do Peñarol: seis vezes seguidas artilheiro do Uruguaião nos anos 70 e que dois anos antes havia alcançado sua sétima artilharia na liga vizinha; ele é também o segundo maior artilheiro da história da Libertadores. Jogou sete vezes no Boca no campeonato e só marcou um, de pênalti, em um dia inesquecível no mal sentido – vencia o Platense foi 2-0, o oponente empatou e a três minutos do fim o Boca conseguiu novo pênalti, com o Platense improvisando o defensor López Turitich no gol após o goleiro lesionar-se e não poder ser substituído. López conseguiu pegar a cobrança de Morena.

Isso foi já no Torneio Metropolitano. No Nacional, disputado antes, o time começara bem mas perdeu nos critérios de desempate para o Talleres a classificação aos mata-matas. No Metro que a zica foi mais sentida. O primeiro triunfo só veio na nona rodada. Nunca os xeneizes demoraram tanto para vencer. O Boca chegou a ser o último da tabela. Em dado momento, o brasileiro Dino Sani, reserva campeão da Copa 1958 e ex-jogador boquense, assumiu o cargo de técnico.

Sani também foi incapaz de resolver, durando 12 jogos com só 5 gols marcados. Nesse período, outro episódio-símbolo do péssimo momento: cheios de salários atrasados, os jogadores do elenco principal fizeram greve e se recusaram a jogar contra o Atlanta, em 8 de julho. O quarto elenco reserva, cheio de juvenis, foi utilizado e o grotesco não acabou aí: com falta de camisas reservas (o Atlanta tem as mesmas cores), improvisam uma branca com números atrás escritos à mão. O suor os faria escorrer.

O Boca perdeu o jogo por 2-1 para o clube que seria rebaixado adiante (até hoje o Atlanta, então um tradicional pequeno, não voltou mais à elite) e embora não fosse o último, tinha menos gols marcados que os quatro times que conseguiam estar atrás dos auriazuis. A tristeza continuou no dia seguinte, com a morte do ídolo brasileiro Paulinho Valentim, atacante dos anos 60 que é até hoje o boquense com mais gols marcados sobre o River no campeonato argentino.

Em agosto, uma turnê por EUA e Europa foi acertada para arranjar algum dinheiro e aí veio aquela goleada para o Barcelona, pelas semifinais do Troféu Joan Gamper. Ironicamente, Maradona havia acabado de deixar o Barça rumo ao Napoli e o jogo marcou exatamente a estreia do seu substituto com a camisa 10 blaugrana, o escocês Steve Archibald, que começou muito bem: marcou dois. Aos 33, a expulsão de Roberto Passucci, com os argentinos já perdendo de 2-0, escancarou a defesa boquense. O gol de honra foi justo de Morena. De pênalti. Para o Barcelona, Archibald e José Ramón Alexanko marcaram duas cada, com Calderé, Schuster, Carrasco, Esteban e Marcos completando.

No jogo pelo terceiro lugar, algo simbólico: os hermanos se recuperaram um pouco, vencendo por 2-0 o Aston Villa, no primeiro jogo de futebol entre argentinos e britânicos após a Guerra das Malvinas.

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Ruggeri e Gareca, os astros na crise, aumentaram o rancor ao irem ao arquirrival em 1985

Bom, e Gareca? Ele era um dos que vinham se salvando. Fazia muitos gols no River (naquele mesmo 1984, um amistoso contra o grande rival foi vencido por 3-0 com três gols de El Tigre) e conseguia jogar na seleção (em 1983, fez o gol da vitória sobre o Brasil que encerrou o maior jejum da Albiceleste sobre a canarinho, 13 anos). Outro que regularmente participava dela era o xerife Oscar Ruggeri. Por sinal, Ruggeri também não esteve nos 9-1 na Catalunha. Eles estavam exatamente ocupados com a Argentina, que no dia 24 jogaria fora de casa com a Colômbia. E os dois principais jogadores do Boca naquele terrível momento estavam bastante insatisfeitos com os salários atrasados.

Eles haviam renovado contrato no dia 18 de junho e o primeiro pagamento após a assinatura viria quatro dias depois. Mas a tesouraria passou a adiar constantemente a entrega e a atrasar também os bichos pelos parcos triunfos. As crescentes dívidas emperraram as obras de reformulação da Bombonera, que foi simplesmente fechada em 5 de setembro. Só depois de um ano os jogos voltariam lá.

Dirigentes renunciavam e o presidente Corigliano chegou até a sair e voltar do cargo, tamanha a desorganização e discussões gerais. Novas ameaças de greve surgiam. Em setembro, a torcida perdeu ainda mais paciência com Gareca ao vê-lo errar por muitos metros um pênalti e responder cantando “Gareca tem câncer, tem que morrer”. Em 11 de outubro, 16 jogadores declararam-se por telegramas livres. Gareca não estava entre eles, nem Ruggeri, mas não jogou mais a partir de 22 de outubro, um 3-0 para o Unión de Santa Fe. Ruggeri, que jogou três vezes em dezembro, não atuara em novembro. Nisso, o Boca praticamente perdia o seu elenco profissional e voltava a recorrer a juvenis.

Em 29 de novembro, o clube sofreu até intervenção governamental. Ao fim do ano, o interventor mandou telegramas a 18 jogadores para a renovarem, dentre eles Gareca e Ruggeri. A dupla, farta, não aceitou. Janeiro de 1985 começou com nova greve oriunda no Boca, mas que se alastrou de forma geral após a solidariedade sindical. Só acabou quando o River pagou pela dupla cem mil dólares junto com os passes de Carlos Tapia e Julio Olarticoechea ao arquirrival. A raiva aumentaria especialmente com Ruggeri, que em 1986 venceu as primeiras Libertadores e Intercontinental dos millonarios, que passavam por crise parecida (não por trazer Maradona e sim Kempes em 1981) e consumaram a tríplice coroa: venceram também o Argentinão após jejum que também vigorava desde 1981. A Libertadores foi justamente sobre Gareca, que estava no vice América de Cali – contamos semana passada, aqui.

Gareca e Ruggeri jamais foram perdoados no Boca. Roberto Passucci, bigodudo brucutu expulso há exatos 30 anos e assim decisivo para a goleada contra o Barcelona e que por sinal estava entre aqueles 16 que haviam se declarado livres em outubro, virou ídolo  justamente após uma entrada violentíssima em Ruggeri em um Superclásico de 1985, que lhe rendeu outra expulsão, até. Mas batiza um dos principais sites da história do Boca, o La Passucci, cujo informe assim afirma, em determinado trecho: “esta página não apoia a violência de nenhum tipo (exceto o chute de Roberto, é claro)”.

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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